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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Véspera de Natal




Choveu a potes na manhã cinzenta na escura cidade do granito, ao que consta impenetrável aos terramotos e aos voos picados das renas e do pai natal.
E as pessoas fugiram do centro, as ruas ficaram mais escuras e viraram as costas às luzes e às festas, numa humidade que fustiga o vento ameaçador e gelado de um Inverno que varre as calçadas rasantes com um brilho que realça a ausência de cores e luzes de natal.
Nas traseiras da prometida consoada, descobrimos os bairros étnicos de geografias invulgares e de crenças pouco fervorosas, habitantes que povoam os recantos e as ladeiras da cidade velha e que fecham as trancas dos bazares, sem companhia nem filas de cristãos à procura de lembranças fluorescentes, e procuram evitar as armadilhas dos buracos que se enchem de água e lama, praguejando em línguas estranhas contra os incompreensíveis desaforos dos locais.




À procura de um refúgio seco e incólume à adoração aos santinhos e às figuras de presépio que aguardam o nascimento do menino.
As tabernas destilam a jargão vernáculo, tão longe das cabanas de palhota e dos burrinhos e das vacas que adoram o nascimento de um mito, tão próximo do casario descrente e desolado, do bafo envelhecido dos que acreditam que a consoada é um copo de vinho tinto entornado no balcão comprido de pedra fria da tasca obscura da calçada que se inclina dos jardins até ao rio.
As pessoas fugiram do centro e as ruas ficaram mais escuras.
Quando a chuva regressa com o final de tarde, o céu de chumbo despeja impropérios e afugenta os últimos seres normais que procuram encontrar um beiral que os albergue
Para o outro lado do jardim, para longe da outra face da véspera de natal!



domingo, 8 de dezembro de 2013

A paisagem nórdica do Museu do Prado - MNAA






A perspetiva dos pintores nórdicos das terras baixas além Alpes, da barreira montanhosa que os separava das cores quentes das terras do Sul, é fantasmagórica.
Os picos gelados sem encostas suaves, uma sensação abrupta de azuis gélidos num horizonte que eles nunca tinham visto, destoam do detalhe minucioso dos primeiros planos predominantes de verde e castanho e de cenas do quotidiano da Flandres do século XVII.
Segundo a Rita, licenciada em História de Arte havia, nos primeiros sete núcleos, uma necessidade panfletária de narrar e evocar as cenas de um quotidiano feliz, como se de uma época de paz se tratasse, não coincidissem as datas das pinturas com o período da guerra dos oitenta anos.
A desconstrução sistemática das realidades não é pois um fenómeno exclusivo da imprensa escrita e reveste-se de cores vivas, gente feliz e referências mais ou menos explícitas à boa moral religiosa de uma predominância católica.
As montanhas (imaginável fronteira sul que os pintores desconheciam), a vida no campo, a paisagem de gelo e neve, o bosque como cenário, Rubens e a paisagem e no jardim do palácio.
Capítulos de uma sociedade de classes bem vincadas, mas em harmonia no trabalho e no lazer, burguesia feliz em piqueniques no campo, rodeados de trabalhadores que tratam a terra e de animais no pasto e, um pouco mais nos contornos do horizonte, crianças que dançam em roda em manifestação espontânea de alegria no trabalho.


Os bosques escuros e verdejantes que representavam a verdadeira fronteira dos povos da planície são retratados como a verdade assustadora para onde eram remetidos os animais e os renegados, mas surpreendem pelos diversos efeitos de luz e por esporádicas referências bíblicas ou (mais bizarro ainda) mitológicas, como se os pintores utilizassem metáforas e humor subtil para relevar dissonâncias que a autoridade jamais entenderia.
Como os nobres vestidos de vestes simples a trabalhar a terra ou as Ninfas no bosque, ou a camponesa que cai no gelo e, no meio de uma multidão feliz e bem comportada, se expõem de rabo para o ar, o cavaleiro que atravessa o lago por cima das águas, o cão que alça a perna no canto inferior esquerdo de um quadro repleto de representantes da igreja…
Depois há o Rubens só para amigos que pintava florestas com luz de entardecer a furar as árvores, provocador porque subverte as cenas de caça onde o caçador perde sempre para um anjo que lhe rouba a presa.
As cenas de guerras navais surgem apenas nos núcleos finais com evocações a guerras longínquas, os turcos como sempre retratados como infiéis e as bandeiras holandesas substituídas por cruzes espanholas, certamente por censores autorizados sem sensibilidade artística.
Obrigado Rita pelas lições de luz, de profundidade e de foco como expressões de arte e pelo belo exercício de regras de composição clássicas expostas em ambiente intimista numa exposição clássica com auréola pop.
 Ainda que haja pinturas feitas ao metro encomendadas por monarcas espanhóis, patéticas perceções à distância das terras exóticas (imaginem a capacidade inventiva dos marinheiros derramada em pintura sobre uma tela) e experiências atabalhoadas (no núcleo nove) quando os nórdicos atravessaram os Alpes e se depararam com a luz quente e desconhecida do Sul da Europa.

Imperdível hora e meia!



segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Fé de Fátima



Cai a noite no vale
Santa Iria ganha uma inesperada áurea à medida que se desvanece a luz na rampa do horizonte, e as luzes traseiras dos autocarros abandonam a nossa memória, para lá do horizonte enquanto o céu reflete os símbolos de fé no esplendor de mármore
Cai a noite fria no Santuário, as vozes diluem-se no espaço imenso e os vultos arrastados tingem-se de contornos laranja
Um calor surpreendente emana da parede do templo, do espaço das promessas cumpridas através do fogo, um burburinho silencioso que deixa as almas a pairar no cheiro a velas queimadas ou na cera que arde, uma linguagem que apela aos diversos credos.
A fé ao anoitecer é um momento quase solene, capaz de converter um agnóstico a um qualquer credo íntimo e pessoal, longe das multidões e da crendice, dos santinhos e dos adereços de cera.

Especialmente longe da capela das aparições!



sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Xira – A lezíria já não mora aqui




As memórias de Vila Franca espreitam das paredes, forram as calçadas do centro da cidade e procuram despertar em cada taberna ou casa de petiscos o Ribatejo das lezírias e dos campinos, dos touros e da festa brava.
Puro engano, traições da memória de uma idosa, que se prende aos detalhes de recordações longínquas e se abstrai dos montes que a não deixaram crescer, da autoestrada que a emparedou de encontro ao rio, esventrada por um caminho-de-ferro que não tinha mais por onde atravessar.
O rio Tejo, a sua verdadeira fronteira que a afasta da lezíria dos espaços amplos do (Ar) Ribatejo.
Apesar das tentativas de canonização terrena da tradição da terra, eternizada nos museus municipais, na praça de touros e na toponímica das ruas, largos e becos, o passado de aqui não sobrevive para além da festa do barrete verde.
Agora são os touros mecânicos de ferro e aço, de rodas e carris que irrompem pelas diversas latitudes da urbe que se habituou a ser entreposto e subúrbio, um corredor com vista para a miragem que transpira o suor dos viajantes.
Sob as árvores frondosas da língua de terra e paz, isola-se o jardim ribeirinho, que procura virar as costas ao burburinho, à descaracterização, aos comboios, e ao tráfego anárquico.
Os velhos nos bancos de jardim e os estudantes nas mesas da esplanada, escolhem os lugares virados para o rio pardacento e para a lama fértil das terras além rio, entre apitos das locomotivas e o miar lânguido dos gatos que se espreguiçam dentro dos botes ociosos, ao Sol e ao sabor das ondas.
Também eles sabem que as fragatas, os varinos e a faluas, são meros museus flutuantes de séculos de pesca no rio e já não saem ao rio nem desafiam nem o sável, nem as marés.
No silêncio do olhar vazio de uns e no burburinho incontido de outros, atravessa-se a ponte entre o passado e o presente, a lezíria e o subúrbio.


sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Coimbra A – O lado B da cidade



Todas as cidades têm o seu lado B.
Está na moda o lado B das cidades: alternativas, irreverentes, inconformadas, normalmente (propositadamente) abandonadas, mescladas de grafitis e edifícios em ruínas.
Menos visitadas e mais autóctones, restos da cidade que todos procuraram esquecer nas últimas décadas
Os diversos pedaços de cidade são como as modas, vão e veem, esquecem-se e idolatram-se e as últimas tendências do pensamento contemporâneo vão para além do tradicional revivalismo da arte: rendem-se ao passado, mas destruído, em estado puro, sem intenções de o reparar ou de o reconstruir à nossa imagem (do presente)
Puro e duro!
Por isso não há cidade que se preze que não tenha um novíssimo hábito de expor as entranhas ao Sol, e fazer delas, santuários vudus da história recente.
Antes que volte a fúria demolidora do império do betão.

Mas não é vulgar que o B seja o A.

Exceto em Coimbra,ao longo de uma obstinada linha férrea que procura aproximar a cidade histórica do eixo Norte Sul!


segunda-feira, 4 de novembro de 2013

As ruínas da sardinha






“Posso-lhe entregar uma mensagem bíblica?”
Pousei-lhe a mão no ombro e abanei a cabeça:
“Não tenho tempo, ando à procura das ruínas da sardinha!”
Atónito, o crente recusou a minha mão, afastou-se assustado de bíblia em riste e assumiu, de forma aliás pouco cristã, que eu tinha doença contagiosa.
E eu lembrei-me de uma frase bíblica de um velho e resistente industrial conserveiro de Matosinhos, em resposta à pergunta de jornalista, intrigado com o facto de manter na família uma indústria por mais de cento e trinta anos:
“ Deus e vontade divina”
Faz pois todo o sentido, esta nova invasão de seres bíblicos nas largas avenidas de Matosinhos Sul, especialmente agora que já não vemos a agitação dos pescadores, as centenas de mulheres operárias vestidas de branco, de faca em riste na mão direita e marmita na mão esquerda, pela rua Brito Capelo fora.
A nossa geração tornou-se mais do género espiritual!
(E as primeiras ruínas que vislumbro servem de sombras aos novos homens do mar em cuecas, pranchas em vez de traineiras, risco por risco que seja na rebentação das ondas e com a terra bem à vista)
E do género desportista!
“ A nossa matéria-prima é muito sensível porque, neste momento está a nadar e depende das licenças de pesca, que são cada vez menos”
Pois, mais pranchas e menos traineiras, falta de peixe mas não de ondas no mar!
Matosinhos Sul é o reflexo das nossas aspirações em aliviar as difíceis condições de vida da indústria “retro”, uma legítima vontade de trocar o trabalho de sol a sol pelas amenidades do desenvolvimento, que prometem tempos livres como recompensa de uma mais alta produtividade.
“Temos o mesmo que tínhamos, só que mais concentrado”
Enquanto dura o contraditório, a frente mar abate os armazéns numa onda de maremoto e erige torres de apartamentos de vistas largas e com assinatura de arquitetos famosos e a obra do autarca estende reluzentes pistas vermelhas para ciclistas, que atraem novos cidadãos residentes com automóveis desportivos que aceleram velozmente sobre uma passadeira indefesa, lojas de artefactos orientais e lofts, e ginásios em armazéns industriais, (o definitivo triunfo do género desportista), bares e uma nova vida noturna, armazéns industriais transformados em habitats do pirata das caraíbas…
(e quarteirões vazios, cercados de paredes com janelas para lado nenhum, que são os novos monumentos da antiguidade industrial)
Quarteirão sim, quarteirão não!
 “Já foram cinquenta e quatro, hoje são apenas quatro”
E nos quarteirões sim, as ruas transversais respiram de árvores frondosas e (provavelmente) tão centenárias quanto as indústrias defuntas, arruinadas, ou porque os herdeiros não se entendem ou os novos empreendedores ainda não digeriram a extensa oferta da crescente densidade populacional da nova cidade virada para o mar.
A arqueologia, o esquecimento e o abandono, são a melhor garantia do equilíbrio ecológico.
Prédios, vidro e cimento e avenidas largas no eixo norte/sul, fachadas em ruínas e árvores frondosas na longitude este/oeste.
“Hoje, a conserva está na moda; não é mais um produto de emergência mas uma iguaria gourmet, enquanto houver peixe português”
Mas são já poucas as mãos femininas que esfrangalham a sardinha porque “é uma matéria-prima muito sensível e, por isso, têm de ser trabalhadas pelas mãos das mulheres”
Mais um quarteirão vazio, de ruínas e grafitis, entre lojas gourmet e de moda exclusiva
E, no fim da alameda, assoma o moderno elétrico amarelo chamado metro que devolve a rua aos peões.
Mas quem tem saudades da agitação dos pescadores e das mulheres pela Brito Capelo fora, de fardas brancas e marmitas?
A vida árdua fica sempre melhor num museu, mas é difícil medir o impacto das memórias no PIB.
Mas para alimentar o contraditório convém referir que as exportações de conservas continuam a subir!


sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A vida debaixo da ponte


O arco de ferro forjado que flanqueia a entrada bem podia dar-nos as boas vindas à fábrica de Lisboa com uma exultante exclamação de que o “Trabalho Liberta”, não fossem as sinistras conotações que nos despertam as memórias do desenfreado século vinte.
Assim, este promissor arco que pendura as ombreiras do portão que nunca se fecha, perde fulgor e significado histórico, com um simplório e descritivo LX Factory. Falta-lhe a alma que merece um local de culto!
Tropeçamos na calçada revestida de irregulares pedras pretas e submergimos neste ambiente underground chic que, afinal de contas, tem uma vida muito própria em horário laboral.
Entre estruturas corroídas pelo tempo e pelo abandono de décadas, espreitamos pelas portas abertas e pelas janelas sem estores e descobrimos um mundo experimental e de cuidado design, gente que espreita para uma população maioritariamente Apple Lover, artes que se confundem com ateliers de bricolagem e de atividades de tempos livres, luzes que são focos e que destacam os detalhes, o branco interior contra o exterior encardido, triste, escuro e industrial que ninguém ousa retocar.
Por instantes julguei que o arco de ferro forjado me tinha teletransportado para as luzes frias de um fim de tarde precoce da Europa do Norte do requinte e das formas funcionais.
Mas não. As travessas esconsas, pejadas de automóveis não (mal) estacionados estorvam as obras de arte urbana que escorrem das paredes em tons de pastel e complicam a osmose da reflexão na arte, a tecnologia e o verde da terceira vaga de Toffler, os grandes espaços e criação nórdica e recordam-me que estou em Alcântara, entre o rio e a encosta, cercado de becos e coberto pela ponte.
Mas debaixo da ponte a fábrica renasce na era pós industrial, incorporando as influências genéticas do bairro popular que a cerca.
“Alegria no trabalho”. Afinal de contas, uma atenção mais cuidada revela-nos que, os inspiradores deste espaço, querem mesmo que ele se torne um local de culto. Não no arco de ferro forjado mas bem mais alto no depósito de água, entre a fábrica e a ponte.
Alegria no Trabalho. Também tem conotações, mas tudo tem um preço e um depósito a verter alegria das alturas dá uma alma especial ao local.
Aventuro-me, “no único edifício que tem quatro andares, e sobe ao segundo andar e a exposição está nos corredores”.
Não era no segundo, era no terceiro. Ou então era no segundo e o prédio só tem três, porque o zero não conta. Complexidades de índole industrial.
Procuro a única escadaria disponível. Não tem rececionista, nem segurança, nem caixas do correio, nem hall de entrada. Apenas alguns cacifos debaixo do segundo lanço de escada. Estamos num novo conceito, sem mordomias nem preconceitos.
Subo, a medo, as escadas sombrias, como se estivesse a trespassar espaço restrito e proibido. Cruzo-me com elevadores industriais de ferro que não funcionam e com artefactos, que eu diria serem máquinas originais de um qualquer passado.
Espero a qualquer momento ser barrado por alguém mas ninguém te liga. Meninas de caneca (de latão) de café na mão, paquetes com grandes embrulhos, rapazes de óculos de aros grossos, juventude de diversas idades.
E tu sobes, vão de escada em vão de escada, e entras nos corredores, enormes corredores do comprimento do edifício de quatro (ou três) andares, e espreitas para dentro das salas, todas de porta aberta, uma porta e uma claraboia, uma empresa, e ouves vozes que falam ao telefone numa língua chamada esperanto.
E ninguém te liga, porque não há segredos nem ameaças que incomodem estes espaços imaculados, sofisticados mas funcionais e ninguém te pergunta porque rondas por ali porque, se o fazes, deves ter alguma razão para isso!
Descontraído, informal, redentor e com vocação universalista
E fui subindo. E fui perdendo a vergonha. E fui espreitando “ um olho no burro e outro no cigano”, as fotografias dos premiados coladas na parede, e a porta ao lado aberta, a mesma Apple, os mesmos rostos concentrados e a arte que emana destes espaços absolutamente funcionais, que contrasta com os temas de desespero e pobreza, na parede do lado de fora.
Apenas um tema em comum: “Dar a volta” é o tema da exposição, tanto dentro de portas como no corredor.
Desço devagar. Começo a habituar-me à era pós industrial: pouca preocupação com os exteriores e com o impacto da primeira imagem, concentração total na essência dos interiores!
E ainda me dizem boa-tarde!
Volto para a calçada tortuosa de pedra gasta e os sons da noite começam a apoderar-se deste lugar numa metamorfose esperada. Os carros vão abandonando o local e as sombras escapam-se dos faróis que incidem nos cartazes rasgados, nos grafitis que contrariam o cinzento e que realçam a luz do fim de tarde.
Na livraria fumegava-se como antigamente. Não, ainda mais que antigamente porque a malta acendia os cigarros quando entrava pela porta dentro. A dona fumegava atrás do balcão. As mortalhas espalhavam-se na mesa de uns estudantes, entre restos de torradas e sebentas escolares. Um velho pegava num livro e sentava-se na mesa do bar, apenas para fumar um cigarro.
Afinal de contas, ainda resistem espaços pré industriais na fábrica de Lisboa.
Saio combalido para a rua, sem ter conseguido furar o nevoeiro e identificar novos talentos literários e sou atraiçoado pela bexiga.
Nova descoberta das muito latinas latrinas fabris, com lavatório de pedra e portas de madeira de fecho debilitado.
Decididamente porco e pré-histórico, como a transição do dia para a noite.
No largo do Calvário – a praça mais intermodal da Lisboa pré- Expo - a fauna é mais terrena e o movimento é fervilhante, pessoas que correm atrás dos autocarros, dos elétricos, miúdos que vem da escolha, no topo da colina e para lá da ponte, velhotas de bengala que descem á rua, operários e trabalhadores do comércio que se atropelam nos passeios demasiado estreitos, num microcosmo de seres que se separam longamente das suas sombras de princípio de noite.
Este contraste dos dois (quatro) mundos – o dia e a noite, o Calvário e a modernista fábrica de Lisboa – é fascinante, para quem o decide olhar, como se fosse a primeira vez.
E paro nas passadeiras, sem as atravessar, encosto-me às paredes sem cair e olho de baixo para cima, e descubro que o tabuleiro da ponte já faz parte do bairro, no ruído do metal incessantemente pisado pelos automóveis que desconhecem de todo a vida cá em baixo, e na moldura das varandas dos prédios altos que competem entre si por um lugar ao nível da ponte.
Tomo um café. Vejo passar nas minhas costas o elétrico amarelo. Imagino a composição. Saio para a rua. Fumo um cigarro e espero. Haverá mais 25? Preparo a camara e concebo um final em grande, como o dos westerns em que o herói se afasta em direção ao horizonte no pôr-do-sol. O cigarro acaba e continuo à espera. Encosto-me ao posto de transformação que faz tic-tac. Será que pode explodir? Finalmente o amarelo aparece na curva e instala-se no largo do Calvário. Fixo demoradamente o cruzamento de cócoras e de camara preparada. Sinto-o aproximar-se nas minhas costas e foco o espaço vazio. O guarda-freio adivinhou que o vou alvejar pelas costas e para antes do cruzamento. Imagino a expressão maliciosa do guarda-freio. “Aguenta-te, que vais sofrer”. E eu sofro, já me doem os joelhos. Finalmente, ouço o tiritar do elétrico em andamento e ele aparece-me no canto da objetiva. O elétrico geme e o posto de transformação faz tic-tac. E eu disparo. Uma vez. Duas vezes, e ele para no cruzamento em pose provocante, uns segundos apenas. E depois parte em direção ao horizonte, atravessando a ponte sobre o Tejo em terra firme. E eu levanto-me. Sopro os restos de pólvora e fico muito contente comigo mesmo.

Alcântara vive debaixo da ponte mas ninguém se parece importar com isso!



sábado, 19 de outubro de 2013

Oeste Menor II – Lourinhanosauros


Meio-dia e meia hora e o restaurante começa a encher-se de professores e alunos da escola vizinha, vendedores e empregados de escritório, e todos parecem conhecer-se, entre a sopa de grão com massa e o arroz de peixe que, por aqui, se serve ao prato “ porque me custa ver o desperdício” de quatro euros e meio.
Afinal de contas esta vila do Oeste profundo – sim, também há profundidade no litoral às portas de Lisboa – vive numa paz rural e poupada, entre a autoestrada e o mar, num descuidado visual, próprio de quem não tem tempo para os assuntos urbanos, nem património monumental para atrair multidões.
A Lourinhã é uma não zona, encravada entre os mosteiros e os castelos do norte e a grandeza absorvente da capital do império, onde mesmo as praias de areia branca e reputação aristocrática sofrem de uma súbita interrupção no mar encapelado mas feio e feroz do Porto da Barcas, local esburacado e entrincheirado pelo mar e pelo casario desordenado e nada reluzente.
O oeste por onde todos passam, sem parar.
Vimeiro a Sul, Praia da Areia Branca a Norte, mas não ali.
Excepto os dinossauros, milhões de anos atrás, segundo consta por vontade própria e os franceses napoleónicos que se terão enredado nas tortuosas geografias destes locais, esses por vontade dos ingleses (bom, e de alguns de nós também), também eles entrincheirados entre as Linhas de Torres e o regresso não desejado às origens.
(Aqui há alguma liberdade literária, porque não há referências aos franceses por aqui, e era no Sobral e em Torres – um pouco mais abaixo desta não zona – que se desencadearam as maiores e mais decisivas batalhas)
Consta contudo no assobio do vento que vem do mar em sopros largos e curvilíneos torneando os montes e penetrando no vale, que ainda deambulam almas penadas de uniforme napoleónico, nas perigosas e instáveis arribas da Lourinhã.
Pronto, e sem entender muito de escavações e bichos pré-históricos vejo-me na contingência de por aqui rondar sem destino nem companhia (não há gente na vila à hora do almoço, versão sesta ocidental e marítima, ou apenas a malta vai almoçar a casa?), esperando pacientemente (eu e os velhos do largo da igreja que me olham desconfiados, mas nada curiosos) a abertura do museu, que fechou para almoço das quatro entusiasmadas e orgulhosas colaboradoras e só abre as velhas portas depois das duas e meia.
Orgulhosas e de um brio profissional de quem sabe que nunca mais este local foi tão profícuo e famoso quanto há 100 milhões de anos!


E têm razão. Apesar de só e pouco impressionado com o espólio etnológico e com a sala das profissões, de dinossauros percebem eles.
E, apesar de só no pavilhão da paleontologia, rodeado de bichos enormes (e, ainda por cima carnívoros), não senti muito medo, porque de facto só restavam ossos e todos os placards me garantiam que já tinham morrido há uns largos milhões de anos.
E estes não são tão espectaculares quanto as réplicas de materiais sintéticos doutros lugares, mas são genuínos, ossos, ovos e a reconstrução do grande carnívoro que atravessa a sala e cujo nome se me eclipsou!
E as descobertas de ossos continuam!


Museu da Lourinhã descobre novo fóssil de dinossauro carnívoro e termina Agosto com uma mão cheia de novos achados de dinossauros.
Terminou na semana passada mais uma campanha de verão do GEAL – Grupo de Etnologia e Arqueologia da Lourinhã – que tradicionalmente concentra as suas escavações nesta altura do ano, nos afloramentos do Jurássico Superior da Lourinhã, com cerca de 150 milhões de anos.
Este ano, os resultados incluíram pegadas e ossos, com destaque para um dinossauro carnívoro de pequeno porte, com menos de dois metros de comprimento. Este esqueleto de dinossauro não está completo, mas está muito bem conservado e articulado (com os ossos na posição anatómica, tal como em vida), o que é muito raro. A análise preliminar indica que poderá tratar-se de um representante de um grupo de dinossauros carnívoros raros em Portugal, os celurossauros.


sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Oeste Menor I – Bhuda Eden



Budas, pagodes, jardins japoneses e dragões espalham – se ao longo de um vale primorosamente relvado, numa revelação Oriental do benfeitor, em terras saloias do Oeste.
Integrado numa quinta vinícola de planícies e encostas soalheiras, o parque revela-se nas suas traseiras como a última extravagância do benfeitor, ainda com as acções em alta.
Chegar à Quinta dos Loridos pela manhã cedo é uma experiência desconcertante porque falta o roteiro, uma contextualização histórica e geográfica ou uma harmonia narrativa, apesar das explicações no site oficial.

“O Buddha Éden Garden é um espaço com cerca de 35 hectares, idealizado e concebido pelo Comendador José Berardo, em resposta à destruição dos Budas Gigantes de Bamyan, que foi, um dos maiores atos de barbárie cultural, apagando da memória obras-primas, do período tardio da Arte de Gandhara.
Em 2001, profundamente chocado com a atitude do Governo Talibã, que destruiu, intencionalmente, monumentos únicos do Património da Humanidade, o Comendador Berardo deu início, a mais um, dos seus sonhos, a construção deste extenso jardim oriental. Prestando, de certo modo, homenagem aos colossais Budas esculpidos na rocha do vale de Bamyan, no centro do Afeganistão, e que durante séculos foram referências culturais e espirituais.”

E a paz reina, de facto, nesta manhã cinzenta de meio de semana, sem visitantes de monta, em torno do lago espelhado, do verde dos campos e de uma enorme quantidade de estátuas que pretendem sintetizar todas as geografias de um Oriente milenar num espaço contíguo e alcançável pela vista humana.


Desconcertante o esforço de síntese do benfeitor porque, se a legião de guerreiros (de terracota?) evadidos da sua cova, perfilados na encosta perante o lago e o pavilhão (chinês / japonês) são uma alegoria rica em cores e em interpretações livres, nos sentimos incapazes de integrar o significado dos Budas que rodeiam a paisagem, o lago, o pavilhão chinês, e os guerreiros de terracota, para além de outras interpretações de arte moderna ocidental que ocupam os espaços livres de vista privilegiada.
Desconcertante e de valor artístico (por vezes) limitado. É verdade!
Mas algumas das peças de arte contemporânea que começam e imergir entre as obras que ainda não terminaram em novas zonas do parque realçam o esplendor do parque e da relva.
Apenas não sabemos porque estão ali!
Esta Ásia de miniatura que, cada vez mais, se aproxima do Ocidente contemporâneo é provavelmente um local de união de culturas – independentemente de detalhes como a coerência expositiva ou do contexto –
Rodeados de vinhas e sobreiros, nesta experiência de elevado teor psíquico, celestial e de reflexão interior (não fossem as moscas que nos atacavam, vindas dos campos agrícolas em redor) que promete um dia vir a ser um espaço de Land Art com assinatura.

Assim os guerreiros de terracota permitam!


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A tribo do surf desceu à praia do Baleal



Os fatos pendurados nas varandas revelam que o campeonato do mundo de surf esgotou as camas com vista para o areal
Os ninjas forrados de preto passeiam as pranchas debaixo do braço, no parque de estacionamento, no alcatrão e no areal, ziguezagueando como pequenos tubarões em terra firme (sim, há tubarões pretos na costa), precipitando-se no mar moderadamente ondulado, tímido e retraído pela impetuosidade da horda e pelo entusiasmo redentor de centenas de seguidores do Deus das ondas.
Atrás das dunas, a ausência de vestiário justifica cenas de nudismo informal e descontraído, porque os fatos estão molhados e os automóveis dão uma falsa sensação de proteção perante olhares fortuitos, mas involuntários.
Entre o preto e o cor de pele há resquícios de flower power na frente ocidental, esfolados na Ford Transit de matrícula britânica que desperta dos buracos de ferrugem, portas abertas de correr, e a certeza de que conheceu os Beatles, ainda novos, e muitos anos pela estrada fora.
Mas à medida que rolamos no asfalto abrasivo em direção à ilha – que tecnicamente é uma península – torna-se evidente que esta multidão, em forma de fauna, é muito mais difícil de definir do que se imaginava.
No estacionamento pejado de caravanas século vinte, a roupa estendida é apenas mais um obstáculo para as centenas pranchas que entopem as escadas do areal, e que se impacientam perante uma legião de voyeurs, esses manequins de revista social e roupas de marcas sonantes e cheiro a maresia.
Estes seguidores sem prancha, tal como os campeões, exibem-se perante fotógrafos, televisões e multidões.
Ao meu lado, por detrás dos vidros protetores de um veículo familiar e moderno, uma morena consulta o iPAD com um jeito profissional e não sorri nos segundos que cruzaram os nossos olhares e embrenha-se num casulo de quem não está à espera de ninguém. Eu apostava que ela é namorada de surfista do século vinte e um, cabelo escorrido, fato novo e prancha a brilhar, nada o género dos dois que se atravessam à frente da grelha do meu automóvel de luxo (afinal de contas qual é o teu papel?), ressequidos e desgrenhados de tanto mar, areia e chuveiro de praia sem champô nem amaciador.
Espero um cheiro de profunda maresia tomada ao vento, mas o cheiro a frango assado é a única memória que o meu olfato guarda do momento em que abri a porta do veículo.
Animais de vocação universal, mais apreciados quando assados do que quando vivos, relembram-nos que dificilmente há peixe neste mar infestado de pranchas e tubarões pretos, apesar das esforçadas tentativas dos esporádicos pescadores de cana, que vão petrificando nas rochas salientes e desajeitadas nas baías do Baleal.
Mas no mar cheira a vento, maresia e imensidão em tarde de maré vazia, que se estende para norte até o horizonte se fechar em persianas de neblina, impossíveis de perfurar sem camaras de alto zoom.
Os pescadores de linha estarão afinal à pesca de surfistas?
A travessia para a ilha sobre uma passadeira de cimento, areal a ocidente e a oriente, é a melhor aproximação possível ao monte St. Michel nacional, com um infundado receio de que as marés nos persigam e varram o areal, os automóveis, os mirones e os surfistas.



Em dia de campeonato mundial de surf não há ondas nem marés indomáveis, mas o ambiente na falsa ilha mantém o glamour bretão de um qualquer início de século vinte, especialmente porque a estalagem, a casa das marés, é um nome tendencioso, porque desperta memórias cinéfilas, um casal de estrangeiros com os pés descalços e calças de bainhas arregaçadas debruçadas na esplanada com vista para a muralha arruinada e para as ermidas que evocam as reminiscências piscatórias locais (antes da invasão dos tubarões pretos de pés descalços).
Insistimos em transgredir pelo sentido proibido atravessado nas traseiras da ilha e o risco compensou.
Pássaros, ondas a sério e uma visão única de uma das últimas fronteiras do Império: Berlengas e o seu farol civilizacional, umas milhas a Ocidente do mar, revelam-nos que ainda somos uma potência marítima, bem para além dos limites e das amarras da mãe-terra.
Enquanto me lambuzava com o vento batido sobre as ondas, com o repentino orgulho nacionalista e atlântico e com uma vista sobre o horizonte recortado na rocha, nas verdadeiras ilhas para estômagos fortes, apercebo-me que se aproxima, saído de um quintal, de uma marquise de casa térrea e alugada, um suíço continental de brinco na orelha, chapéu de coco verde na cabeça, calções aos quadrados e prancha rosa choque.
Indiferente à paisagem e às nossas arrebatadoras vocações!

Malditos! 


segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A última fronteira



No Torre Poente – o mais próximo do mar da fuga e/ou da descoberta – reside uma exposição que destila História e (quiçá) desbrava novo prelúdio da verdadeira vocação lusitana:

A última fronteira, o porto de refúgio, o fim do mundo segundo a lógica geográfica (e cartográfica) chinesa!

Aos Indignados que acreditam na nossa vocação atlântica, esta exposição lembra que o Atlântico não deixa de ser vocação quando de fuga se trata.
Aliás não terão sido as Descobertas (como todas as aventuras no desconhecido, afinal) uma fuga (para a frente, é verdade) da estreiteza de uma Nação pequena?
Importante afinal, é estarmos debruçados sobre o mar, entre o fim de um Continente e o princípio do resto do mundo Ocidental, e esta Exposição lembra-nos que as desgraças dos outros são a nossa Luz.

“Chegamos à Praça do Rossio, o centro de Lisboa. Magnífico! Só quem vem de um país numa escuridão total, onde à noite é preciso andas pelas ruas a tatear o caminho, pode apreciar o que viemos encontrar, quando às duas da madrugada sentimos jorrar sobre nós aquela iluminação mágica das luzes na praça” - Karl O. Paetel

A chegada.
A cidade
A preparação para a Guerra
Os correios
A espera
As luzes na cidade
A informação e propaganda
O paraíso dos espiões
À procura de um visto
A partida

São doze salas de uma crónica de brandos costumes, enquanto o mundo se partia em cacos, à nossa volta.
Perdoem-me a insistência, mas hoje, as nossas receitas turísticas aumentam com o despertar da loucura dos homens na bacia do Mediterrâneo.
Não fossemos um país pacífico, pobre e pequeno (a teoria dos três P da diplomacia internacional) e poderíamos, hoje, ser acusados de foco de destabilização regional
Mas afinal de contas a nossa única arma e razão de existência é a surpresa para os povos atormentados do mundo.
Tão nobre quanto desbravar novos mares desconhecidos, com uma obstinada vocação do Ocidente.

 “ A Lisboa afluía tudo o que pôde fugir dos alemães, na Europa. Toda esta gente parou aqui, onde começam as ondas do mar” – Milos Tsrnhanski

Meu caro, chega de querer reinventar a História até porque, em 1940, todos fugiam de alguém e a última imagem de Alfred Doblin da nossa cidade era celeste e imperial:

“O navio levantou âncora na escuridão da noite, Lentamente foi virado e rebocado Tejo abaixo. A exposição do Centenário resplandecia como num conto de fadas, à nossa passagem. A sua mágica luminosidade foi a última imagem que tivemos da Europa envolta em luto.”

Sangue frio e Portugal no seu melhor!
Além disso, perdoem-ma a insolência e desculpem-me o humor negro, mas hoje Lisboa não é de todo um bom sítio para quem lhes pretende fugir! (*)

Torreão Poente, Terreiro do Paço, 2013


(*) Se algum dia tiver um cargo público e algum repórter tendencioso da vida pública, usar esta frase contra o meu nome, argumentando xenofobia e falta de sentido de solidariedade europeia, argumentarei sempre que se trata de poesia e o “lhes” tem um sentido poético lato, metafórico e sem destinatário preciso.


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Looking from (by) the Arch


Após quatro dias de chuva, o Sol invade a cidade
Finalmente.
Outra vez!
Não somos de todo um povo dado a nevoeiros prolongados nem dilúvios profundos.
E a moral hoje, entre as nuvens e uma manhã quente e húmida, do Sol que sopra para cima das nuvens, é incontornável.
Lisboa, que voltou a ser a cidade das cores magníficas do casario velho despejado sobre o rio, dos milhares de seres que invadem a Praça do Comércio de calções curtos e mangas cavas, numa peregrinação aos bons ares e à mentalidade cândida de uma capital com quinze graus acima do hemisfério norte.
E na subida para o arco, o bafo húmido de um dia de mudança climática interfere com a velocidade do elevador, encarquilha ainda mais a escada de caracol que nos conduz ao mecanismo, o protagonista do salão nobre da Augusta.
 (fará funcionar o sino ou o relógio, ou ambos, sempre com um minuto de avanço, uma preciosidade do relojoeiro de utilidade pública, preocupado com os transeuntes que não podem perder o barco para a outra margem)
Os poucos turistas que se aventuram escada acima, sem semáforos nem sinais de prioridade, fazem ecoar os seus passos nos tectos altos de pedra robusta, num som que serve de compasso ao sino que vai tocar, sempre de maia em meia hora.
O cão, espécie Lulu, conduz pela trela duas gaulesas, escada acima sem as largar, nunca saberemos se presas pelos incontáveis adereços argolados e presos em todas as cavidades menores, ou apenas pelo entusiasmo de levitarem em direcção ao terraço, e ao ar de Outono em tons de azul e cinzento.
(Terá o espécime de quatro patas pago ingresso?)
E lá em cima, sem grande companhia, a vista é, no mínimo, redentora, e a sensação de exclusividade compara-se à de um Imperador (porque não Augustus) que contempla um Império, um exército e um imenso povo que se espraia na praça em tons de prata.
E nem Lulu ladra nem a multidão exulta.

Olhando a cidade do topo do Arco da Rua Augusta é contemplação em estado puro!



quinta-feira, 26 de setembro de 2013

1/2 C - O filme



Não há história que não tenha um filme, mesmo quando não conseguimos escrever o seu final.
(E eu que adoro finais felizes!)
O filme ½ C é uma mini produção dedicada às nossas memórias e à memória dos ausentes que fazem parte da nossa história.
Só recordando a nossa história é possível estarmos sempre a construir um futuro, independentemente de sabermos que tem duração limitada.
E a nossa história continua, porque ninguém pode sonhar por ti!
Doutra forma, nenhuma das nossas mecânicas rotinas que constroem o nosso dia a dia, faria qualquer sentido!
Perdoem o tom levemente (!?) lamechas da introdução, mas é apenas a constatação de que a imortalidade não é palpável.
Sinais do ½ C.

http://www.youtube.com/watch?v=Zw7sa2BbvzU




sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A linha Verde


Hoje tirei folga e parti em peregrinação pelos locais mais improváveis, na senda da linha verde.
António Augusto Aguiar,15
Calçada de Arroios, 39
Campo Grande, 185
E a Alameda e o cinema Império, a Praça do Chile e o Jardim Constantino
A pé, tantos anos depois, é uma cidade diferente, de uma forma que chega a ser confrangedora, porque é diferente e, também aqui, recanto imutável de gerações emigrantes do seu próprio país, se sente a invasão do mundo e a exclusão dos residentes nos subúrbios deste pedaço de cidade central, a nossa exclusão, que sempre nos considerámos lisboetas.
No bairro de Arroios, aos mesmos velhos (que são obviamente outros) que sobem e descem as calçadas e as escadinhas, juntam-se as consequências da História que transformaram as redondezas da Almirante Reis num espaço de etnias difusas.
A descolonização, o êxodo dos povos subsarianos  a globalização, o mercado único, a queda do muro de Berlim, a crise económica, tudo se espelha nas ruas da velha cidade residencial, sem vista para o rio nem o glamour do centro da cidade.
E os rituais adaptam-se, como as portas se fecham e os negócios se transformam, como um bazar de emoções fortes entornadas para o passeio, como os alguidares de água suja e detergente muito usado, e os dejectos animais que se advinham vaguear pela noite escura de lampiões com desenho da era do petróleo.
Nada parecido com a pacata vizinhança de aldeia de província do mini mercado A Pérola dos Açores (na Rua Ponta Delgada, pois claro)
Na esquina do alfarrabista vive um cabeleireiro, mais abaixo um estabelecimento de depilação completa de porta aberta e clientes à vista.Não vi a padaria, já não há lojas de ferragens e, na inclinada Calçada de Arroios, emerge uma novíssima agência de viagens, de vidros espelhados e reclamo modernista
Nos jardins sobram sem abrigo de todas as nacionalidades europeias, pronúncias com sotaque e os idosos sem voz, mas também esplanadas e jardins infantis, cartazes de propaganda eleitoral e grandes, largas e frondosas sombras, porque nenhuma revolução cortou as árvores do jardim (nem as raízes de uns dedos de conversa entre as compras e a lida da casa).
Apenas os cheiros e a sujidade das ruas diferem, aparentemente.
Mas não há crianças nos jardins, talvez por causa das companhias incómodas que, por ali se instalam, nos bancos de jardim ou simplesmente porque não há crianças no bairro.
Mas há parques infantis.E o maior hospital de crianças da cidade.
Mas sente-se e respira-se um bairro, nas redondezas da Almirante Reis, diferente é certo, mais confuso e multi cultural  diria mesmo que, nalguns momentos, nalgumas esquinas, se reinventaram as origens árabes, apenas bazares, olhares suspeitos e nacionalidades indecifráveis.
Quando o tempo salta sem quotidiano e se constrói de visitas muito esporádicas, sentimos decididamente o seu efeito erosivo, a certeza de que afinal as vidas e os locais mudam muito mais rapidamente do que o hábito nos permite ver.


Campo Grande, 185 desfaz-se em ruínas, (porra!) enquanto gruas desfazem o jardim do Campo Grande, o lago seco e sem barcos, sem árvores e sem esplanada e, uns metros acima, renasceu o burburinho de novos estudantes, novos espaços universitários da era 2000 e os caloiros humilham-se nesta manhã muito abafada de Setembro às mãos dos veteranos.
No Campo Grande, duzentos e tal
Em Entrecampos, no que resta do Jardim do Campo Grande.
Na Alameda…


Felizmente permanece reluzente a António Augusto Aguiar,15.
Seria triste que a minha origem se tivesse desfeito com o tempo!

Afinal nem tudo mudou!