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terça-feira, 30 de outubro de 2018

O Homem da Maratona





Hoje é dia da Maratona de Moscovo e era impossível não perceber que algo de importante corria na cidade porque o anel, a avenida circular que envolve o centro histórico com uma floresta de jardins e um relvado de árvores frondosas, escorria as primeiras lamas do Outono em direção ao rio Mocka, porque a Catedral de Cristo Salvador não abria as portas ao Domingo, porque havia milhares de homens e mulheres fardados a percorrer os labirintos que circundam a primeira grande obra de recuperação do novo regime, inaugurada no inicio do século como um presente do novo Estado ao segundo renascimento cristão ortodoxo da Rússia.

Aliás a maratona de moscovo não parecia ser um momento de festa para as multidões, simplesmente porque não havia multidões a assistir, também é verdade que as maratonas são feitas para quem corre e não para quem vê, apenas os corredores, já muito cansados e conformados com a sua natureza solitária, provavelmente porque haviam escolhido o fatídico quilometro trinta  para desfilar diante o cristo salvador, entre o kremlin nas costas e a curva do rio para a direita, na sua frente.

Não havia multidões a aplaudir porque todas as ruas estavam fechadas e porque os homens fardados colocavam barreiras, vigiavam os transeuntes e organizavam o transito dos peões em faixas herméticas, corredores que nos afastavam das fachadas da maior igreja ortodoxa de moscovo e nos deixavam desconsolados , porque era domingo e o novo ícone da ortodoxia estava selada e a culpa era da maratona, dos homens fardados que não paravam de chegar e nos olhavam, desconfiados, quando os poucos curiosos se abeiravam das barreiras que nos separavam dos atletas e batiam palmas aos últimos resistentes de Atenas, certamente os últimos de uma fila longa e de uma corda desfiada de atletas.

Os homens correm sozinhos, mas a cidade Estado está salva e a mensagem foi entregue.
E, em assuntos de segurança interna, ninguém questiona a autoridade do estado sobre o direito da expressão individual dos cidadãos.
E não havia cidadãos a trocar votos de amor eternos nos cadeados da ponte, nem a render homenagem aos símbolos imperiais que se avistavam da ponte, a Norte a Basílica, a Leste o Kremlin e a Ocidente a grande estátua de Pedro ao leme da sua Armada, uma silhueta que enchia o horizonte.


E em todos os pontos cardeais, as sete irmãs de Estaline.
Em dias de maratona, circular é a palavra, as emoções podem esperar porque as memórias de insegurança ainda estão vivas e só as meninas dos abastecimentos aos atletas do quilómetro trinta gritam, esbracejam e estimulam os homens da maratona.
E nós perdemos a última cena da ascensão, contornámos apressadamente a ilha do Outubro Vermelho, uma promessa infundada de ócio e lazer, que prometia ser um trocadilho de irreverência mas não era e, cheios de fome, atravessámos a ponte e fomos almoçar à margem sul, entre famílias burguesas e crianças bem educadas, mas ninguém se pareceu importar com isso.




domingo, 28 de outubro de 2018

A guerra patriótica






A entrada na Alameda dos Heróis do Parque da Vitória foi como que se o século passado tivesse desabado das nuvens numa chuva não suficientemente intensa que apagasse os vestígios, mas tão insistente que turvava as memórias em catadupa, uma cascata da qual não se discernia senão uma espuma de tremores, sons de canhão e, por fim, um silêncio sepulcral.
Respira-se no silêncio da alameda, um eco cerimonial que atravessa a fachada do museu da guerra patriótica, um edifício que nos recebe com um abraço de formas côncavas, uma familiaridade que nos recorda, mais do que uma geografia ou uma ideologia, uma época.
Um silêncio que se ouve no corredor de luzes que nos conduz à escultura que representa a mãe Rússia, revestida de um branco que reduz a definição das suas formas e alimenta os mitos da nação invencível.
Sempre com um som de marcha militar, cântico revolucionário ou simplesmente um hino, tão baixo que parece ser destinado ao inconsciente, a não incomodar a memória dos heróis ou os rituais de cerimónia.
As imagens seguintes podiam ter saído de um diaporama, de dezenas de diaporamas


Mas são as imagens dos inúmeros meses de cerco nazi a Leningrado que ficam gravadas na nossa retina, sala após sala, numa repetição de horrores e triunfos de forma tão sistemática que confundo Minsk com Estalinegrado e, algumas salas depois, já não sou capaz de me recordar do novo nome da cidade do timoneiro da guerra patriótica.
E as guardiãs dos templos, que são as salas dos diaporamas, depressa desfazem os nossos equívocos, afinal a farda marcial e a postura preservada pela história revelam os novos sinais dos tempos, uma genuína preocupação pela nossa orientação na cronologia dos factos.
Claro que, depois do apocalipse, as memórias foram cuidadosamente reconstruídas, poucos duvidam que, no olho do furacão da violência e da barbárie, restasse uma imagem clara da cronologia dos factos.
Para além de que uns eram invasores e outros invadidos.
Memórias reconstruídas por uns e pelos outros, exceto pelos vencidos, a quem lhes foi retirado o direito de ter uma visão própria
E, para além dos vencidos, havia a nossa visão e a visão deles, do inferno, dos sons, luzes e fogo em que a Europa se tornou nos meados do século vinte, que foi cuidadosamente retocada também porque a construção das ideologias não convive bem com as imprecisões provocadas pelo caos.
Surpreendente, a forma didática como os crescidos, vestidos de pioneiros, recebem dezenas de crianças, também elas vestidas de pioneiros e de sorrisos concentrados, e lhes explicam com uma forte convicção sonora e visual, a visão russa da história soviética do século passado
A descontextualização da Guerra Patriótica (ou afinal de contas os soviéticos também eram russos) e o culto dos heróis e do sacrifício é (especialmente) uma forma de exorcizar os inimigos e afirmar o orgulho da pátria.
Termos contornado o século vinte, permite-nos admirar os espaços desprovidos de qualquer retórica ideológica e centrar-nos apenas na forma como os russos viveram o seu presente e, hoje, procuram reproduzir o seu passado.
Mas, quando assomámos do túnel do metro de Pobedy, não imaginaríamos nunca, que bastava substituir a bandeira da foice e do martelo pela tricolor, para que a toda uma memória reconstruída fosse preservada como se, nunca tivesse existido uma nova revolução de fim de século que tinha renegado tudo o que haviam defendido durante um século de revolução.
Bem, afinal nem tudo.
Surpreendentemente, existe uma visão oriental da guerra, a versão deles, sem o distanciamento de quase um século de paz relativa, que sobreviveu à hecatombe ideológica do século vinte e um



terça-feira, 23 de outubro de 2018

Alexandre, o Reformista




Alexandre II foi o primeiro Czar verdadeiramente renovador.
Já ia longo o século XIX e, nem por isso, a servidão tinha sido abolida da imensidão da estepe russa
Por isso o enorme quadro que preenche uma parede inteira no museu Tretaykov, o museu de arte moderna russa dos séculos dezoito e dezanove tem significado, para quem se esforçou por descobrir a História Russa, pelo menos a partir da ascensão dos Romanov.
Alexandre II falando com os camponeses, quem sabe tentando explicar que a nobreza que dele dependia o tinha impedido de libertar os camponeses com a dignidade suficiente que impedisse, algumas dezenas de anos mais tarde, o eclodir de uma revolução sangrenta e cessionária.
A última tentativa de salvar o império de forma tranquila, por isso insistiam os homens do Czar que a revolução tinha de ser feita de cima para baixo.
Mas não foi
A arte russa dos finais de Era é, essencialmente, explicita, como se o meio envolvente fosse de tal maneira pungente, que impedisse a abstração dos artistas, como se estes se sentissem na obrigação estética de desfazer os equívocos e as incapacidades de um estado se transformar num instrumento mobilizador da mudança.


Porque a ambição sempre foi tão grande quanto a dimensão do território, mas este foi esmagador na diversidade e na relutância de um destino comum.
Talvez por isso, a arte russa não precisa de ser revolucionária para não ser meiga, precede a revolução na sua expressividade, na proliferação das cores e na dimensão das suas telas e oscila, como a própria história do país, entre o triunfal e o sofredor.
Sem uma ordem nem uma cronologia clara.
Por isso, nas paredes do museu de Tretaykov espelham-se sinais de premonição, perpetuam-se as cenas épicas como se a Rússia profunda pré-revolucionária, não se pudesse construir apenas de lugares e gentes comuns.
Tão impressionante quanto os olhos dos guardiões do regime, os vigilantes, tão idosos como se vivessem na nuvem que lhes definiu o destino, muitas horas seguidas de guarda de honra aos mortos da História ( ainda se ouviam os ecos da revolução) tão inexpressivos quanto a sua ausência de palavras, gestos ou apenas um sorriso, sequer.
Há ainda uma geração que espera, pacientemente, que o tempo passe sem desfazer o bolor e a patine e baixa os olhos perante a curiosidade dos forasteiros.
Perscruto os vigilantes que dormitam de olhos abertos, e antevejo instruções precisas para não interferirem com o curso da História, nem demonstrar demasiado amor próprio.
Como se as instruções tivessem sido dadas há, pelo menos trinta anos, e ninguém mais se tivesse lembrado de os retirar da máquina do tempo.
Eram quase oito da noite e começava a chover em Moscovo.
Afinal de contas, o Verão tinha acabado hoje.
Nós, talvez por termos acordado repentinamente no princípio do resto do mundo, estávamos cilindrados pelas centenas de anos que os nossos passos haviam percorrido, mas devidamente recompensados pelo esforço prévio de tentar obter diferentes perspetivas para interpretar os sinais de cirílico que emanam dos lugares deste país.
Regressados ao calor da modernidade, esperámos pacientemente pela enorme pizza de presunto e dois baldes de cerveja russa, não demonstrámos sinais de impaciência e sorrimos em eslavo incompreensível para a jovem empregada de mesa, não fosse ela impacientar-se como a colega do almoço, perante a tímida lembrança de que tínhamos pedido dois, e não um, café.
“Coffee is cooking” – foi a única vez que, em plenos pulmões, nos sentimos compreendidos naquele dia, na cidade do Ivan.
E emborcámos sem piedade, com a certeza de que jamais nos iriamos aborrecer com os russos, mesmo quando lhes devolvemos troco em excesso e eles nos responderam com um trejeito, na fronteira entre o trocista e o indiferente ou mesmo quando a avozinha do guichet do metro se impacientou em russo quando demonstrámos não entender as suas explicações gestuais e sugerimos percursos alternativos que gostaríamos  de seguir, para alcançar o nosso destino.
Ela tinha razão, quem não tem experiência, não deve ter opinião

Afinal de contas esta malta também tem amor próprio, nós é que não entendemos



Quanto ao fim da  História de Alexandre, é relevante concluir que um problema de expetativas matou o Czar e a sua reforma!

sábado, 20 de outubro de 2018

A ponte do amor



Junto à ponte do amor, a noiva hesita, deverá esperar pelo noivo e subir para a ponte com o noivo pelo braço ou deverá subir para a ponte sozinha, porque a sorte e o amor são estados de busca e não de espera, conseguem-se com dois, mas não sobrevivem a relações de domínio, exigem construção e iniciativa
Ou espera por ele?
A noiva é branca, tão branca que retira o realce ao vestido, tão branca como uma louça de porcelana que permanece hirta e que devolve os reflexos de luz sempre que muda de ângulo, sempre que desvia o pescoço e lança os olhos para o horizonte, um olhar que hesita entre o predador e a presa , uma timidez de camponesa que pressente que, entre ela e o noivo, há uma urbe imensa que lhes pode alterar as perspetivas.
Ao seu lado, a acompanhante, de olhar vivo e nariz que se mantém ereto, como se farejasse a vida e as sensações de forma ininterrupta, veste-se de ganga coçada e de rasgões premeditados, , uma pele que aspira vida pelos poros e que realça o branco da sua blusa larga e a agilidade dos seus movimentos
Ela controla os movimentos circundantes, a ansiedade da jovem noiva, os pensamentos do noivo, a inclinação do Sol e emana uma auréola de cosmopolitismo eslavo que ordena à noiva, com olhares furtivos, mas decididos, que espere, é verdade que a tradição exige que o noivo espere por ela, mas todos os descuidos podem ser perdoados e são os imprevistos que justificam a proliferação da iniciativa privada, de uma nova juventude que concebe o seu estilo de vida próprio, com base na resiliência, na iniciativa e na capacidade de aproveitar as oportunidades que os sentimentos, as necessidades e as inseguranças dos outros, criam.
As bases do capitalismo, portanto
E, afinal de contas, manter algumas superstições não comprometem o rumo da modernidade e mesmo o futuro precisa de rituais para florescer
 A noiva que vive o ritual de uma vida na ponte do amor da grande cidade, da grande capital e que hesita sobre a melhor forma de trepar para a ponte dos cadeados do amor e a jovem consultora que sabe que os cadeados estão presos nas árvores e não nas pontes e que as árvores são artificiais porque não há arvores a nascer nas pontes, mas não tem dúvidas que o efeito nas memórias não se faz necessariamente da genuinidade dos elementos mas do efeito retardado que eles provocam nas memórias e no reconhecimento social.
E, diante a naturalidade de uma geração sem passado, e de outra que procura assimilar os múltiplos passados que moldaram os seus olhares perplexos de hoje, as mudanças constroem-se à sombra dos heróis da Revolução, dos símbolos da resistência e dos ícones do grande império.
Que, resolvidos os equívocos ideológicos, ninguém parece contestar.




Os passeios de Sábado ao longo do rio Mockba são uma manifestação das famílias que se pretendem reconfortar com o regresso ao direito à individualidade e a um quotidiano desprovido de momentos épicos, um bem tão precioso que parece justificar a abstinência de uma consciência política.
E uma forma de se procurar reconciliar as gerações, as perspetivas e as expetativas, independentemente da diferença dos olhares, das roupas que vestem e da resiliência que denotam.
Independentemente da inevitabilidade de haver vencedores e vencidos e do facto de apenas o indelével percurso da vida e da morte poder resolver as memórias em carne viva dos filhos do império.




terça-feira, 16 de outubro de 2018

O génio de Ivan





Há um sentido para procurar o Kremlin quando chegamos a Moscovo.
Afinal de contas o castelo não é apenas um símbolo da nação, é a própria origem da Moscóvia, quando esta lutava para nascer e empurrava a horda dourada para Oriente.
E saímos cedo de Kievyscaia, um Sábado de manhã de um Sol que ainda não exalava calor, mas despejava luz nas pontes sobre o rio Mockba e refletia o vidro da cidade nova que se erguia a Ocidente, bem para lá das fronteiras, do círculo das sete irmãs, os orgulhos arquitetónicos de Estaline
Plantada a norte, emergia do horizonte a Casa Branca, um bloco de cimento pintado de branco que trocou a sua origem soviética pelo grito da desagregação do império.
E, à medida que decifrávamos os olhares fortuitos e os novos símbolos, percorríamos a história numa cronologia inversa ao longo da Arbat romântica de Pushkin, de casas quase térreas, cores suaves como as imagens ligeiramente saturadas que retemos na memória rural dos grandes clássicos da literatura russa dos séculos dezoito e dezanove.
E o centro da cidade é um território de conquista, um local de culto dos primeiros Tzars, de santificação dos mártires da guerra com os mongóis e marca definitivamente o início da expansão do reino da Moscóvia em direção a Leste e a Sul.
Por isso, o castelo das cinco igrejas, erigidas pela ortodoxia entre os séculos quinze e dezassete marcam o (primeiro) período orientalista do império russo, antes da chegada de Pedro, um homem do mar que não apreciava a continentalidade e que se considerava, acima de tudo, europeu e, por vezes, demasiado atraído por Roma.
Por isso, a fisionomia do centro de Moscovo é defensiva, ortodoxa e rodeada de muralhas e de suspeições.
Por isso, é ao Kremlin que a oligarquia sempre regressa quando se sente ameaçada pelo Ocidente e se recolhe entre as hordas conservadoras da igreja.
E, sem surpresa, com alguns séculos de interregno Petrino o seu último símbolo construído foi Palácio Estatal do Kremlin cujas formas quadradas e a abundância de vidro não permite disfarçar a sua origem no século vinte revolucionário e bolchevique.
Por isso, o Kremlin é a porta de entrada da Rússia nas suas ambições asiáticas e nas desconfianças europeias.
E, tal como parecem disso estar convencidos os novos historiadores da velha Rússia, o interior do Kremlin é tão pouco relevante para o presente como Ivan, o Terrível (afinal de contas apenas Ivan IV) e os seus demónios pessoais o foram, nos seus cinquenta anos de reinado, para os turbulentos anos do século que o sucedeu.
O Kremlin não é a Rússia, é provavelmente o local menos local de toda a cidade, quiçá de todo o país (mas também não tem de ser) mas antes a imagem que eles querem que nós tenhamos da sua realidade e um local de peregrinação para o imenso povo anseia respirar os vapores do império
Do outro lado das muralhas, na praça Vermelha, que deve o nome a uma analogia entre a palavra e um sinónimo de beleza e que, ao contrário do que parece, não usa a cor com qualquer conotação ideológica, passeiam milhares de estrangeiros, fascinados pelo mausoléu de Lenine e pelas imagens bélicas dos grandes desfiles militares.
Os verdadeiros moscovitas preferem espraiar-se pelos jardins exteriores de Alexandre, onde se homenageiam os heróis da resistência aos malogrados invasores ocidentais da estepe russa, Alexandre I o homem que derrotou Napoleão e os milhões de soldados desconhecidos que derrotaram Hitler.


No último dia de Verão, um mau presságio para todos aqueles que se sentem estrangeiros no castelo do Kremlin













sábado, 13 de outubro de 2018

Os filhos de uma mãe maior




O abraço da mãe Rússia foi intenso, não por vontade própria dos seus milhões de filhos, mas porque ela é de uma estranheza que se torna familiar à medida que vamos contabilizando as semelhanças e as diferenças e o quadro se mantém balanceado.
Sempre.
Teimosamente.
Mais do que isso, é uma obstinação russa provocar-te a desorientação, sempre que te parece próxima e que o cirílico parece um código que se decifra símbolo a símbolo.
No momento seguinte, um qualquer equívoco linguístico inconveniente lança-nos um mau olhado e as expressões voltam a fechar-se e permanecemos sozinhos, rodeados pelo mundo deles.
Esta é a primeira impressão e, passados sete dias, é também a última.
Uma defesa contra as fragilidades da sua geografia de milhões de quilómetros quadrados, mares fechados por estreitos de centenas de metros de largura ou por milhares de quilómetros de gelos quase eternos.
Ou uma estepe plana que lhes abre as fronteiras terrestres pela Europa dentro à espera de que o Inverno os proteja.
Numa linguagem geoestratégica, um gigante de pés de barro.
Chegámos na quase madrugada do último dia de Verão e a temperatura estava amena e as primeiras imagens são quase estereótipos.
O Sol nasce muito cedo neste prelúdio de Inverno que é o curto Verão russo mas os subúrbios da grande metrópole já fervilham de gente que caminha de cabeça baixa, passos curtos e apressados, casacos longos e pesados por entre uma bruma matinal que filtra o ultimo sol de verão, uma ausência quase absoluta de cor, uma predominância dos castanhos e dos cinzentos e de uma geometria herdada dos longos anos de uma arquitetura construtivista.
E uma estranheza imensa de que os povos do frio se vestissem como inverno, quando ainda estávamos no último dia de verão – na sua forma substancial, claro que basicamente é a mesma da forma de calendário.
Julgamos ter descoberto, algum tempo depois, que Moscovo é também uma cidade de novos estrangeiros, os despojados do antigo império, os homens e as mulheres do Sul que farejam o frio antes dele chegar.
(Mas essa é a história do fim do Homem Soviético, impossível de adivinhar para quem não domina o cirílico)
Mas o que mais nos surpreende é o expoente do próprio estereotipo, a dimensão apoteótica dos lugares, dos edifícios e dos espaços entre eles, a extensão e a largura das avenidas, tudo fazendo parte da imagem que havíamos preconcebido, mas numa medida que não cabe nas nossas proporções.
Mas, verdadeiramente a primeira imagem é um equívoco ocidental, o primeiro entre muitos.
Esperava-nos o Nicolai que nos tinha avisado na véspera que estaria à nossa espera, numa mensagem em que o dono da conta era uma jovem de cabelos louros chamada Nicolai.
Afinal o Nicolai era um homem maduro, de feições fechadas e um olhar geométrico, compleição física de um atleta de alteres que nos cumprimentou com impercetível acenar de cabeça e ficou desconcertado quando lhe estendemos a mão para o cumprimentar.
Estávamos avisados que o contacto físico com estranhos não é o forte dos russos.
Mas aproveitámos a imensidão da estepe urbana e confiámos que o Inverno não chegaria.
E, relutante, o homem estendeu-nos a mão, para rapidamente se refugiar de novo no seu espaço próprio.
E, pela primeira vez de muitas, esbarrámos naquele tipo de olhar que, ainda hoje, na ressaca russa, somos incapazes de discernir entre desconforto, brusquidão, frieza, antipatia, timidez, incompreensão ou receio.
Por isso, ou talvez não, o Nicolai permaneceu silencioso e concentrado no trânsito em todo o percurso até à cidade.
E, com as primeiras imagens, logo compreendemos que o Verão ia mesmo acabar hoje, dia 22 de setembro, último dia formal da estação estival.
A partir de 23, a temperatura não parou de tombar e vivemos uma semana de revolta dos elementos.
Na Rússia respeitam-se os elementos de uma forma muito substantiva, e o fim do verão não tem interpretações vagas, como se o direito à individualidade terminasse no momento que esta pudesse interferir com a natureza dos elementos.
E também com outras questões de interesse nacional, entendemos nós quando, pouco depois, fomos submergidos no mundo da vigilância eletrónica, dos detetores de metais, da revista minuciosa e dos seguranças com cara e corpo de armário, os elementos da natureza do estado destinados a apagar as memórias recentes, em carne viva.
Como diria o N. que, pretensiosamente julga ter descoberto um novo conceito, uma censura consentida

Para já, grandeza, distanciamento, orgulho, sobrevivência e controlo, no grande jogo proibido dos adjetivos na escrita.