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quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Sunset Boulevard



O Adamastor, canto V, não é um monstro indomável.
Na pedra de Santa Catarina, o Mirador de Lisboa, há uma espécie de conto de fadas que abraça a estátua de pedra escura e formas indistintas, com uma absoluta ausência de temor.
Talvez porque neste Dezembro de amenas paisagens, o rio não é o mar, a autoridade fuma numa farda cinzenta e os outros fumam cheiros adocicados, arrastam os cabelos enrolados pelo chão de pedra polida, a música tropical exala sons de um exótico ardente e de uma paixão que aspira os inofensivos pecados.
Por isso o Adamastor não tuge, tão desconsolado pela sua incapacidade de amedrontar.
E a fauna precede a flora, o poder da flor e outras fábulas que não se contam às crianças.
Mas enquanto a luz se torna oblíqua e céu alaranjado, as figuras renascem em sombras, o casal passeia uma cadela de coroa de flores ao pescoço e longas tranças, armadas como um balão de São João, o curvado ciclista desagua do nada junto à árvore que se vangloria de ser mais imponente e de maior utilidade que o pobre Adamastor.
Ninguém se encosta, não é medo é apenas desprezo.
Devagar, devagarinho, aproxima-se pelo fundo da praça, uma jovem de caminhar ágil, uma gazela que faz questão de destoar da fauna arrastada e encardida tanto quanto as sombras nos permitem cheirar, sim, uma elegante jovem de roupas limpas e cores com personalidade, sim é ágil mas parece pairar em camara lenta entre uma massa de gente de roupas escuras e olhares sonhadores, ela aproxima-se vinda do fundo da praça, Catarina é o nome da praça, o nome dela não sabemos porque ela não fala, não diz, apenas levanta ligeiramente a cabeça à nossa passagem, uma forma de evidenciar a sua diferença, contorna os troncos das árvores centenárias, desce as escadas de pedra em bicos de pés, bailarina com certeza afirmam os olhos da gente que forra a encosta de pequenos faróis que piscam com a sua passagem, abre alas com um foco de luz que brilha nas suas pernas de brilhantes e ganga envelhecida, intromete-se entre a paisagem, o público e os músicos, contorna a multidão como se tratasse de um filme que tivesse parado e todos os figurantes se petrificassem de modo voluntário e, finalmente, chegou-se aos pés da grande estátua.
Acariciou as disformidades do grande Adamastor, estendeu-se diante a grande sombra que vigia o rio, esboçou um passo de dança – era definitivamente uma bailarina – seduziu o monstro com uma larga vénia que largou um eco na praça, construiu um pequeno altar de paus de gelado e lançou-lhe o fogo, transformando o monstro num objeto de culto, que esboçava um sorriso, a partir da luz da fogueira.
Aninhou-se no seu colo e fumou um longo archote que largava fumo, chispas e pedaços de erva.
A restante malta logo se desinteressou da gazela vudu, esperavam rituais satânicos e afinal de contas a ágil princesa das trevas apenas procurava conforto na experiência do velho.

Todas as tardes, antes do Sol dormir.


quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Afinal, Há Pai Natal



Ontem à noite seguimos o Pai Natal e as nove renas na sua viagem à volta do Mundo, através de uma sofisticada aplicação alimentada pelos satélites da NASA e por uma IMENSA imaginação.
(Corredora, Dançarina, Empinadora, Raposa, Cometa, Cupido, Trovão e uma nova, Rodolfo, a rena que tem o nariz vermelho, capaz de ver através do nevoeiro)
Tudo muito real, o número de presentes entregues, a sua localização precisa e uma velocidade quase furiosa com que se desloca entre os locais, as cidades e os países, nos minutos que antecedem a noite de Natal.
E não julguemos que o Santa se desloca, em órbitas precisas como se de um satélite se tratasse.
Em Santorini às 10:33, em Istambul às 11:01, em Colónia às 11:32, em Basileia às 11:35, em Marselha às 11;45 e, logo a seguir em Bilbao (ai que ele vai entrar pelo Norte) e, puro engano, Barcelona, Madrid, Tarifa (ai que ele vai entrar pelo Sul) e, puro engano, às 11:55h atravessou o estreito e deslocou-se para a Tunísia.
Desapontados pela redentora lógica ibérica do Pai Natal, convencemo-nos afinal que, com 3,9 biliões de prendas entregues e registadas, que este roteiro não passava de uma construção de cinematografia animada dos infantis americanos.
Às duas da manhã, lá voltámos a espreitar e, com a Empinadora na frente (e muito nos rimos da consoada), o cortejo do Santa atravessava o Oceano em direção à América prometida, sobrevoando com desdenho a cidade de Ponta Delgada.
A essa hora, já o Capitão Von Trapp, um bando de crianças geniais e a Julie Andrews atravessavam a fronteira da Suíça a pé, pelos Alpes verdejantes de Verão fugindo dos abomináveis nazis e seus bonecos de neve.
Sem rasto da Heidi e do seu avozinho, afinal produção japonesa de um após guerra longínquo.
Na rua da noite da véspera de Natal uma velhota resmungava à porta do café contra um saco de plástico abandonado ao vento, “lá dentro pagam dez cêntimos e cá fora deitam-nos para o lixo, deve ser gente rica” e amorfanhava o saco para dentro da carteira, um mecânico de rabo-de-cavalo, grandes pretensões e uma enorme falta de jeito (apenas ultrapassada pela humildade inexistente) forçava um pequeno farol fundido, com um braço enfiado na roda da frente e um bando de cegonhas a rir da sua imbecilidade, que se resolveria com um macaco e com uma chave de fendas.
Mais gratuito que o saco de plástico, mas tão sucateiro quanto um toque de midas não podia ser.
E o Sol desapareceu entre o fumo das chaminés (prova superlativa de que não há Pai Natal) cheiros a comida intensa e um vento cortante de Leste que nos fez lembrar um enorme suspiro de alívio da grande mãe natureza por finalmente o Natal estar a chegar.

E a partir.


segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Simbolos - CHRISTMAS’ EVE - Essência

Um dia, 09 de Dezembro, duas perspetivas, os símbolos e a essência, três elementos envolventes, o rio, o castelo e o casario ingreme e gasto, quatro bairros da cidade antiga, Graça Alfama Mouraria e Bairro Alto


Christmas `Eve é uma história de Natal, desenhada a dois ao longo de um mesmo percurso, partindo de visões individuais que, a cada momento, se transformam em dípticos que nos confrontam ou complementam na dicotomia entre a ideia de símbolos e da essência, duas palavras – e, mais do que isso, conceitos – que nos lembram o Natal.
Os símbolos são manifestações abstratas de uma ideia ou de um conceito, um elemento representativo que materializa numa realidade visível, algo não palpável, uma realidade invisível.
A essência é o que constitui o ser e a natureza das coisas, o caráter distintivo, puro, subtil e a ideia principal.
E quando, a pretexto do Natal, confrontamos os nossos diferentes olhares (afinal de contas partimos de duas ideias diferentes) descobrimos que as nossas imagens unidas por momentos, expandem a nossa visão individualista sobre o que nos rodeia, expressam a diversidade da nossa vivência e atenuam os significados das palavras.
A diversidade exprime-se na escolha dos objetos e das opções estéticas
O miúdo que olha para os símbolos com uma veia eclética, não há fronteiras estéticas ou morais entre o Pai Natal que procura subir à janela e as obras de arte urbana que lhe lembram épocas festivas, e as suas imagens adquirem vida própria especialmente através da vertigem dos prédios inclinados, das ruas ingremes, dos sinais ostensivos, tirando partido dos elementos, diria mais, submetendo (submissão dos) os símbolos aos elementos envolventes, o rio, o castelo e o casario, desafiando os observadores a encontrar as subtis singularidades que apelam a uma época especial, pois raramente uma época tão efémera se sobrepõe à paisagem do quotidiano que molda os seus habitantes, que ele prefere manter atrás das janelas do bairro.
O velho olha para a essência através de uma estética mais convencional, condicionando os elementos envolventes ao elemento principal, as figuras e as pessoas, enquadrando-as em cenários horizontais, planos e sem dinâmica própria (nem vertigem) percorrendo, um por um, os diversos imaginários de um Natal clássico, a árvore de natal, os sapatinhos das prendas, a presença dos avós e o sorriso das crianças, a religiosidade do momento e os reis magos, os cartões de boas festas, os heróis do fantástico e o circo. Sem se intrometer demasiado na modernidade da arte (a não ser na figura de Pessoa que, afinal de contas, bem podia ter sido o quarto rei mago) E até o bacalhau.
Mas o velho não consegue evitar a dualidade. É uma forma convencional de fazer frente às subtilezas do miúdo. E a dualidade, do ponto de vista do velho exprime-se, com algum desencanto, na solidão envolta em todos elementos principais da história, nos avós que arrastam as suas sombras, indiferentes aos sinais do meio envolvente, nas figuras que parecem sempre querer desaparecer na paisagem, nos movimentos apressados que parecem não ter tempo para prolongar a festa, para além de um momento efémero. Ou dos postais de natal que nunca chegamos a enviar.
É apenas uma forma de afirmar que o Natal também é a época dos esquecimentos perdoados.
E o velho concorda com o miúdo, que só se capta a essência quando isolamos aqueles nano segundos de felicidade efémera e os conseguimos congelar no tempo para, de seguida, os representarmos sob uma forma que nos permita disfrutá-los.
Quando conseguimos isolar, e depois perpetuar, as nossas mais profundas lembranças.
Que não é, de todo, diferente da ideia dos símbolos
Por isso mesmo, quando confrontamos as nossas visões, equilibramos os olhares entre as pessoas e a sua envolvente e reduzimos as diferenças entre o significado de símbolos e de essência.

Atenuamos o significado das palavras e expandimos as nossas perceções.


segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Na roda do Castelo



Na agitada esquina do Largo da Graça, o quiosque do homem mais importante do bairro está apinhado de gente menos jovem.
Na parede do prédio dos vizinhos, o dono da rua espalhou as capas de jornal e reuniu as forças vivas do bairro que certamente discutiam o tudo e o nada, para além naturalmente de futebol.
E nem a fúria eleitoralista da autarquia que arredonda passeios, transforma calçadas e entope parques de estacionamento, reduz o calor daquele momento, torna-o apenas um pouco mais denso e dramático, envolto naquela rede de obras em curso, com término previsto lá para o Outono.
Serpenteando o castelo a olhar o rio, saem vozes de dentro das janelas abertas que evaporam um cheiro a couves cozidas e a mofo da idade, a mulher de preto que assoma à porta da ruela e, perante a incapacidade de estender o pau da roupa, roga pragas a quem quiser ouvir, escandalizando os forasteiros com um “ nem com esta idade consigo enfiar o pau”, e a velha que grita do alto do segundo andar para a rua, reclamando não se entende de todo o quê, num idioma que o seu vizinho asiático parece entender com a única mão que tem liberta, enquanto rola calçada abaixo puxado por uma bilha de gás propano.
Na mouraria, onde já não há locais nem estrangeiros, tão intensa é a multiculturalidade dos seus habitantes.



Sentada nas escadas da igreja que espreita o rio, uma mulher de meia-idade, vestida com um longo xaile preto e maquilhada com cores pouco discretas desfere ataques certeiros à honra de uma terceira entidade, alguém que a sua ouvinte bem conhece, mas que não está lá para se defender.
Nem ela nem a ouvinte porque naquele Mirador há apenas uma mulher de peito largo e voz de fadista que repete a sentença, tantas vezes quanto o sinal de telemóvel falha e os cacilheiros se aproximam do cais do tabaco
A voz remete-nos para as casas de fado que povoam o quarteirão, mas a saudade não lhe turva as intenções.




Nem o silêncio recolhido do terreiro da feira da ladra em manhã de descanso.
Nem as sombras que se enrolam nos lençóis pendurados, cada vez mais furtivas, cada vez mais penosas, dos últimos bastiões da ordem antiga, das portas escancaradas dos alguidares que se despejam nas esquinas ingremes (porque as esquinas aumentam a probabilidade de dispersão dos incómodos) e já não é vulgar que as sombras te olhem na cara e retribuam um sorriso, sobretudo por cansaço.  
Nem o Pai Natal pendurado na janela aberta e sonora das vozes do interior, que tanto se esforça mas que jamais transporá o varandim rendilhado que reflete o azul do céu e do rio.
Nem o fim da linha, onde para o 28, e para onde se parece ter mudado o mundo inteiro, e os pregões ganham uma música de tons exóticos.
Os tuk-tuk continuam às voltas, mas duvido que alguém lhes explique estas cambiantes.
Um pouco mais acima, um nobre cavaleiro, ao perceber um entreabrir de uma porta no Castelo dos Mouros, atacou-a sozinho e atravessou o seu corpo no seu vão, sacrificando a sua própria vida em prol da conquista das forças cristãs.
Mas o guia do tuk-tuk ecológico que miraculosamente não atropelara um molho de espanhóis, pelo silêncio, apressou-se a descansar os forasteiros em suspense:
- Não, não foi ontem. Foi em 1147!

E eles soltaram uma gargalhada de alívio.


A voz do operário



Um homem de idade indeterminada balanceava a perna direita na proteção vermelha e branca que ali foi construída a pensar nos miúdos à saída da escola.
Balanceava a perna direita, de costas viradas para a rua e um olhar de soslaio para o movimento em cascata de duplo sentido que inundava a rua (imaginem) da voz do operário.
Mas o homem de cabelos grisalhos, de tez envelhecida pelo trabalho mas de olhos vivos de um militante da vida e de uma mobilidade para quem a reforma é ainda para viver, não prestava atenção ao movimento dos novos símbolos da cidade pós industrial.
Afinal de contas, a voz do operário nasceu num outro tempo, no seio dos operários da indústria do tabaco, há mais de uma centena de anos, muito tempo antes do tempo em que a vida de bairro passou a ser sinónimo de autenticidade e, portanto, uma cobiça desmedida da curiosidade alheia.



Entenda-se, com a conivência do próprio bairro que entendeu que, afinal de contas, é mais fácil viver uma vida com menos autenticidade, do que continuar a ser um bairro operário
E, entre a autenticidade desejada pelos forasteiros ávidos de exotismo social, e a perda de raízes resultado do contacto com os forasteiros, espera-se que nasça e persista uma relação mutuamente vantajosa.
Espera-se. Chama-se sustentabilidade.



Mas isso, parecia não interessar ao homem de idade indeterminada, de boné de xadrez que cobria uma calvície avançada e de feições determinadas.
Olhava sem pestanejar para a escadaria de pedra que invadia os corredores deste edifício de uma imponência quase revolucionária e esperava, balanceando a perna direita, como se estivesse a testar a agilidade de movimentos e a destreza dos gestos.
Por isso mesmo, era um homem novo, certamente e a sua pose ostentava traços de arte nova, mas uma personalidade construtivista, afinal de contas de uma coisa não parecia haver dúvidas: era um homem do bairro e de origens operárias
A sirene tocou, era meio-dia e podia mesmo ser a sirene da fábrica, mas era afinal o toque de saída da escola primária dos miúdos do bairro e talvez do quartel dos bombeiros do bairro da Graça.
Talvez, mas vindo dos corredores austeros do edifício construtivista (digo eu que não sou especialista) saiu a correr um bando de putos.
Bom, era só um, porque os outros corriam corredores fora como uma gincana sem pista.



E esse, desceu as escadas aos saltinhos e lançou-se no colo do avô, o homem de olhos vivos, chapéu no chão e uma calvície que brilhava de orgulho e muita experiência porque a grade vermelha e branca estava ali mais para o proteger a ele do que o neto.
Atrás deles, o movimento incessante de elétricos 28 e de veículos elétricos de diversas rodas derretia o Sol de Lisboa na calçada que, assim de repente, (tão breves os segundos que não chegam para captar a essência), teria transformado a rua da voz do operário numa imensa pista de ski, com neve fresca e sem socalcos.
Mas parece que só eu é que me dei conta desta impossibilidade meteorológica.
Afinal é Natal, não é?



quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

5 Ensaios sobre a essência



quando se isolam as memórias...




quando se levanta voo...




quando se congela o tempo...




quando não se reconhece a distância...




quando se desafia os limites da órbita...

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

A negação (da apologia) do Não


Era uma vez uma história de um menino rebelde e despreocupado que só conhecia a palavra não. 
Mas era um menino muito afirmativo, na forma eloquente como respondia sempre não às perguntas dos outros meninos.
Pronto, dos meninos mais velhos a quem nos habituámos de chamar de adultos.
E o entusiasmo de dizer não era tão grande que, por vezes, dizia que não ao próprio não.
Os meninos mais velhos, que associavam esta rebeldia a má educação e à vida fácil que habituaram os meninos mais novos, desesperavam e chegaram a ponderar medidas mais drásticas.
Sei lá...nem eles sabiam, porque o menino mais novo parecia uma avalanche de neve a deslizar pela montanha em direção àquela aldeia tão organizada e tão limpinha, cinco ruas na direção norte sul, três ruas na direção leste oeste, casas de madeira escura e janelas repletas de flores vermelhas, brancas e amarelas
Como se a Heidi estivesse a atacar o avôzinho com uma faca de cozinha


 Ah,esqueci-me de contar que, nos últimos tempos, as minhas noites têm sido povoadas por sonhos bizarros e, imaginem, têm sido tanto mais bizarros quanto familiares me parecem.
Ontem sonhei com um edifício em construção,numa nesga de terreno impróprio e escarpado, com um quintal para o supermercado e sem apelativos comerciais de maior, dei de caras com o pai Natal, um barbudo esgrouviado que vestia a lingerie do(a)s outro(a)s  e tinha uma fortíssimo sotaque italiano.
(o sotaque é a parte mais importante da história) 
E o prédio tosco, mas esforçado, ganhou uma vida nova.
Acho que acordei com suores frios e nos pobres e  nos inocentes dos lençóis, não sentia qualquer relevo que permitisse distinguir o momento em que o despertador tocara.
E, tal como nas outras manhãs, ontem guardei toda a sequência fresca e coerente na minha cabeça, tão coerente que coincidiu com a notícia de abertura do noticiário das oito da manhã.
Dei por mim a pensar se não seria melhor começar a fazer as perguntas ao contrário.
Talvez resulte
Os especialistas chamam-lhe psicologia invertida
Outros chamariam uma mudança de perspetiva



domingo, 27 de novembro de 2016

A linha de fora


Alerta amarelo, um mar revolto, um céu pesado.
E eu fazia riscos de água nas vidraças obstruídas por um inverno que chegou do mar.
( e enviava mensagens como qualquer juvenil)
Tão súbito que nos deixou de vistas embaciadas
O comboio movia-se na direção da tempestade, sem a convicção dos corredores de fundo que o enfrentam na linha de fora.
O comboio, esse animal gasto pelo tempo e pela orfandade, deixava-se conduzir pela manhã dos sonos profundos, pelo amanhecer tardio do dia das não pressas.
Domingo
E a chegar a Algés já não fazia riscos de água porque tinha as mãos frias e o nevoeiro tornava inútil a compreensão da paisagem.
O nevoeiro da linha de fora.
A linha confunde-se com a marginal, mas não é a mesma coisa.
Partilha com o mar a falta de um desígnio, mas esconde-se dele a espaços porque não lhe perdoa a imensidão, a liberdade e a ausência de uma direção precisa.
A linha vive de ordem, não lhe é permitida saltar dos carris.
E de ausências
A pobre linha que, em tempos, partia para frança e voltava e que, há menos tempo, se orgulhava da sua ordem, um minuto era um minuto, parece viver de ansiolíticos e de indiferença (diria mesmo, afronta) perante os cronómetros de números mecânicos que a confrontam em todas as estações com a sua súbita falta de rigor e orgulho.
Os tempos são duros para (uma certa fama de) a aristocracia decadente.
Indiferente aos símbolos do passado e invejosa das novas criações que a bordejam.
Porque se o mar é errático, também é grande e intemporal.
Porque se os novos símbolos do presente que a cercam invocam mesmo uma certa austeridade na forma e nos propósitos, são funcionais, arrojados e têm bons propósitos
Entre os símbolos do passado, alguns resistem, outros perpetuam-se e os últimos desfazem-se nas curvas do mar.
Só a linha envelhece mal, estava cada vez mais errática, menos funcional e resiliente.



De tanto andar de um lado para o outro sobre os carris de um sentido único, infiltrou as poeiras do que nasce, do que se perpetua e do que morre à sua volta.
A marginal e a linha não são a mesma coisa, mas delimitam o nosso território.
Fazem parte do nosso imaginário
O ruído metálico arrastado pelos ventos sul, que antecipam chuva.
O cheiro a madeira queimada, que pronunciam verões abafados.
É nossa.
A linha de fora e a linha de dentro.
E (mesmo que seja uma mentira conveniente) não me incomoda que nos tratem como aristocratas decadentes.
Quando – lá para o Verão – chegarmos à baia, vamos ter uma bela história para contar.
Esta á a primeira manhã do nosso novo projeto
Já lhe arranjei nome G. “os símbolos da linha de fora”.
Mas hoje não foi um grande dia. A linha de fora estava agreste
Vento e chuva.

Não passámos de Alcântara


quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Os filhos de uma Lua Cheia




Lucy in the Sky with diamants


 Frozen zone


Waiting for the big wave


 I´m a beatle walking to the moon


Low tide


Turning back sunset shadows


 Frozen zone nr.2


Sons of the Moon

sábado, 12 de novembro de 2016

A rapariga da casa esperança


Esperança é um imenso prédio assombrado por uma serpente de ruas que não a deixa descobrir-se.
Uma entrada larga, um corredor despojado e uma luz fria e ventosa que se atravessa no caminho, como uma espada mágica de um ser extraterrestre de olhos grandes e expressão simpática, despejando na diagonal o pó das claraboias do pátio central.
Esperança é o nome próprio da casa Esperança e a primeira imagem é de um cenário ficcional pós apocalipse, um espaço encardido, a quem faltam peças mas que mantém alguns sinais de dignidade com tempo de verbo passado.


As janelas não batiam com o vento porque, num amanhã do dia seguinte não é esperado vento, apenas poeiras e calor.
A vida da Esperança está nas histórias que ela conta.
O apelo que os espaços em bruto exercem sobre os contadores de histórias, artistas e curadores é irresistível e dispõe-se a múltiplas interpretações; minimalismo que afasta as distrações sobre o não essencial, que realça os projetos ou antes uma forma de dramatização prévia para condicionar as mensagens e nos transportar para uma pós realidade?
E poderá a Esperança viver de despojos, ou a Esperança transforma-os num novo começo?
Definitivamente que os tempos de hoje são ambíguos porque todos os factos têm necessariamente, e pelo menos, duas explicações tão coerentes em si quanto opostas entre elas.


E enquanto olhamos para a Esperança, a casa Esperança, de diversas perspetivas não fazemos ideia, sequer, se a História se repete ou continua (evolui, diverge ou outra trajetória não circular)
São as histórias da casa Esperança que a habitam e a transformam num lugar de beleza estética e de coerência narrativa.
E a rapariga da casa, de uma alegria contagiosa, de uma curiosidade sem pudor e de uma vontade de responder a tudo o que nem sequer te lembraste de perguntar.
Levitava entre os cantos do pátio interior, divagava com sentimento entre as estantes repletas de livros, histórias, autores e portefólios e lembrava-nos que, nesta coisa da cultura, o GPS é um instrumento inútil e fora de época.
Afinal de contas há esperança entre os despojos de guerra, serpentes que nos enrolam, e mais de uma dezena de histórias invulgares.
Começo a convencer-me que os lugares despojados não pretendem condicionar o nosso futuro, mas antes tornar mais lúcidas, as mensagens essenciais do nosso presente.
A rapariga da Esperança sorri e acena com a cabeça em sinal de aprovação e responde-me que vale sempre a pena voltar, mesmo hoje, que é o último dia.
Dos encontros da imagem, em Braga.






segunda-feira, 10 de outubro de 2016

O Bairro das Artes



Vinte e três de Setembro de dois mil e dezasseis.
Por lapso, ia recuando aos anos mil e novecentos.
Afinal de contas, todos temos as nossas dificuldades em absorver as modernidades.
As minhas recordações do Bairro Alto transportam-me para décadas em que a boémia era muito nossa, porventura pouco vanguardista, esporadicamente internacional, vivida de toalhas de quadrados vermelhos e brancos, pequenos copos de pé, pipas de vinho tinto não certificado e charros fortuitos nas esquinas sujas de um bairro popular.
Por lapso, não.
Porque na noite do bairro das artes as referências são ambíguas
Talvez porque, neste dia, a voz é dos artistas e eles contam as suas histórias em tons baços, como se a intemporalidade cobrisse a sétima colina de um manto de nevoeiro bom, daquele que realça apenas os protagonistas e simplifica os cenários.
O Tiago que se confunde com os paradoxos de quem visita e habita na cidade, perguntando-se em voz alta na sala do lado, até que ponto a autenticidade de um lugar que se habita pode sobreviver aos milhares de visitantes que a procuram (a ela autenticidade) inspirar em cada calçada, em cada praça, em cada pregão?   
O Frederico que se perde na natureza (da margem) para iniciar uma viagem coletiva ao mundo selvagem da sexualidade afirmativa
A Inês
A Isabel
A Sofia
E em todos os lugares de exposição há um quase revivalismo resistente, nos palácios pombalinos do bairro de sétima colina, edifícios gastos pelo tempo, mas altivos de um orgulho decadente, aquele cheiro a boémia pobre e desleixada que percorre os corredores e que nos ilumina o passado em que ninguém duvidava da autenticidade, e não havia hotéis de charme.

Carpe Diem, sétima colina, e não te esqueças de respirar!  

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Horrendous Jack



Mórbido
Sórdido
Detalhado, explícito e muito visual
O especialista de Jack, um barbudo historiador que aceita gorjetas, sem escrúpulos ou arrependimento, adapta-se ao numeroso público de entusiastas de Jack, para ondular o seu discurso e a sua pose num mar revolto de detalhes científicos e exacerbadas especulações teatrais.
O historiador é provavelmente um ator e esta é, a sua declamação preferida.
Não é uma tarefa fácil para este jovem Jack, porque não é nada visual para estes amadores de Jack The Ripper, a Londres Oriental do século dezanove, longe do fulgor da cidade vitoriana, o bairro das docas, pejado de homens duros e violentos que invadiam as ruas e os bares da noite, sobrelotado de párias de sem abrigo e de gente desamparada, e o último refúgio de mulheres desesperadas, que apenas sobreviviam se vagueassem nas noites perigosas e se sujeitassem aos desejos dos homens duros, violentos e sem escrúpulos.
Mesmo quando ele agita os braços, abre muito os olhos e se desfaz em sórdidas descrições dos assassinatos do Jack.



É que Whitechapel, Brick Lane e Shoreditch são, hoje, os locais da nova revolução urbanística de Londres, e não há esquina em que, acreditando que vamos encontrar Jack, não tropecemos em beautiful people ou hordas de turistas à procura de Jack.
E grandes prédios de vidro luminoso.
E restaurantes indianos.
E uma onda de cidade nova que se apropria dos poucos espaços intactos, desde o famigerado século dezanove.
Até parece bizarro que os ingleses, que tão ferozmente preservaram a Vitoriana West End, se mostrem tão ferozes a destruir as reminiscências da história destes bairros.
Ou não. Culpa de Jack porventura, aparentemente nenhum urbanista da cidade parece suportar o passado lúgubre da East London.



Mas ele esforça-se por asseverar que Jack será sempre um mito.
É que, quando todos os vestígios do tempo desaparecerem deste bairro, é a sombra, a fama e a façanha de Jack que, provavelmente, lhe garantirá o emprego.
Ou não.
Jack é um mito, porque nunca foi apanhado, porque desafiou os desencontros das duas polícias de Londres no espaço que era a zona de fronteira, a zona de ninguém e a linha que ninguém ultrapassava.
E sobretudo porque J. não poderia, segundo os especialistas, um homem (seria um homem?) com origem neste local doentio, lúgubre e miserável.
Pelo estilo
Pelo à vontade.
Pelos conhecimentos de anatomia humana
Pela forma furtiva como se movia.
Cento e dezoito anos depois, Jack parece ser o único sobrevivente deste imaginário impiedoso, não fosse impossível, ele não ter morrido.
E os entusiastas continuam a especular.