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terça-feira, 10 de dezembro de 2024

A estrada do mal

 


A ponte da amizade atravessa a fronteira entre a Bulgária e a Roménia e, conforme os cronistas búlgaros, a terra romena fica na estrada do mal, na rota das invasões que se derramaram, durante séculos sobre a Europa, vindas do Oriente  
Entre Ruse na Bulgária e Ghiorgiu na Roménia, o Danúbio tem vistas largas, é um rio que insiste em manter as distâncias, como convém a um rio de respeito e de fronteira, mesmo em época de secas prolongadas nos Balcãs orientais.
Até porque, apesar da ponte pretender celebrar a amizade entre dois povos vizinhos que, por felicidade deles, se encontram hoje do mesmo lado da História, não há química entre vizinhos nem há vestígios de Schengen no interior das fronteiras da Europa, não há agitação mercantil a povoar os espaços comuns nas fronteiras abertas, é uma fronteira de baldios, uma ponte ferrugenta, como os restos abandonados das indústrias obsoletas plantadas ao longo da linha , parecem os baloiços dos quintais da aldeia dos pais, quando os miúdos crescem e abandonam as origens.
Mas às sete e dois da manhã, na estação de Sofia Sever, um subúrbio improvisado pelas obras na estação central, não havia sinais de ambiguidades fronteiriças.
Apenas as profundezas de um destino interior, sem outras ambições que não a dura rotina de bairro.
A noite quase matinal dos arrabaldes de Sever, realçava as sombras e acentuava a incerteza quanto ao nosso meridiano de partida, hoje, porque o alfabeto não é amigável e as portas de alumínio que davam acesso à gare, conferem-lhe uma auréola de apeadeiro pobre, uma realidade crua de gente que afunda a cabeça na penumbra do bar de estação, onde as toalhas de quadrados de plástico vermelho e branco são tão encardidas quanto as rugas carregadas de um povo que aparenta ter um despertar difícil.
Sem vestígios do glamour do expresso do oriente.
O táxi tinha sido silencioso e discreto, o taxista sabia que nos conduzia pelas avenidas de um subúrbio que encarcerou a defunta ruralidade búlgara ao longo de dezenas de anos de fuga da pobreza extrema, em milhares de prédios, que não são altos nem baixos mas são cinzentos, brutalistas e monótonos, especialmente de noite, quando escondem as gentes, e embalados por esta sonoridade antiga e estranhamente tão ocidental que nos empurrava para um lento acordar, e eu tive uma visão de  que este som só podia ser um embrião de uma cassete fecundada no ventre de um autorrádio.
Como na noite, feita de madrugada, em que aterrámos em Sófia.
E, neste regresso ao século passado, apenas a palavra chá nos permitiu entrar no mundo deles.
E quando o Sol iluminou os carris com a sua luz oblíqua em direção a nordeste, descobria-nos uma paisagem saída da marcha patriótica de um povo que vestia fardas sempre com um número acima do que o corpo pedia, os chefes da estação ferroviária de mãos escondidas nas mangas do casaco castanho e cabeças enterradas no boné de pala que pretendia irradiar autoridade, os outros sem farda mas também vestidos de tamanhos desmedidos, afinal de contas a roupa à medida de cada um é uma intolerável manifestação de egoísmo liberal e ocidental.
Ao som da marcha “meu país, minha Bulgária” encostamos os narizes à janela embaciada do nosso compartimento, gasto pelo tempo, mas aquecido pelos combustíveis fósseis que, desde sempre alimentaram as democracias populares. (a marcha só tocava dentro da minha cabeça, bem entendido, não havia altifalantes no comboio)
Reconheço que as poucas horas de sono e o amanhecer disruptivo me retiraram discernimento, me confundiram as memórias com os sonhos e a realidade com o imaginário, mas nos quarenta e cinco minutos em que o comboio se quedou, imóvel e silencioso, num apeadeiro da Bulgária central, resultado de uma avaria incompreensível, especialmente quando explicada em carateres cirílicos, em longos debates entre os passageiros na plataforma, eu reli cuidadosamente as palavras do escritor Cláudio Magris no seu livro “Danúbio”, que afirmava ainda nos longínquos anos oitenta do século passado “ os comunistas ocidentais, quando ouvem dizer que alguém – especialmente alguém não inscrito no partido – esteve na Bulgária, apressam-se a mostrar uma comiseração irónica e distante e, sobretudo, uma surpresa maravilhada pelas suas impressões positivas” e tudo me pareceu familiar.
Apesar do amor sem reservas que o povo búlgaro demonstra pelo seu país, sempre que eles ultrapassam as barreiras de linguagem.
É nestas alturas, que se cruzam as realidades paralelas e que nos arriscamos romper a linha do tempo.
Mais tarde, quando o cheiro das sandes de pão duro já nos retirara a vontade de almoçar, e o atraso na chegada do comboio búlgaro a Ruse, se acumulava com o absoluto desinteresse do comboio romeno em partir para Bucareste (e nós nos começámos a convencer que o horário era uma mera abstração, o única utopia que unia os dois povos  ) o guarda fronteiriço entrou no comboio romeno ainda em Ruse, a última cidade búlgara – portanto tecnicamente em solo romeno – mas fez questão de me corrigir com uma veemência que me pareceu excessiva, o senhor está na Bulgária, afinal fardas são fardas, apesar de só mais tarde entender que a farda deste guarda continuava avantajada e que as fardas dos romenos assentavam, que nem uma luva,  no corpo dos guardas fronteiriços, no revisor e na generalidade do povo romeno.
O comboio romeno é mais moderno mas tão grafitado como o búlgaro, menos aconchegante e muito mais lento que o dos búlgaros, que já tinha começado a perder o passo de trote,  no troço que o levava à fronteira, e aqui, a terra de fronteira ainda á uma terra para onde ninguém parece ter interesse em ir, uma desolada planície que não chega a desfocar com a nossa passagem, tão lenta é a nossa marcha , porque para os romenos a Europa é para norte, e para os búlgaros o mar é grego, a sul, estes talvez atingidos pela nostalgia de quando ousaram ser os senhores da macedónia.
Às seis e cinco da tarde, quase um dia depois, o comboio romeno entrou na Gara du Nord, a primeira gare verdadeiramente cosmopolita desde Constantinopla, e ficamos sem saber o que pensar, será o fim da estrada do mal ou o princípio do expresso do oriente, mas na capital da Roménia ninguém atribui crédito à opinião de um cronista búlgaro e o cosmopolita (e pouco escrupuloso) taxista de Bucareste nem queria acreditar que nós vínhamos de Sófia, e como é que é a vida por lá, como se tivéssemos chegado dos confins do Oriente.
Também ele não sabia que os búlgaros tinham entregado ao mundo um novo alfabeto de evangelização e, mais do que isso, tinham aberto um precedente na Igreja de Roma de prosseguir a evangelização nas línguas nativas, substituindo o hermético latim.
"Assim seja", assim se conformam os romenos perante os golpes do destino e os factos incontroláveis




segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Numa outra dimensão

 


Acordámos no dia menos um a olhar para o meio da praça, para a estátua do mártir Levski, que viveu cedo de mais para ser um herói e acabou enforcado, cinco anos antes da independência. 
Apesar de haver a consciência nacional de que a nação chega frequentemente atrasada aos seus compromissos – quase tão institucional como o Hino - no caso do republicano Vasil, o fundador do Comité Central, destinado para preparar, a partir da Roménia, a revolução contra o domínio otomano, ele chegou demasiado cedo para conspirar em território búlgaro e foi preso e enforcado em 1873.
Também para nós, aterrar em Sofia num voo noturno e chegar de noite demasiado precoce para ser manhã, mas demasiado tarde para ser noite, primeiro uma vista aérea das ruas desertas da cidade, uma cidade com iluminação tão frugal que parece que se apaga à medida que o táxi avança pelas avenidas dos subúrbios, sim, parece uma cena de espionagem filmada do outro lado da guerra fria, o chauffeur de táxi só conhecia o cirílico, prédios cinzentos, há um suspense a cada cruzamento que atravessa, em cada semáforo que passa a vermelho e finalmente chegados ao hotel de luxo, um luxo antigo, repleto de alcatifas moles e paredes forradas a madeiras nobres, um refúgio em que a música de fundo é sempre americana – tenho sempre esta imagem de duplicidade da guerra fria -  e antes do tempo, pré datada, uma alma velha, como afirmariam os especialistas, para nós que tínhamos obliterado uma noite inteira e não tínhamos portanto chegado a sonhar, foi o regresso a uma dimensão que só conhecemos numa outra vida.
Em Sófia, temos frequentemente a sensação de estarmos a levitar numa cápsula do tempo, um lugar em que nada parece corresponder ao tempo certo, antes do tempo no futuro que não aconteceu, provavelmente resultado do sacrifício precoce da escassez de heróis e de momentos gloriosos na História.
Mas quando ligamos o som da cidade ficamos congelados num passado, expostos aos avançados sinais dos tempos.
E os sons da Bulgária são antigos, existe um rasto de século vinte na musica de fundo do autocarro que nos tira do avião, nas fotografias a preto e branco das celebridades que enchem as paredes do restaurante do hotel, no ranger das curvas dos elétricos, uma cidade pejada de cabos e carris, no rádio do taxista que nos transporta, madrugada dentro, a estação ferroviária de Sever e há todo um mundo que está em vias de extinção, como os comboios lentos, em compartimentos de oito lugares, uma excentricidade de quem não deve ter bitola europeia que range em cada curva, a aguardar o anunciado comboio de alta velocidade que rasgará a Bulgária, de Istambul a Budapest, uma nova modernidade a caminho do expresso do Oriente.
E esta cápsula do tempo que se chama Sófia revela-se, uma manhã de cada vez, para lá das cortinas baixas do restaurante do hotel, que parecem querer dar-nos tempo para nos habituarmos a este sereno regresso ao passado.
E nós aproveitamos o tempo que a cidade nos dá e a cápsula, que preserva a nossa privacidade, mas não nos priva dos sons da descoberta, ziguezagueia entre as memórias da libertação e as indulgências das vidas comuns.
Ambiguidades felizes.
Na nuvem de fumo que joga xadrez no jardim da cidade, em frente ao Teatro Nacional Ivan Vazov, há dois que jogam e uma multidão que fuma, que dá opinião e que enche de fumo os jogadores, o ar puro do parque e as famílias inteiras de domingo à tarde.
Nos velhos que mendigam um pouco do esquecimento que o novo regime votou a quem vivia com pouco, mas só conhecia o garantido, e é uma imagem que não há geração que dissipe, uma herança que vem do Leste.
Sobraram alguns museus, outros mosteiros ou bilheteiras de transportes públicos e todos os outros que vagueiam pelos nenhuns lugares.
Tanto tempo depois, ainda há os expelidos do regime e os elétricos da utopia socialista, fotogénicos, mas pouco eficazes pois segundo Hristo eles eram bons a gastar, mas não faziam ideia de como se ganhava dinheiro, pelo menos o que querem gastar. 
Mas há uma nova movida jovem que povoa a paisagem encardida, os elétricos do realismo construtivista, os blocos de apartamentos construídos para alojar as famílias sobrelotadas que vieram alimentar as utopias industriais do regime, sem a consciência histórica do que isso representou para os seus pais. 
Dualidades que não deixam de nos intrigar.
No final da tarde de segunda-feira, somos envolvidos pela multidão de jovens que saem da escola e se cumprimentam com universais choques de punhos, e conversam muito, não há, naquele passeio da cidade fora dos seus limites, telemóveis nem redes sociais que bloqueiem a animação e os abraços, não fosse o cirílico a primeira língua não latina a ser lida ao papa, em Roma.
Mas em Sófia, a idade é um tempo relativo. 
Uma capital criada pelo terceiro império (talvez só dinastia porque o império foi reduzido à pequenez que a memória não conhecia) e, a partir de uma aldeia de doze mil habitantes e umas quantas estalagens, construiu-se uma metrópole que cresce, mas nunca envelhece, segundo os próprios. 
E, quando nos libertámos da cápsula do tempo, em direção ao presente, sentados na antecâmera do futuro, no restaurante que teimava em chamar-se Cosmos, a iluminação simulava os planetas de uma galáxia desconhecida, mas radiante, e o vinho búlgaro, o sorriso da miúda que servia a mesa, os sabores do prato e Pavlova final eram cósmicos.
E na última ceia de Sófia, entendemos que o orgulho deles se constrói de pequenos triunfos.






sexta-feira, 8 de novembro de 2024

O refúgio do segundo Império Búlgaro

 


A floresta de Rila é, segundo Hristo, um local de profunda espiritualidade, desde que João 
dela fez local de meditação, nos tempos do primeiro império búlgaro. 
O mosteiro de Rila foi construído para albergar os monges que seguiam os ensinamentos do mestre João, durante o auge do segundo império medieval búlgaro. 
Depois, as trevas abateram-se sobre as montanhas e o vale de Rila e durante quase quinhentos anos não houve fé que resistisse aos otomanos, que se tornaram depois da conquista do reino da Bulgária, os novos senhores de Constantinopla.
A igreja do mosteiro foi construída no século dezanove, para recuperar os terrenos da fé, mas também o esplendor dos tempos medievais, quando a Bulgária fora grande e poderosa. 
Não foi suficiente porque as potencias da época não queriam uma Bulgária grande, e estas são as palavras de Hristo, e nós acenamos, porque percebemos as dificuldades dos pequenos. 
O São João búlgaro, Ivan na sua forma eslava, viveu nos anos 800, fez milagres antes de se refugiar, primeiro no vale e depois numa gruta na montanha, onde viveu nos últimos cinco anos da sua vida, em profunda comunhão com a natureza. 
Segundo consta, e diz quem sabe, que a afirmação da nacionalidade búlgara foi, no período de independência, antes de tudo, uma afirmação da sua religião e dos seu ritos, e não tanto uma afirmação de contestação política contra os otomanos ou de afirmação de uma entidade própria, que eles próprios reconhecem não ter. 
E isso explica a turbulenta relação deste povo - numa versão muito lata que os contemporâneos gostam de invocar, incluindo os Macedónios e os Trácios e uma parte dos Gregos e outros povos Balcãs - com Roma e com Constantinopla, e que justifica a escolha dos russos como uma terceira via que os ajudou a expulsar a autoridade dos otomanos e a libertar-se da dominância cultural dos gregos. 
E isto explica também a veneração do santo Ivan. 
Portanto, depois de expulsarem os turcos, construíram uma igreja no local de um convento do século treze, e pintaram as paredes e os tetos de cenas bíblicas, vivas e muito explícitas em que, na cena do juízo final, os pecadores tinham indisfarçáveis semelhanças com os turcos.
Tudo em homenagem ao santo João, cujo retiro, cujas relíquias, mistérios, lendas e até talvez os ossos datam do longínquo século nove, que os peregrinos descobrem, em veneração no altar.
Sim, hoje na igreja do mosteiro há quem jure que os crentes abriram o túmulo de João e acariciaram os ossos do santo, uma relíquia para quem precisa de se alimentar de provas vivas de fé. 
Construíram um tesouro de fé muito visual, em cores que apelam à crença, num gesto de evangelização que se entende por quase cinco séculos de ausência, longe de imaginar que os outros russos, não os que os libertaram dos otomanos, mas aqueles que invadiram a Bulgária, umas décadas depois, com o pretexto dos Búlgaros serem aliados de Hitler, eram ateus e que não tinham fé nem amor próprio por todos os mosteiros que encerraram.
(a narrativa da libertação do jugo nazi, não se aplica no exemplo junto) 
Rila não fechou, mas a palavra mosteiro foi convenientemente suprimida e as cenas bíblicas encerradas nas portas de um museu agnóstico. 
E, tal como em todas as renascenças do orgulho nacional, no final do século vinte, elevou-se o complexo a património do mundo. 
Hoje, nas montanhas, nos territórios dos ursos e dos alces, subimos por caminhos pedregosos à procura da gruta de Ivan. A vegetação era densa, entramos curvados no refugio do João mas Hristo assegurou-nos que, só os livres do pecado, seriam capazes de alcançar a fonte de água pura e o santuário no cimo da montanha. 
E mesmo sem grande crença na adoração dos ícones ou relíquias, trepamos as rochas e escapulimo-nos pela ranhura das rochas que cobriam a gruta do santo e bebemos da água da montanha e do seu criador.
É sempre reconfortante pensar que estamos do lado dos búlgaros, dos crentes e um alívio estarmos devidamente puros, e portanto, do lado certo do juízo final.




quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A Praça da Tolerância

 

É verdade que no centro de Sofia parecem conviver todos os credos e todos os templos têm um adjetivo que soa a verdade absoluta, a mais antiga igreja cristã em funcionamento, construída na época do império romano, a sinagoga, o maior templo sefardita da Europa, construída, imaginem, por judeus ibéricos , em fuga da inquisição, a mesquita construída por Mimar Sina, que construiu a mesquita azul, uma das mais antigas da Europa e mais uma das catedrais ortodoxas, esta apenas famosa por ter sido alvo de um atentado bombista perpetrado pelo partido comunista que, em 1925, pretendia matar o rei e instaurar a República. O rei sobreviveu, mas morreram mais de cem súbditos, aparentemente crentes, mas também, simplesmente, povo. 
A monarquia sobreviveu e foram precisos mais vinte anos, uma guerra, uma política de alianças desastrosa e uma geografia infeliz para que os comunistas se transformassem nos novos senhores da Bulgária. 
Mas no domingo de manhã da espiritualidade búlgara apenas prevaleceu a vontade do rei Kaloyan, que no século doze, durante o segundo renascimento do império búlgaro, teve uma mudança de crença, um verdadeiro "change of heart" , derrotou Balduíno I, o primeiro imperador latino de Constantinopla e converteu o seu povo à ortodoxia. 
Nas cerimónias ortodoxas, os sacerdotes estão de costas para os fiéis, escondendo-se no altar e escondendo o altar dos olhos dos crentes, e dos outros, como se tivessem receio que os mortais  contaminassem a essência do diálogo com Deus, mas os sons emanam uma fé oriental, debaixo dos frescos da mais antiga igreja cristã da Bulgária, São Jorge da Rotunda, ou na catedral russa de São Nicolau ou debaixo das cúpulas de Sveta Nedelya. 
E, neste domingo de manhã, as igrejas estão cheias de crentes, toda a cidade beija os ícones, venera os altares dos santos orientais e canta, em pé, debaixo das cúpulas douradas, recebendo os sacerdotes que saem dos altares e se deixam cercar pelos crentes, mas sobretudo pela diversidade, dos novos, dos muito novos, alguns velhos e pelo incenso que emana do fumo das velas, há uma atmosfera de redenção no final da cerimónia, mesmo para os matulões de cabeça rapada, tatuagens bélicas, cabedal vestido e olhos de um azul que gela, só de olhar. 
Mas alguns santos não têm olhos, reza a história ou a lenda, porque os otomanos transformaram as igrejas em mesquitas e não queriam os santos ortodoxos a olhar para eles.
E, como lembrança dos quinhentos anos de paz otomana, os búlgaros não se esquecem do imposto de sangue que significava a obrigação de entregar um filho para combater no exército otomano. 
Por isso, com o rigor metódico que a vingança produz, poucas mesquitas ficaram intactas. 
Por isso hoje não há turcos na Bulgária, há quando muito, búlgaros islamizados, afirma o discurso oficial, uma utopia que não se reflete naqueles de tez escura e de olhar de quem não tem raízes por aqui, que rondavam a mesquita, no centro da praça que é antes um conjunto de praças e de ruas, sobre as quais é possível desenhar um quadrado, eliminando as ruas, como se demolíssemos as paredes, uma destruição necessária para a construção de um grande ideal. 
A praça da tolerância é uma visão irresistível do subconsciente humanista que comove a sensibilidade ocidental,
Percebe-se a ideia, mas os cartesianos dirão sempre que não é uma praça. 
E as lendas, a história e a memória dos povos inviabiliza, amiúde, os finais felizes. 
O castigo é normalmente a mais convincente forma de apelar à memória dos milagres de todos os santos, enquanto esperamos pelo dia do juízo final.
Foi a última imagem que me ocorreu antes de me concentrar a procurar os meus sapatos entre a multidão de calçado eclético que povoava a porta da mesquita Banya Bashi.