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quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #17 -Long ride ahead


 No país profundo, a distância não se mede em quilómetros, mas também não se mede em horas, tudo depende. Quem sabe, nunca se quis comprometer, apenas um lacónico vai demorar.
Catorze horas e meia depois de sair de Thakhek ainda não tínhamos chegado a Vang Vieng, excedendo sempre as últimas expetativas dos dispositivos de satélite, porque não se adivinha o pedaço de estrada que se vai evaporar, um caos que se confunde com o caos da beira da estrada, a única certeza é que há, todos os anos, monções e que o alcatrão é, tendencialmente, insuficiente e de fraca qualidade.
Um contratempo para quem, como todos os que não o conhecem, imagina o Laos um santuário paradisíaco de meditação. 
Mas caos rima com Laos.
Atravessar o Laos de Sul para Norte é um longo purgatório , primeiro nas ilhas do Mekong, depois ao longo das planícies de tédio, subindo ao planalto de Bolaven e depois regressando a uma altitude zero onde a margem oriental do rio se confunde com fim da linha, e a faixa estreita de pó que o separa do Vietname não tem margens, esporadicamente uma fina tira de alcatrão que agrupa a vida das pessoas e da sua ruralidade em torno de uma ideia e das suas necessidades comuns, na fragilidade das suas vidas que se desfocam sempre que os restos de pavimento nos permitem avançar velozes, mas que nos permitem fixar o nosso olhar na agitação das bermas, quase como se pudéssemos viver a vida deles, nem que seja por um instante, quando desaparece a estrada e nós marcamos passo entre solavancos e buracos, sem margem que nos permita desenhar uma referência.
Até chegar a Vang Vieng, ao norte das montanhas e do turismo emergente, quando a realidade de um país de pescadores dá lugar a um longo rol de utopias cartesianas de Estado, comboios rápidos e barragens, exportadores de energias limpas ou, segundo alguns entusiasmos dirigentes, a nova bateria da Ásia.
E a Norte, quando as distâncias são mais rápidas e as visões da fragilidade humana são meras sombras entre a vertigem da velocidade e a escuridão dos túneis, ficamos mais próximos de uma visão romântica do país dos monges, da meditação e dos elefantes
Mas, catorze horas depois, a vertigem do caos sobrepunha-se ao poder da mente.  
À porta do 120 Club a música Lao jorrava num entusiasmo que não era proporcional ao glamour do local. Em Thoulakom, a cidade que parece nunca dormir, como Nova York.
Fomos transportados para aquela beira da estrada, da qual julgávamos ser apenas espetadores, a comer arroz frito em mesas com vista para a estrada, cobertas de toalha de plástico aos quadrados. A luz fria da noite cerrada do restaurante e final de dia contrastava com a outra margem, a cor quente dos clubes noturnos, longe das grandes cidades, uma afirmação de quanto maior a ruralidade e o isolamento, mais alto se ouve o remix Laos. 
Horas antes, na aldeia de Tha Bak, uma serpente jazia morta de boca aberta e sorriso rasgado, a aldeia de montanha parecia adormecida apesar da hora da manhã tardia, a mulher bomba era a única disponível para saltar para o barco construído com restos de bombas americanas que metiam água pelas juntas mas duravam as águas lamacentas rio acima até que as águas se separavam lamacenta na direção do longínquo mar, verdes subindo as montanhas
Como que vigiando a serpente liquidada, a dona do mercado das águas e dos legumes, carregava no som Laos remix, e a ponte metálica, que podia ser a do rio Kwai, estremecia com o eco do som que saia do velho barracão vazio para a aldeia vazia e para a curva da estrada de esporádicos transeuntes que se aventuravam na ponte, algumas motos, menos automóveis e um autocarro mochileiro que vinha de Vientiane e dirigia se a Ho Chi Min, certamente dezenas de horas a perder de vista, montanhas acima. 
E a mulher bomba, tão sorridente como desdentada, acelerava rio acima com a destreza de um veterano. 
Se ela me fosse capaz de entender até talvez lhe perguntasse onde estava ela quando os americanos bombardearam o Laos e como é que ela se protegia dos milhares de bombas que não chegaram a explodir.
Mas ela sorria sempre, há uma expressão de inevitabilidade condescendente em todos os sorrisos laosianos.
Independentemente da etnia de que são oriundas.




terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #16 - Paragem técnica


Em Thakhek, debruçamo-nos sobre a Tailândia, no fim da estrada ficam os restos da cidade colonial e das memórias dos tempos de guerra em que a cidade acolhia todas as almas atormentadas e penadas pela violência extrema e pelos pecados lançados sobre o Vietname. 
Desertores, mercenários, traficantes, soldados comuns e aventureiros numa mistura que apenas o Mekong harmonizava, nos dias da estação das chuvas. 
A Havana da Indochina tinha um casino ambulante, uma fronteira fluida com a Tailândia, bares repletos de fumo, música violenta e mulheres que acalmavam as angústias dos guerreiros do Apocalipse.
Hoje Thakhek é o lugar do fim da linha, uma paragem técnica e Kop Chai Po é o restaurante que capta a essência da memória nas madeiras pesadas e ressequidas que forram o soalho e diluem os ruídos das inquietações dos espíritos que aqui ficaram presos a este passado. 
Cinquenta anos é muito tempo e uma geração inteira de funcionários, de ideologia e de novas formas de fazer a guerra canalha, tiraram toda a adrenalina e Thakhek transformou-se em paragem técnica do roteiro mochileiro oriental. 
E enquanto derretíamos mais um fim de tarde de nostalgia de fronteira em baldes de bier Lao, uma dose temperada de mosquitos e uma grande bola de fogo a sobrevoar um horizonte chamado Tailândia, repetia para comigo que a cidade se deve ter referido ao seu futuro em nome próprio, e isso é garantia de mau karma 
Nos arredores de Thakhek nas grutas do buda, enquanto o sol se põe, uma nova família entra na gruta para render uma outra família na vigília ininterrupta que os aldeões insistem em   fazer aos duzentos budas descobertos por um camponês quando caçava morcegos, ao que se consta, para comer. 
Os patriarcas e as matriarcas, a prole de filhos, incenso e velinhas, cestas de oferendas e pulseiras da sorte e um olhar vigilante sobre os visitantes. 
Sente-se bom karma no local, porque tal quantidade de budas é sinónimo de que os monges por ali passaram muitos séculos atrás. 
Aqui ninguém falou do futuro em nome próprio, limitaram-se a aceitar o que o passado lhes deu.
 


WAY TO INDOCHINA #15 - A aldeia do Mr. Hook

 


Na aldeia do Mr. Hook vivem oitocentos e dezassete almas animistas um sistema de crenças pouco organizado, característico das sociedades primitivas que acreditam que as coisas têm espíritos ou alma. 
(e nove católicos, e nem todos se dão bem e respeitam as respetivas crenças, somos muito desconfiados) 
Chegámos sem perceber nada do que nos rodeava naquela aldeia do planalto de bolaven e saímos dezasseis horas depois tão ignorantes " You don't know nothing" respondia Mr Hook perante a nossa indisfarçável ignorância da medicina tradicional enquanto recolhia amostras na farmácia do tio, um terreno que, aos nossos olhos era um baldio, mas as mãos dele descobriam raízes que curavam dores de cabeça ou vómitos, davam alta as grávidas numa semana e matavam todos os piolhos das cabeças das crianças. 
Era noite profunda quando imergimos no mundo rural do Laos, das múltiplas etnias que povoavam as zonas montanhosas e que o partido se tem esforçado por as fazer descer aos vales e as integrar numa das três etnias oficiais e levar as suas crianças à escola. 
A etnia de. Mr. H parece ter vindo da Índia e subido o Mekong até ao Laos, sem tempo conhecido. 
Por ser noite, os rituais de iniciação às heranças (ou aos cacos) do animismo, pareciam saídos de um guião de filmes psicologicamente intensos, Mr. H fumando um longo cachimbo de água, Mr. H incentivando-nos a experimentar os vários estágios de evolução do que chamavam de whisky servido em garrafa de plástico a partir de uma planta que não estava plantada no jardim medicinal, mas apenas na beira do caminho, entre uma cafeteira arábica e um campo de mandioca. 
As sombras de uma luz insuficiente diluem as vozes dos espíritos da casa -? estarão eles zangados ou apenas dormentes? , porque todas as almas aqui, fumam desde os três anos para afugentar os mosquitos - os legumes cozidos na mesa lembram que devemos falar com as frutas antes de as colhermos das árvores -  mas a voz hipnótica do Mr. H aloja-se nas nossas memórias, entre as espécies de café e as fases da torrefação, a mãe dele a preparar o cachimbo de água para a versão infantil do Mr. H e, a meio caminho entre as sombras que pairam no grande palanque que é o restaurante do Mr. Hook e uma das suas esposas e o manto de escuridão que cobria a aldeia onde dormia o Chamam, o feiticeiro e curandeiro, os dois chefes da aldeia, o da aldeia para controlar os aldeões e o do partido para controlar o da aldeia. 
E adormecemos no meio da selva, longe da aldeia para que os nossos gritos de solidão não incomodassem os espíritos bons, porque amanhã a aldeia decidiu que é o fim do ano, agora que as colheitas terminaram, e vão começar a matar sete vacas logo pela manhã, em sacrifício para acalmar os deuses e garantir um auspicioso Ano Novo ao longo das oito estações que o ano tem, que incluem a do arroz e do café.
O céu era estrelado e era tudo o que tínhamos para dormir. A aldeia do Mr. H queria ter a certeza que os brancos que nasceram no mundo das máquinas de fazer dinheiro teria estômago logo de manhã para se cruzar com as cabeças dos animais sacrificados, exibidos sem triunfo excessivo na porta dos proprietários.
E, de manhã, entregaram tudo o que noite prometeu, uma aldeia em estado de pré-coma alcoólico pela noite de fim de ano que se avizinhava, os animais devidamente mortos e uma multidão de seres, espíritos, almas e crianças que nos rodeavam ruidosamente junto a um gigantesco trator carregado de som de um parque de insufláveis e um som de uma nova Playlist local que parecia ter eco em todas as casas de madeira que se atropelavam sem uma muito clara interpretação de propriedade. 
E rodeavam-nos sem pudor, com muita curiosidade e até uma certa gula, diria, e alguém lembrou que, há tempos, estes katu, o povo da montanha e do rio, faziam sacrifícios humanos para agradar aos deuses, especialmente nos dias de festividades. 
Assustadora esta aldeia, a seita Katu, os rituais do Mr. H e as histórias que saiam em torrente da nossa mente enquanto os aldeões se riam e o Mr. H nos recomendava que não fotografássemos os anciãos porque, para eles, ao fotografarmos, estamos a roubar-lhe as vidas. 
Tão assustador que revivemos a sua (deles) receita de sobrevivência, em caso de doença grave, árvores medicinais, se não resultar então a médium, se não resultar então magia negra se não resultar então sacrificas um animal, senão resultar então morres
Temos mais opções do que vocês, quando vão ao hospital
E de manhã, o Mr. H antecipou o nosso sono incompleto e os nossos sonhos conturbados, que nos tornaram mais vulneráveis e crentes das suas lendas (ou apenas algumas meias-verdades oriundas de um mundo que já não respira sem ajuda?) primeiro a estória do negócio dos dotes que envolvia búfalos de água, vacas, terrenos e eventualmente motorizadas chinesas como desconto, casamentos combinados aos 5 anos, vá lá, ?a mulher que amas sabe fazer armadilhas?, a beleza não traz comida para a mesa., e se a mulher for boa caçadora então o dote aumenta mas elas nunca darão à luz dentro de casa porque enfraquece os espíritos, e não 
podem falar do futuro em nome próprio porque dá más energias “bad karma, you know?” Pode pensar, mas não pode dizer 
E, depois de nos termos refugiado na van que nos teletransportava desta experiência alucinogénia chamada de Laos rural e profundo no planalto de Bolaven, ainda juntávamos as peças da genealogia da sua família próxima do Mr. H, a mãe que lhe fazia o cachimbo de água, mais tarde o pai não lhe dava tabaco porque ele era preguiçoso e, por isso, fumava uma erva com um nome indecifrável. Uma ruralidade de excessos, pois!
E quando almoçamos, junto às cascatas, longe das garras do Mr. H, sua seita e respetiva aldeia, e perscrutamos os pensamentos do único elefante contemplativo com o qual nos cruzámos no pais de um milhão de elefantes, quase que tive pena dos pobres funcionários do partido que tentam construir um país à partir disto, também eles divididos entre a diversidade étnica que vendem aos ávidos turistas ocidentais e a impossibilidade de evitar que eles tenham uma vida e vontade próprias.
O que o fundador da revolução laosiana idealizava “como um sistema multiétnico no contexto de uma nação unida e indissolúvel “



domingo, 25 de fevereiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #14 - Liberdades de Culto

 


No Laos regressamos ao Oriente em que a estrada é de todos, também dos búfalos, das cabras e dos cães, das vacas, das motas, dos transportes agrícolas, dos miúdos, dos altares de oferendas e, esporadicamente, dos carros e das estradas sempre novas em cada estação seca e, subitamente, desaparecem em cada monção e o sorriso discreto, mas entendido, entendido, mas trocista de quem sabe que as desgraças não são inevitáveis e que também há bom asfalto no Laos. 
No Laos voltamos ao convívio com a foice e o martelo, os slogans motivacionais nos portões das escolas e hospitais e os controlos de estrada mas aqui não parece haver símbolo ou ritual que discipline qualquer beira de estrada ou os milhares de cães vadios todos da mesma raça amarela e aqueles olhos de amor eterno sempre de língua estendida e cauda no ar. 
Afinal de contas, quase todas as inúmeras etnias do Laos professam o budismo, a religião da compaixão que concede amplos graus de liberdade para o exercício do culto.
E, junto às margens do rio Mekong, o mítico Mekong para os caçadores de marcos, todos os outros cultos são bem recebidos como o último refúgio dos bons selvagens ocidentais de rostos encardidos, tatuagens ressequidas, barbas em forma de v mais gastas pelas diversas formas de tabaco do que pela idade.
Levitam de rede em rede, e parecem ter descoberto no Laos o último dos trinta e sete degraus que os conduzirá, eventualmente, ao céu.
Do lado oposto do rio, uma família do Laos cultivava a sua horta nas areias do rio, certamente um uso capião, devidamente vedado pela persistência da família e pela remota localização, as crianças banhando-se no Rio, a mãe protegendo-se do sol numa palhota rústica e, de repente, um som que invadiu as margens do rio, fez tremer as redes de pesca, fez voar os peixes contra a corrente e afundou o Mekong na sua própria água. Da palhota mais desarticulada e entre duas parabólicas enterradas entre as couves e as beterrabas descobrimos que afinal, por aqui, os habitantes do Laos têm a sua Playlist própria, uma visão mais realista da realidade local baseada nos sons próprios em busca da internacionalização. 
Alguns letrados asseguram que os sons Techno made in Laos são o principal instrumento do confronto de gerações, entre o tradicional e o moderno, neste país ainda predominantemente rural.
Enquanto nos banhávamos no rio sagrado.




WAY TO INDOCHINA #13 - Ouvindo o arroz crescer

 

Atravessar fronteiras a pé é sempre a mesma emoção infantil.
Hoje a fronteira do Laos estava tão deserta que o sinal de stop era inútil e a cancela uma provocação ao bom senso.
Os guardas de fronteira olharam nos de sobrolho encardido, algum fastio de termos interrompido o seu fastio e voltaram aos guichets, as carimbos, as câmaras os scanners, as impressões digitais tudo como é esperado que uma fronteira funcione, primeiro na saída do Camboja onde o raio X das malas garantia que não levávamos materiais perigosos para a terra de ninguém e, depois no Laos, onde não havia nenhum raio X, este incapaz, pela ausência, de identificar as verdadeiras motivações dos indómitos viajantes
A mesma emoção épica quando avistamos o Mekong, um definitivo marco para todos os colecionadores de preciosidades. 
Em Don Det, uma das quatro mil ilhas do Rio Mekong, o ritmo de vida perdeu urgência e o fim de tarde empurra as correntes do Rio e deixa-se levar pela brisa da estação temperada.
A noite cobriu o deck e ficamos a espera que o rio nos embalasse ao som de uma Playlist de sons ocidentais 
Reconheço que ao décimo segundo dia de imersão no ritmo do sudoeste asiático, arroz frito, sabores de coco e caril, caldos de legumes e sopa de noodles, dias que se prolongam de noite até à noite, senti-me tentado por um bife de três pimentas, cerveja a copo sem hora limite de adormecer sentado, e o mosquiteiro que cercava a minha cama do bungalow e me fazia imaginar a Indochina pelos olhos dos franceses. 
O bife era de frango, a cerveja era de lata mas tudo o resto enquadrava naquela perspetiva orientalista que os ocidentais têm só oriente: fútil e superficial 
Nessa noite perdoei-me pela insensibilidade e pelo desconhecimento da realidade local e continuei a beber cerveja até o rio desaparecer na noite, e depois adormeci debaixo do mosquiteiro, embalado com os sons de música lounge que sobrevoavam o deck 
No Vietname cultiva se arroz, no Camboja vê se o arroz a crescer enquanto no Laos ouvimos o arroz a crescer. 
Ontem à noite, nada me pareceu mais certo. 



sábado, 24 de fevereiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #12 - O Império da Água e do Ar (Gods, Kings and Heaven)

 


Acordámos de noite em Siam Reap, todos os dias acordámos de noite, porque nos asseguram que os momentos mágicos acontecem na selva ao amanhecer.
E a noite em Siam Reap é fria, nos focos de luz branca dos candeeiros de rua, intermitentes, nas correntes de ar que envolvem os tuk-tuk, que nos arrancam ao sono interrompido pelas ruas poeirentas da cidade até nos entregar à mãe natureza, precisamente antes do amanhecer de cores quentes à beira da selva.
E os quatrocentos quilômetros quadrados de selva plantada de templos de pedra são uma promessa cumprida, não há um ah mas, nesta alta densidade de magia pura, um privilégio muitas vezes traído quando as obras primas da humanidade se transformam em atrações turísticas.
 Mas aqui, na selva de Anghor, o silêncio sobrepõe-se às multidões – o silêncio impõe-se, apesar de sermos milhares, mal o lençol de escuridão é perfurado pela neblina do amanhecer - que se recolhem em contemplação das figuras esculpidas na pedra, dos troncos de árvore que absorvem a energia das colunas de pedra para continuarem a crescer, e das sombras que realçam as formas das divindades e nos convertem em crentes. 
E confirmamos que os momentos mágicos acontecem ao amanhecer e nem as correntes de formigas assassinas que ligam todos os locais sagrados do templo das raízes das árvores, o Ta Prohm, nos retiram serenidade e a certeza cósmica de que percorremos um lugar sagrado, mesmo que não tenhamos – enquanto os nossos olhos trepavam pelas raízes das árvores centenárias - uma visão clara do que é que isso significa.
Em Ta Prohm, no reino das árvores, sentimos o sereno amanhecer de um encanto assombrado, numa aureola romântica intocada pelo tempo e pela intervenção humana, que se entrelaça a nós, sempre que lhes viramos as costas.
É a primeira fotografia, a imagem que ficará impressa na pedra das nossas memórias, é muito mais do que um bilhete de ingresso, estamos mesmo a passar a fronteira para o passado, e a nossa foto no papel acartonado é a garantia de que teremos memória quando regressarmos das profundezas do império kmer. 
E, os quatrocentos quilómetros quadrados de passado, com dezenas de templos com nomes como Ta Prohm, Banteay Srey, Prasat Preah Neak Pean, Prasat Peah Khan, Anghor Wat, Prasat Bayon, ajudam-nos a corporizar a ideia de um império, construído e mantido sobre os alicerces do simbólico.
Duzentas e sessenta estátuas de deuses e trinta e nove torres com pináculos depois, voltámos à estrada, o sol aquecia a corrente de vida que envolvia os tuk-tuk, uma espécie de cápsulas que viajam no centro do mundo, entre o passado e o presente, que absorvem os sons das crianças que regressam da escola, dos mercadores que procuram dar um sentido à sua vida, na beira da estrada, e os cheiros da estrada poluída, da selva verdejante, dos fumos que emergem no verde e no castanho, afinal na beira da estrada também se cozinha, para toda a nova vida que povoa as ruínas do passado kmer. 
E, entretanto, o amanhecer transforma-se numa clareira inundada de um Sol inclemente, mais a norte no quadrado místico de Anghor e a selva despe-se para que a cidadela das mulheres se mostre ao mundo em todo o seu esplendor rosa, Banteay Srei é um palácio de fadas com paredes decoradas com figuras desenhadas numa pedra rosa que brilha com as miragens de um calor que não tem sombra, porque aqui, a floresta se encolheu à beleza das mulheres esculpidas no quartzo arenito.
O amanhecer desapareceu e a magia do princípio da tarde é exibicionista, e a luz desvenda as histórias do imaginário hindu, histórias de deuses e demónios, e começamos a acreditar que o lugar é sagrado pela intensidade da fé que emana, como se os seus reis se tivessem submetido à vontade do divino, em todos os atos de construção, conquista e desenvolvimento do império.
E, uma vez mais, regressámos ainda de noite à busca dos quatro elementos do corpo, a água, o fogo, o vento e a terra
E imergimos no nascer do Sol sobre Anghor Wat, sabendo que o corpo perde equilíbrio quando falta um dos elementos.
E o mar cósmico cerca Anghor Wat, o maior templo religioso do mundo. 
Nasceu hindu que era a crença das elites, uma religião que favorecia o papel dos soberanos como intermediários entre os deuses e os homens. 
Tal como as origens do Império Kmer nos remetem para migrações de príncipes da península indiana.
Converteu-se ao budismo, a religião da compaixão e do povo, porque o povo precisa da compaixão do rei, influência da vontade do povo à mãe natureza mas, sobretudo, do poder e da ambição dos Impérios vizinhos.
E hoje, nas galerias dos templos de Anghor desfilam as histórias do imaginário hindu, os dilemas morais entre deuses e demónios, a casa de Vishnu e também Buda nas múltiplas posições: Buda em nirvana, ou ensina os discípulos ou está em meditação e a ser iluminado ou a demonstrar coragem sem medo
No templo de Bayon o grande rei Jayavarman VII fez a síntese das duas religiões nas quatro caras de Buda em cada uma das torres representam a caridade, a empatia, a compaixão e a igualdade 
E no terceiro nível de Anghor Wat,  trinta e sete degraus chegam para alcançarmos a sabedoria de Buda e a camada celestial por isso nenhum edifício construído pode ser mais alto do que os três níveis de anghor
Foram seis seculos gloriosos na história dos kmers, os únicos aliás. 
Impressiona o que construíram, mas também a manifesta falta de conhecimento de como viviam, do que construíram e de como entraram em decadência, e porquê 
Talvez porque o poder do império fosse menos militar do que simbólico e religioso. 
Talvez porque a selva e os pântanos foram mais fortes que a ambição de manter um Império que, no século doze, excedia em muito o que é hoje o Camboja. Catástrofe ambiental segundo a linguagem de hoje que despovoou a capital do mais poderoso império do sudoeste asiático. 
E, apesar da elaborada teoria da conspiração do nosso guia kmer, que atribui todas as desgraças do Camboja aos vietnamitas e seus ascendentes, foi o Reino de Sião que mais fustigou os Kmers com invasões e saques, provavelmente o maior contribuinte para o abandono de Anghor como capital do império e o abandono do império às mãos das potências estrangeiras. 
Até hoje, diria.
Em 1431, mais década menos década. 
The heaven in earth, enquanto durou



quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #11 - There is no sorrow

 

Neste longo caminho para norte sentimo-nos imergir na selva, não é isolamento no sentido de deserto de pessoas porque elas surgem do nada, nas suas motas sem lotação limitada. É um sentimento de que a selva engole tudo, as casas de zinco todas com estacas que deverão ter a função precisa de impedir a submersão dos lares de aspeto frágil quando a selva se alaga a partir das suas entranhas, engole o comércio de estrada concentrado nos entroncamentos das estradas nacionais
Mas há muitos momentos em que a natureza é desafiada pelos habitantes do Camboja. 
Milhares de crianças e jovens acotovelam-se, desde a sete da manhã na entrada das escolas públicas, todas fardadas de camisa branca e calça ou saia escura. 
Em todo o país, haja ou não selva. 
Contrariando Joan Baez em Cambodia, cinquenta anos depois, “there is no sorrow, but there is a future for Cambodia”



WAY TO INDOCHINA #10 - Cambodja Dreams

 


O algo populista e o quase eterno partido de governo do partido do povo do Camboja, um partido que vai a eleições, distinta aliás a sorte dos países vizinhos, construiu um novo aeroporto em Siem Reap, os turistas que vêm à procura da magia da mística kmer precisam pois de um novo aeroporto. 
O aeroporto não vimos mas, nas imediações do mesmo, o ministro das obras públicas plantou uma visão ideal do seu Camboja, uma estrada de asfalto reluzente com riscos desenhados no centro e nas bermas, plantações intensivas de árvores devidamente calibradas, campos vedados para os animais não fugirem para a estrada., camponeses confusos sem saber como atravessar os animais em segurança através de tanto asfalto, um sonho idílico que termina alguns quilómetros a frente sem que a estada nova ligue a coisa alguma senão ao camboja, ao verdadeiro, sem riscos na estrada com uma vida feérica a saltar das bermas da estrada. 
O portal reluzente que inaugura e se despede da nova via do progresso - é verdade que provavelmente não muito útil porque apenas liga a visão política do país ao próprio país - deixa antever tratar se de mais uma obra vendida, construída e financiada pela República popular da China a pagar em muitos anos, pela fidelidade e amor do povo do Camboja. 
Apesar do nosso guia insistir na teoria da conspiração oriunda de Hanói, o dragão expele fogo de Pequim (e a sua cauda mergulha no Mekong, rumo a Sul) 
No último troço da estrada nacional 7 rumo à fronteira do Laos, a norte de Stung Treng, o asfalto desapareceu por completo em largos troços do trajeto, descontinuando abruptamente o tracejado amarelo do centro da via porque, por aqui, fronteira não é sinónimo nem de mercado único, nem rota da seda, é mesmo o fim do mundo, afinal de contas qual o cambojano que quer ir para o Laos.
Passamos por uma motorizada imersa no pó vermelho e o pai leva uma criança embrulhada em trapos, procurando protegê-la da incúria das autoridades e das enxurradas de uma mais impiedosa monção.
Mais ou menos cinquenta quilómetros, não muito mais que a nova e reluzente pista de Siem Reap. 
Nem sempre o povo pode esperar que o Estado ou o Rei proteja os seus filhos



sábado, 17 de fevereiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #9 - Silver Pagoda

 

Phnom Penh é uma cidade de muitos momentos e desconstrói-se a partir do buraco negro que foi a passagem de Pol Pot e dos seus camponeses soldados, pela cidade, e que a deixou desabitada.
Por isso, os momentos de Phnom Penh transportam-nos amiúde ao passado, a um passado antigo, faustoso e real, de cumplicidades ambíguas, é verdade, e a um presente apressado que ganha forma na urgência em construir uma urbe moderna e reverenciada na Ásia do futuro.
E depois há os momentos que se deixam captar, enquanto eles tratam de esquecer o buraco negro e enquanto as torres de vidro não cobrem todos os locais com vista para o Mekong, já que o Palácio Real e a marginal da nova nobreza têm, para já, o domínio da margem do rio Tole Sap, ou melhor, da confluência dos rios.
E em Phnom Penh voltou a chover. Chegámos a um Sul que chove, será da confluência de tantas águas, quatro rios que se juntam precisamente no coração da capital kmer, e aqui chove às barcaças, daquelas que esgotam o céu e limpam o ar.
E o primeiro momento foi o ar fresco que nos bafejou a cara, mal saímos do autocarro que nos trazia da fronteira. 
Essa mesma corrente de ar tropical que iremos levar connosco, em todos os tutuque do Camboja, que nos ajudará a absorver os ruídos, os cheiros e os sorrisos de todo um povo. 
Naquela noite levaram-nos para a Preah Monivong Boulevard, pelas artérias lavadas pelos dilúvios de estação seca, um pouco abaixo da esquina com o Boulevard De Gaule e os vestígios de um colonialismo indolente para com a periferia, guardam o silêncio da noite como se Phnom Penh fosse apenas um refúgio de todos os fantasmas das grandes metrópoles do Vietname.
E, no calor refrescante da noite, saboreámos os cheiros da ruralidade nas ruas desertas, na cozinha ao ar livre onde o patriarca amassava a massa fresca, e o resto da família inteira a partilhar o sorriso das crianças nos mesmos pratos onde serviam as refeições, e nós que já tínhamos antecipado que os momentos da capital do Camboja começavam logo na fronteira, nas paredes de um azul intenso da terra de ninguém, enquanto aguardávamos que os passaportes regressassem carimbados e com os vistos, enquanto engolíamos um arroz tão desdenhoso quanto o olhar de quem o servia.  
Foi preciso nascer o Sol do dia seguinte para que a cidade nos revelasse a hierarquia com que se propõe construir o seu futuro, a partir das margens do rio em direção aos subúrbios, sim, a família real e os despojos do império kmer – que nem os kmers vermelhos foram capazes de destruir – dominam a vista do rio, do alto dos seus pagodes da pompa, do luxo dourado e e da residência real,  um símbolo que todos reconhecem ter pouco valor prático mas que ajuda a criar um sentimento de pertença, tão necessário num país que poderia nunca ter sido mais do que um acidente histórico, engolido pelos vizinhos impérios dominantes, encarcerado nos confins periféricos de um império colonial ou quase extinto por umas dezenas de meses de loucura homicida, tudo em sequência, não foi uma opção de escolha múltipla escolha.
Não muito longe dos rios, vivem as grandes avenidas que a miraculosa democracia do Camboja, parece ter reservado para o desenvolvimento económico e para a especulação imobiliária, onde coabitam os vestígios de uma arquitetura colonial francesa ( e, surpreendentemente, depois do dia nascer, mantém vestígios de ruralidade na vivência das pessoas, nas ruas mais estreitas e ainda bordejadas por árvores, que até talvez sejam centenárias) e as novas torres de vidro e betão que concorrem para pilares dos céus, uma imagem de marca e, nesta zona de disputa pelo terreno, é muito provável que a história e a tradição sejam submersas pelos buldózeres do progresso
E, claro, muitos guindastes nos ares, uma garantia de que a cidade do meio (tal como império do meio) estará irreconhecível a um curto prazo.
 Longe dos rios e das grandes avenidas vive a cidade tradicional, pobre e distante dos boulevards, das residências da especulação imobiliária e da ambição kmer de que Phnom Penh esteja no mapa das metrópoles asiáticas e que mais ninguém se atreva, sequer, a pensar em esvaziá-la porque a sua multidão não o consente.
Na cidade onde vive o povo, o alcatrão das ruas é intermitente, domina o primado da auto construção ou da construção remendada e de materiais de uma menor escolha, o traçado não é linear e cada curva ou estreitamento de via – tal como os solavancos dos buracos na rua e as paredes descascadas pela chuva – são resultado da persistência e da vontade de viver de quem – tal como no resto da Indochina de partido único – sabe que não há nenhum Estado Social por perto e que a sobrevivência na avalanche do progresso, exige muito esforço e uma relativização pragmática da perfeição.
Neste pedaço de caos, jantamos longe do glamour da gente bonita da marginal e, bem assim, longe da massa feita à mão, nas traseiras das grandes avenidas, onde resistem os edifícios térreos, mas de traça nobre e colonial.
Nos subúrbios onde vive o povo, o jantar é de caldeirada de sabores da confluência dos rios,  duas panelas de pedaços de peixe imersos em espuma e verdes, que podiam ser couves, mas não são,  e demasiadas meninas para nos sorrir, que nos servem de guias para o mundo de uma culinária esforçada, de um karaoke com sabores orientais e sabe-se lá mais do quê se, alguma vez, os olhares se viessem a cruzar, mas, aleluia, não, voltámos ao pacífico boulevard, dentro de uma van que resistiu com dificuldades à sua idade, aos buracos do alcatrão intermitente, à escuridão e às curvas dos bairros populares de Phnom Penh, uma cidade que só o nome inspira exotismo e mistério.
Pelo menos naquela noite escura, às voltas nas entranhas da cidade.
No fim da noite, o tailandês ganha o combate de Mai Tai, comprometendo a versão de que a verdadeira origem desde boxe sem regras é Cambojana (ou apenas mais uma prova de que os mais fortes tendem a dominar o espaço no sudoeste asiático ).
Não fosse o Sião a besta negra da ambição kmer.
E quando voltamos à estrada à procura dos vestígios dos tempos áureos da civilização Kmer, reconstruímos meticulosamente os últimos momentos na cidade, um trânsito que aquece com o dia, com a intensidade das obras e com os engarrafamentos nas avenidas, quase proporcionais ao tamanho dos arranha-céus que brotam das suas margens, só os edifícios do Estado mantêm a traça colonial e os espaços exteriores generosos, nesta placa tectónica instável que é a urbe do meio e a visita à escola da Martina
A escola de ourivesaria da Martina é uma tentativa de proporcionar a aprendizagem de ofícios especializados a jovens de famílias pobres, mas o resultado parece ser o de uma derrota da boa vontade e do voluntarismo europeu contra os caminhos de vida mais óbvios e imediatos e uma desconfiança natural de tudo o que lhes é dado por europeus distantes.
E, enquanto procurávamos resistir ao sinistro mercado das aranhas, impingidas à beira da estrada como uma indelével nova experiência de vida, concluíamos que provavelmente o assistencialismo dos países doadores não resolve o que a vontade própria dos povos não constrói.
Provavelmente resultado de uma diferença insanável, de perspetivas
E, cansado de tanta reflexão, adormeci na estrada à espera de um café que nunca mais chegava e desisti de aprofundar o real papel do rei Shianouk na história do Camboja.
Ambiguidade, foi a última palavra de que me lembrei, antes de adormecer
E sonhei com crepes de banana, uma verdade palpável do Camboja



segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #8 - Killing Fields (ou o legado dos kmers vermelhos)

 


"To keep you is no game. To loose you is no loss" 
"É melhor matar alguém por erro do que poupar alguém por engano" - Pol Pot quotes
Não é só a violência física 
Não é apenas mentir, é viver a sua própria mentira, é descobrir o pior que as pessoas têm dentro de si e usá-lo como arma de controlo psíquico e mental de uma população inteira.
E a arma mais letal dos kmers foram o exército de camponeses incultos, esfomeados e oprimidos e usaram a sua raiva e a sua obediência por comida para a vingança sobre uma sociedade urbana inteira
Esvaziaram cidades e deslocaram milhões e a razão explicada era uma malga de arroz, triplicar a produção de arroz, arroz que ninguém viu, como toda uma vida e uma cultura que se extinguiu em dois anos. 
Matavam os filhos e as crianças para que elas não se pudessem vingar.
O modus era esse, agir por outra vingança.
O extraordinário é que os kmer vermelhos continuaram a ser reconhecidos pelas Nações Unidas como os únicos representantes do povo do Camboja, muito tempo depois dos vietnamitas terem posto fim ao genocídio e Pol Pot viveu 20 anos mais num exílio tranquilo de avô até aos 73 anos.
Também o mundo inteiro ficou cego pela vingança e, mais uma vez, a vingança protegeu os kmers, desta vez contra os vietnamitas.
Ou cegueira geoestratégica internacional com cumplicidade real. 
O desfile dos sobreviventes na prisão S 21 e os oito mil crânios expostos na Estupa do campo da morte de Choeung Ekt, são manifestações macabras, como se fossem uma expiação dos pecados próprios, mas nunca, em nenhum momento sentimos que havia folclore ou exibicionismo.
Não tenho a certeza que seja necessário exporem as entranhas desta forma, mas é coerente com a mensagem deles “For your sake, remember our past to save your future". foi só isso que eles nos pediram.
É importante não pensarmos que tudo o que prezamos é garantido, porque as réplicas de irracionalidade grotesca não cessam de nos fustigar



domingo, 11 de fevereiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #7 - O imperador do Jade

 

Sufoca-se na manhã da estação seca, e estamos decididamente no Sul, porque o Sol brilha finalmente sem filtros e não chove de madrugada sobre os telhados de zinco, não há neblinas matinais que nos protejam da paisagem, as cores do meio do dia são cruas nas calçadas da capital do Sul, onde não existem bairros antigos e as avenidas são desenhadas a régua e esquadro, e atravessar a grande avenida é um grande suor frio porque, na metrópole do Sul, nós não fazemos parte da paisagem, e temos de impor a nossa presença  para avançar, um braço levantado, um passo autoritário e um risco efetivo de ser atropelado.
E a avenida Dien Bien Phu tem uma placa central, que nos permite ganhar fôlego, é significativo que seja aqui que a batalha que humilhou os franceses seja uma artéria central da antiga Saigão. 
No mundo real, a toponímia tem um lugar de destaque na afirmação do poder e na escolha dos que merecem ser heróis.
E, na cidade do cimento e do calor intenso que não é, contudo, suficiente para atrasar o movimento dos seus frenéticos habitantes, o reino do simbólico coabita sempre com a premência do mundo real, nos pequenos jardins incrustados nos prédios que crescem em altura com a mesma urgência com que toda a Ásia se pretende afirmar no mundo. 
No Templo do Imperador de Jade, o rei de todos os céus, os guerreiros de papel de mate mataram o tigre branco e o dragão e encarnam o Bem contra o Mal. 
É um templo Taoista, portanto tão laico quanto Confúcio, mas tão próximo de Buda, desde que a espiritualidade não comprometa o realismo social, apesar das pessoas rezarem aquilo em que acreditam, sem ter necessidade de o revelar, e a liberdade da forma de exercer o culto é maior que a própria liberdade de culto que o socialismo tolera.
Dai o Bem serem os guardas do palácio e o Mal serem animais ferozes. 
De regresso ao mundo do real, os símbolos são substituídos pelas memórias em carne viva de um período da História em que os ruídos de guerra silenciaram a espiritualidade, afinal de contas sabemos todos que a meditação e a cultura do espírito são um privilégio dos tempos de paz.
A punição dos vencidos está estampada nas atrocidades expostas no museu das memórias de guerra e fiquei na dúvida se o museu da guerra era também um requiem e um manifesto pacifista de reconciliação ou apenas uma punição aos vencidos. Demasiado visual para um requiem, presumo.
Como a mudança de nome da antiga capital do Sul.
Como a presença muito mais explícita, nos muros e nas fachadas, do poder dos senhores do Norte, da memória de Ho Chi Min, o ideólogo de um país que não foi uno, durante a maior parte dos seus séculos da sua História.
Apesar da nova alma de Saigão que se mostra na irreverência de uma tradição mercantil, com mundo e com pressa de alcançar uma vida revestida a ouro. E, talvez por isso mesmo!
A grande metrópole do Sul já está desperta, há muitas décadas, para a abertura económica que o regime decidiu implementar. Por decreto, diria, mas a nova elite percebeu, tal como noutros lugares da Ásia do Dragão, que é possível ter sucesso e ser rico e, em simultâneo, não se questionar um regime de partido único, como se a vida deles vivesse bem com estes , e a política e o poder fosse um exercício que deveria ser deixado a outra elite, afinal de contas porquê defender diversidade e democracia, se a nova elite económica pode fazer tudo aquilo que o dinheiro lhe permite?
E, no rooftop do Hotel MGallery, levita a gente bela da metrópole, hoje não há correspondentes de guerra nem conselheiros militares, apenas música, álcool, corpos que dançam e transpiram ambição e atrevimento.
Sem censura, de facto, e com vistas largas sobre o calor da noite e as regras do regime são apenas mais um ritual laico que, talvez nem mesmo Confúcio, se opusesse, em prol da harmonia e do desenvolvimento.
Ao nível da rua, os menos afortunados desta nova época do enriquecimento lícito sobre a proteção de uma oligarquia esclarecida, desbravam todos os dias novos caminhos, subindo as suas motas pelos passeios deixados vagos pelas hordas da cidade, até porque aqui (ao contrário da verdadeira capital do país) a rua é apenas para circular não para viver, para comprar e vender ou para prestar homenagem aos antepassados.
Por isso mesmo se entende que a alma do Vietname não vive em Saigão. 
Vive provavelmente em Hanói, mas Saigão tem a alma da nova Ásia, sôfrega, intensa e provavelmente sem tempo para a espiritualidade das suas origens e da sua religião, piedosa, popular e livre.
E, talvez por isso, a cidade tem uma extensa rua dos livros, cheia de livros e imagens publicadas no Instagram, mas também a única rua da cidade cheia de ninguém. 
Ao longo do roteiro das religiões, os templos que professam fé e não apenas princípios filosóficos de vida, escondem-se nas outras exuberâncias da urbe, uma catedral cristã encerrada para renovação, um templo hindu de uma minoria a quem falta a força de culto e o cheiro dos incensos, porque o regime é laico e aqui, no Sul, encara-se a religião piedosa e solidária como um empecilho ao desenvolvimento e os antepassados não lhes trazem, necessariamente, boas memórias.


Na estação dos correios, construída pelo inefável Eiffel, uma demonstração de modernidade e de dimensão ultramarina do colonialismo europeu em início de decadência, que o novo regime mantém viva e em funcionamento, até por motivos práticos, é importante não perder o controlo da dimensão do país, escreves postais que provavelmente nunca vão chegar ao destino, somente porque já não conseguimos resumir os nossos sentimentos num pedaço de papel ou cartão, e os zelosos funcionários presentem-no.
Sempre debaixo da proteção suprema do grande líder, pintado sobre as nossas cabeças. Sobretudo uma manifestação de pragmatismo de um regime que não destrói as realizações dos antigos senhores, apenas as coloca sob vigilância permanente do grande líder, ou talvez apenas daquilo que ele representa.
Nesta descida vertiginosa às entranhas da cidade, aterramos no espaço apertado entre uma longa fileira de mesas de plástico que invadem as ruas (afinal, se bem que esporadicamente e em lugares controlados, os habitantes de Saigão também ambicionam viver na rua) a partir das cozinhas comunitárias com vista para a cidade e para as pessoas, entre caldos fumegantes uma longa lista de pratos de tradução impossível mas com sabores conhecidos no prato, uma cerveja de lata e gente  que fala uma língua que só eles entendem, porque é local e a certeza de que o vietnamitas da cidade, os que invadem os passeios com as suas frenéticas motas, também têm vida para além do movimento e, como dizia o presidente amigo que comia Bun Cha no restaurante de Hanoi, no fundo todos os povos anseiam o mesmo.
Mais tarde, no Noir, às escuras e em silêncio, servidos por cegos, demasiado novos para serem vitimas da guerra, mas possivelmente vitimas de doenças congénitas provocadas pelas experiências químicas do Tio Sam nesta terra longínqua, ou apenas cegos que trabalham numa nova experiência de gastronomia sensorial, onde vivemos uma experiência de degustação pura, sem distrações visuais, apenas sabores transformados em sucesso empresarial, “ não somos uma instituição de caridade, somos um negócio, todos são pagos e têm proteção social”, um produto da abertura económica com sabores do Vietname.
É uma sublime experiência de degustação e mais uma lembrança dos guerreiros e dos animais ferozes.
Assim se vive na cidade que sonha com a emancipação.
Apesar de supervisionada pelos quadros pintados do grande líder.
Apesar do grande líder se ter apropriado, por precaução, do seu nome próprio.



sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #6 - Saigon Express

 

São nove da noite no escuro largo da estação ferroviária de Nhim Bimh, duas horas a sul de Hanói.
Uma multidão de sombras aguarda pelo expresso para Hue, o primeiro percurso de uma longa cauda de dragão que se estende desde Hanói até Saigão. 
Mas o resto da cidade revela-se alguns números acima do seu tamanho, as largas e longas avenidas estão fora de estação, eu experimento um café que ferve de baixo para cima, sozinho na esplanada e no calor da noite, ninguém fecha as lojas só porque é noite, as fachadas de luz que são também a sala de estar ou de jantar da casa deles, estão sempre ao dispor dos clientes do presente, mas olhando especialmente para o futuro, porque são a primeira geração de pequenos empreendedores em casas térreas, os filhos da abertura económica do regime, que aguardam ainda as multidões que irão chegar de Hanói, mas eles vão chegar com o crescimento económico porque a paixão pela natureza e o lazer ativo não é um exclusivo dos povos muito ricos.
E, em Nhim Bimh respira-se a água e montanha, incenso e arroz, liberdade, ar puro e uma visão de que, para haver futuro, basta haver muitas pessoas e muita vontade própria.
No parque de estacionamento da estação, as mulheres da Indochina repetem os movimentos do dragão numa aula de tai chi, indiferentes à importância que esta cauda de dragão tem para a afirmação de um país comprido como o Vietname,
E adormecemos na persistência dos solavancos , sem  estranheza pelos vizinhos de beliche, mas a noite já vai profunda, depois da emoção pela grande aventura, a certeza de que não havia lençóis lavados, mas as flores parecem sempre novas porque as plásticas acrescentam anos às naturezas mortas.
Acordámos ao som estridente do altifalante da carruagem uma voz feminina cheia de energia revolucionária que conta a história do local e os passos necessários para sair na próxima estação, num bilingue perfeito, os vietnamitas perceberam que o destino do velho lobo (ou dragão?)  passará diretamente da liga veterana para a inevitabilidade de se transformar num comboio histórico, tal é a distância e as mazelas de dinossauro que o separam do mundo moderno de banda larga, e das gerações emergentes que não privilegiam os tempos mortos nem a contemplação.  
É assim em todas as estações ao longo de mais de mil e quinhentos quilómetros, sempre de Norte para Sul mas a atualidade parece desmentir a morte precoce deste monstro de ferro, o comboio circula sempre cheio, cheio de gente que aproveita o tempo para descansar do mundo, da azáfama das cidades de partida e de chegada, sempre cercados de quilos e metros cúbicos de bagagem e uma intensa e colorida carga é a prova de vida que faltava para lhe assegurar a imortalidade..
Apesar de lento, longo, e muito remendado este dragão, filho adotado da revolução, trabalhou muito, muito rápido e sem meios, somente para existir.
Apesar do seu difícil envelhecimento
Construído pelos franceses, destruído pelos americanos, reconstruído pelos vietnamitas, desde cerca de 1900. Sempre a 60 quilómetros por hora.
E o amanhecer no expresso é energético, depois de cruzar um país inteiro de ruralidade, ocultado pela noite e pelas luzes esporádicas de estradas que passam a correr, acordamos com as tonalidades do delta, os sons da grande urbe do sul, outra vez milhões de pessoas a circular ou, simplesmente, a aguardar que o expresso lento chegue finalmente ao destino, sim porque a energia vem de fora, o trilho vai estremecendo com os solavancos da velhice, mas deitados nos beliches ou encostados nas cadeiras de conforto reduzido, os passageiros abstraem-se  , o monstro de ferro é um oásis de silêncio e quietude que avança decidido entre o acordar dos subúrbios, pontes, muita água, estradas cobertas de motorizadas sempre em crescendo, em disputa acesa com a intensidade dos raios de sol, sim, no sul da indochina o sol regressou, e foi a nova cor da agitação urbana que nos despertou do torpor do Expresso da Reunificação.
E 36 horas depois chegamos a Saigão, a nova residência que o pai supremo da nação nunca conheceu.
A estátua de Ho Chi Minh em frente à câmara municipal prova que a vida continua depois da morte