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quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Petrina, A Grande



Em S. Petersburgo sopra o vento do Báltico, que se infiltra nos canais ao sabor dos impulsos do inverno polar e das investidas da história, concebidas de memórias nórdicas e de fascínios ocidentais.

Em S. Petersburgo, a mãe Rússia manifesta-se com a timidez de quem sabe que não controla o destino dos filhos resgatados de forma tardia a uma outra genética
Quando nos confrontamos com a cidade que ainda esfrega os olhos de sono percebemos que, para lá das paredes austeras da gare central que ainda marca moscovo com bola vermelha no centro do mapa dos caminhos de ferro, existe uma nova alma cosmopolita que desafia, na geometria dos antigos traçados, as heranças do passado recente.
Pressente-se na ausência de pressão alta dos taxistas da estação, na arquitetura quente dos interiores forrados de madeiras, luzes indiretas, cestos de laranjas, vitrines redondas que envolvem os scones de sabores, uma ardósia que desenha em cirílico exemplar, as sugestões de pequenos almoço, mesas e bancos de madeira corridos, reminiscências estéticas do bom gosto e do minimalismo escandinavo.
E, no silêncio da internet sem fios, sobressai o direito à individualidade, os momentos de introspeção que se refletem nas vidraças do outro lado da rua, nos edifícios da universidade que jazem no tempo, submersos por árvores que estendem os ramos como raízes e atestam a permanência do saber.
E, sem surpresas, embalamos entre a visão da magia dos universos rurais de Kundera, e das novas dimensões tecnológicas do conhecimento, e nem nos apercebemos que esporadicamente os estudantes falavam uma linguagem local.
Os ventos do Báltico serpenteiam as avenidas e as ruas da Petrina, mas respiram-se as correntes de ar sem complexos de culpa, mostrando que é possível harmonizar a coexistência de ambientes e experiências, sem subtrair nenhum dos elementos essenciais da história.
É verdade que a primeira impressão é sempre efémera – e voltamos às referências de Kundera – mas SP revela, nesta manhã fria, mas cheia de sol, arrojo e mensagens subliminares, depois do dilúvio moscovita.
Começando pelo nome.



segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

A rapariga do bar



Infinito para além é o desenho que lhe rasga a pele por conta da aventura alemã, da amiga brasileira e do reencontro na primavera russa, por alturas do circo do futebol.
Nós éramos refugiados do diluvio moscovita que nos tinha empurrado para o lobby do hotel que vivia em círculo aberto com predominância das cores brancas e os formatos de uma nova geometria de espaços.
E ela era a rapariga do bar
Extrovertida, podia chamar-se Irina, mas o nome era o menos expressivo no olhar que saltava ao longo do balcão, que se escondia nas cornijas do bar ou nos levitava dos bancos altos quando falávamos entre nós o português de Portugal.
Mostrou-nos a tatuagem no braço, primeiro com orgulho, depois com uma inquietação que crescia na mesma medida em que os colegas homens começavam a rondar a nossa conversa, de um lado e do outro do balcão, em que as meninas da receção acenavam com as cabeças louras, lá longe, no espaço aberto, e interessava-se pela nossa opinião sobre a cerveja russa, jorrava uma curiosidade tão fluida como a espuma que saía dos barris, “gostam da cerveja russa?” e, perante o nosso acenar sincero, respondia que a amiga brasileira detestava a cerveja russa e que, durante as duas semanas do Mundial, beberam, comeram, divertiram-se e “whatever else” e nós não perguntámos mais nada, por pudor ou porque os outros continuavam a rondar o local, atestando cervejas imaginárias e pratos de salgados para clientes que não existiam no balcão.
E ela mostrava a mensagem cósmica, perguntava-nos se os portugueses entendiam os brasileiros e nós acenámos com a ingenuidade de um povo que fala a mesma língua, mas não partilha os mesmos significados e não alcança o misticismo mestiço dos irmãos além-mar.
Não temos tatuagens, insistíamos perante a incredulidade dela, não entendemos o significado subliminar de infinito para além, nem como mensagem de amor eterno, mas esforçávamo-nos por aceitar, afinal de contas “cada um faz o que está na sua consciência” enfatizava ela não deixando de olhar de soslaio porque os outros pareciam subitamente chamados à conversa quando ela afirmava que já tinha duas tatuagens na perna e nós, por pudor ou porque as sensibilidades russas não são o nosso forte, não perguntávamos mais nem pedimos para ver, apenas acenávamos obedientemente, “sim, claro, a nossa consciência é que conta” e ela perguntava se não bebíamos mais uma cerveja russa e nós, relutantes, dissemos que não.
Ela pareceu desapontada, porque não tínhamos tatuagens, porque concordávamos com tudo, porque não bebíamos mais cerveja porque, mesmo que eventualmente de forma vaga, a nossa presença e a nossa língua lhe lembrava a aventura alemã, e os momentos em que elas se sentiam capazes de transformar o mundo sem olhares reprovadores nem culpas inúteis, como eu a compreendia com, pelo menos, trinta anos de avanço, ou de atraso.
Enfiámo-nos nas profundezas do metropolitano de Moscovo e fomos apanhar o expresso da meia-noite.
Adormecemos sobre os carris que nos levavam para norte e sonhámos muito, com as tatuagens da rapariga do bar, a vontade de mudar o mundo, o dilúvio que caíra sobre Moscovo, as imagens dos veteranos que defenderam as cidades expostas à chuva dos jardins do anel da cidade, as sete irmãs de Stalin, a juventude bem vestida que apenas se queria proteger da chuva, navegar na net de linguagem universal e sons de Amy Winehouse e a chuva que nos tinha perfurado os ossos só porque não queríamos ir embora sem ver a Casa Branca, teimosia latina de não perder nenhuma referência histórica
E com a gigantesca praça komsomol'skaya onde Lenine ainda discursava às massas, eles são milhões e daqui partem comboios para Pequim, Vladivostok com travessia da Sibéria em sete dias e para onde o teu imaginário te levar.
E acordámos no Báltico do frio cortante e do céu azul.





terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Охотный Ряд - A curva à esquerda



Nos anos 30 do século 20 a arte encontrava-se ao serviço da nova revolução que se esforçava arduamente por afirmar Moscovo como o centro de um novo mundo, desenhado segundo os pincéis de uma boémia anarquista pré-guerra porque os padrinhos do construtivismo entendiam que a mensagem devia ajustar-se aos destinatários.
Apesar do curso da História e das correntes artísticas, há referências que o tempo não destrói, como a curva à esquerda na Охотный Ряд bem nas costas do pedestal de Karl Marx ou nos jardins do teatro Bolshoi. 
Em tons mais sóbrios e menos festivos, porque há uma nova geração de gente muito séria que habita nos contornos do anel dourado.
E o presente de Moscovo não tem a ambição de ser reconhecido como uma cidade em festa, prefere as referências discretas e austeras dos negócios e  do poder.
Mas a curva à esquerda sobreviveu à Guerra e à Paz.