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segunda-feira, 8 de julho de 2013

O voo da noite - Parte 7/8

Enquanto esperava pacientemente pelos atrasos do voo da noite, L. observava o puto que dormia em cima de uma mala, aparentemente abandonada, como se não houvesse pais, donos ou um conceito equivalente de núcleo familiar. Mas o puto acordara, e agora perdido no sonho ou da família, choramingava sobre a grande mala que antes o acolhera.
Transeuntes preocupados de volta da criança desorientada, interrogavam-se sobre a solidão e o abandono, as seguranças de luva branca e feições carregadas, demonstravam o seu lado maternal, agitavam os olhos nervosos à procura e, vindo de sabe-se lá donde aparece o pai da criança que a embrulha nos braços, como ramos de uma árvore pejada de raízes. Mas a frieza da mestiça de feições carregadas só entregou a criança depois de identificado o alegado indigente.
L. sorriu com este final feliz e embrenhou-se na leitura, a lâmpada de Aladino de Luís Sepúlveda, como antes e durante, Borges, Garcia Marques e Vargas Llosa, companheiros na sua solitária viagem.
A capa brilhava agora na penumbra das apagadas luzes de cabine, como uma lâmpada de criatividade em histórias espalhadas pelo mundo, atenuando o ambiente soturno e bolorento que persistia neste interlúdio entre a terra e o espaço exterior.
Um Aladino desperta sempre a atenção, sobretudo abandonado à sua sorte no assento côncavo de uma aeronave, a mais louca máquina voadora do mundo.
O voo noturno descola do istmo ensopado de chuva e de luzes e L. voltava a embrenhar-se em Sepúlveda que, fora do território panfletário, esbanja memórias sem geografia definida, facto estranho para quem nunca se exilou, tão estranhamente vulgar quando lido do céu, uma ponte aérea tão curiosamente comum e intemporal entre a América do Sul e a Europa, refúgio envelhecido de todos os apátridas.
E memórias são de uma criatividade e de um encanto que o autor muitas vezes esconde por detrás de palavras de revolução perdida.
Mas numa noite de Inverno sobre o Atlântico Sul, são as histórias de um exilado na Europa do frio e da chuva, que pareciam familiares a L. e são as interjeições latinas com a Alemanha do Norte, que adormecem o corpo de L. e voltam a despertar as suas memórias.
Eram as noites que marcavam o seu ritmo afetivo e a sua tolerância à distância que, à medida que o tempo escorria, deixava de ser apenas uma distância física e se transformava no reinventar de uma nova existência, como se tivesse reencarnado na essência de um outro ser.
Deixara de haver rotinas para L., e os finais de dia alternavam entre a profunda e temível solidão e a euforia dos encontros fortuitos nos bares de todas as cidades, nas sociedades de elite ou nos hotéis de luxo que a nova profissão lhe proporcionava.
Jamais L. se imaginaria um ser de sociabilidade tão fácil e de pendor tão universal como nas terras de um exílio tão dourado e compensador.
Chegava a sentir-se um mercenário do seu interior, agora que decidira deixar de contemplar a vida dos outros e se assumia, qual jovem rebelde e de natureza errante, como participante desta nova existência reincarnada.
Nos compassos de solidão, debruçava-se no skype, cada vez mais intermitente e ausente, e constatava que os filhos reinventavam a vida na sua ausência, com uma saudade cada vez mais difusa e uma necessidade cada vez menos premente.
É diferente ser exilado fora de tempo.

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