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quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Petrina, A Grande



Em S. Petersburgo sopra o vento do Báltico, que se infiltra nos canais ao sabor dos impulsos do inverno polar e das investidas da história, concebidas de memórias nórdicas e de fascínios ocidentais.

Em S. Petersburgo, a mãe Rússia manifesta-se com a timidez de quem sabe que não controla o destino dos filhos resgatados de forma tardia a uma outra genética
Quando nos confrontamos com a cidade que ainda esfrega os olhos de sono percebemos que, para lá das paredes austeras da gare central que ainda marca moscovo com bola vermelha no centro do mapa dos caminhos de ferro, existe uma nova alma cosmopolita que desafia, na geometria dos antigos traçados, as heranças do passado recente.
Pressente-se na ausência de pressão alta dos taxistas da estação, na arquitetura quente dos interiores forrados de madeiras, luzes indiretas, cestos de laranjas, vitrines redondas que envolvem os scones de sabores, uma ardósia que desenha em cirílico exemplar, as sugestões de pequenos almoço, mesas e bancos de madeira corridos, reminiscências estéticas do bom gosto e do minimalismo escandinavo.
E, no silêncio da internet sem fios, sobressai o direito à individualidade, os momentos de introspeção que se refletem nas vidraças do outro lado da rua, nos edifícios da universidade que jazem no tempo, submersos por árvores que estendem os ramos como raízes e atestam a permanência do saber.
E, sem surpresas, embalamos entre a visão da magia dos universos rurais de Kundera, e das novas dimensões tecnológicas do conhecimento, e nem nos apercebemos que esporadicamente os estudantes falavam uma linguagem local.
Os ventos do Báltico serpenteiam as avenidas e as ruas da Petrina, mas respiram-se as correntes de ar sem complexos de culpa, mostrando que é possível harmonizar a coexistência de ambientes e experiências, sem subtrair nenhum dos elementos essenciais da história.
É verdade que a primeira impressão é sempre efémera – e voltamos às referências de Kundera – mas SP revela, nesta manhã fria, mas cheia de sol, arrojo e mensagens subliminares, depois do dilúvio moscovita.
Começando pelo nome.



segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

A rapariga do bar



Infinito para além é o desenho que lhe rasga a pele por conta da aventura alemã, da amiga brasileira e do reencontro na primavera russa, por alturas do circo do futebol.
Nós éramos refugiados do diluvio moscovita que nos tinha empurrado para o lobby do hotel que vivia em círculo aberto com predominância das cores brancas e os formatos de uma nova geometria de espaços.
E ela era a rapariga do bar
Extrovertida, podia chamar-se Irina, mas o nome era o menos expressivo no olhar que saltava ao longo do balcão, que se escondia nas cornijas do bar ou nos levitava dos bancos altos quando falávamos entre nós o português de Portugal.
Mostrou-nos a tatuagem no braço, primeiro com orgulho, depois com uma inquietação que crescia na mesma medida em que os colegas homens começavam a rondar a nossa conversa, de um lado e do outro do balcão, em que as meninas da receção acenavam com as cabeças louras, lá longe, no espaço aberto, e interessava-se pela nossa opinião sobre a cerveja russa, jorrava uma curiosidade tão fluida como a espuma que saía dos barris, “gostam da cerveja russa?” e, perante o nosso acenar sincero, respondia que a amiga brasileira detestava a cerveja russa e que, durante as duas semanas do Mundial, beberam, comeram, divertiram-se e “whatever else” e nós não perguntámos mais nada, por pudor ou porque os outros continuavam a rondar o local, atestando cervejas imaginárias e pratos de salgados para clientes que não existiam no balcão.
E ela mostrava a mensagem cósmica, perguntava-nos se os portugueses entendiam os brasileiros e nós acenámos com a ingenuidade de um povo que fala a mesma língua, mas não partilha os mesmos significados e não alcança o misticismo mestiço dos irmãos além-mar.
Não temos tatuagens, insistíamos perante a incredulidade dela, não entendemos o significado subliminar de infinito para além, nem como mensagem de amor eterno, mas esforçávamo-nos por aceitar, afinal de contas “cada um faz o que está na sua consciência” enfatizava ela não deixando de olhar de soslaio porque os outros pareciam subitamente chamados à conversa quando ela afirmava que já tinha duas tatuagens na perna e nós, por pudor ou porque as sensibilidades russas não são o nosso forte, não perguntávamos mais nem pedimos para ver, apenas acenávamos obedientemente, “sim, claro, a nossa consciência é que conta” e ela perguntava se não bebíamos mais uma cerveja russa e nós, relutantes, dissemos que não.
Ela pareceu desapontada, porque não tínhamos tatuagens, porque concordávamos com tudo, porque não bebíamos mais cerveja porque, mesmo que eventualmente de forma vaga, a nossa presença e a nossa língua lhe lembrava a aventura alemã, e os momentos em que elas se sentiam capazes de transformar o mundo sem olhares reprovadores nem culpas inúteis, como eu a compreendia com, pelo menos, trinta anos de avanço, ou de atraso.
Enfiámo-nos nas profundezas do metropolitano de Moscovo e fomos apanhar o expresso da meia-noite.
Adormecemos sobre os carris que nos levavam para norte e sonhámos muito, com as tatuagens da rapariga do bar, a vontade de mudar o mundo, o dilúvio que caíra sobre Moscovo, as imagens dos veteranos que defenderam as cidades expostas à chuva dos jardins do anel da cidade, as sete irmãs de Stalin, a juventude bem vestida que apenas se queria proteger da chuva, navegar na net de linguagem universal e sons de Amy Winehouse e a chuva que nos tinha perfurado os ossos só porque não queríamos ir embora sem ver a Casa Branca, teimosia latina de não perder nenhuma referência histórica
E com a gigantesca praça komsomol'skaya onde Lenine ainda discursava às massas, eles são milhões e daqui partem comboios para Pequim, Vladivostok com travessia da Sibéria em sete dias e para onde o teu imaginário te levar.
E acordámos no Báltico do frio cortante e do céu azul.





terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Охотный Ряд - A curva à esquerda



Nos anos 30 do século 20 a arte encontrava-se ao serviço da nova revolução que se esforçava arduamente por afirmar Moscovo como o centro de um novo mundo, desenhado segundo os pincéis de uma boémia anarquista pré-guerra porque os padrinhos do construtivismo entendiam que a mensagem devia ajustar-se aos destinatários.
Apesar do curso da História e das correntes artísticas, há referências que o tempo não destrói, como a curva à esquerda na Охотный Ряд bem nas costas do pedestal de Karl Marx ou nos jardins do teatro Bolshoi. 
Em tons mais sóbrios e menos festivos, porque há uma nova geração de gente muito séria que habita nos contornos do anel dourado.
E o presente de Moscovo não tem a ambição de ser reconhecido como uma cidade em festa, prefere as referências discretas e austeras dos negócios e  do poder.
Mas a curva à esquerda sobreviveu à Guerra e à Paz.





terça-feira, 27 de novembro de 2018

Art Play





Os subúrbios de Moscovo estão para lá dos anéis dourados da cidade e, por aqui, não existem lobbies onde a corpulência da segurança é proporcional à opulência dos lugares
As avenidas permanecem largas, afinal são as mesmas, mas esta nova amplitude lamenta-se com a solidão dos passos apressados, dos pavimentos desleixados e dos prédios pouco cuidados que desfilam em mais de sessenta anos de construção em massa e de migrações inesperadas.
Alguns lançam-nos olhares desconfiados, mas poucos, a maior parte dos transeuntes apenas tratam da sua própria vida, há mais gente que circula de cabeça baixa e olhos pregados no chão.
Longe do anel dourado.
Como em todos os subúrbios, afinal de contas, em torno das nove estações de comboio da capital, todas elas com os nomes soviéticos dos seus principais destinos finais, muito tempo depois de terem derrubado estes símbolos da nomenclatura geográfica oficial.
Nos bairros para lá dos anéis há os procuram ascender na pirâmide da ambição e há os que se seguram à cidade e ao que resta das suas memórias.
São estes lugares que constituem o purgatório das cidades imensas.
Mas em Moscovo a proporção sofre de uma intensidade que é refém da história recente, em que a capital foi o refúgio menos do que provável de uma imensidão de povos, de deslocados de expatriados, antigos irmãos, depois inimigos.
Nos arrabaldes das linhas de comboio, alternam as visões entre a anarquia pós-império (sem que alguém tivesse distribuído previamente qualquer manual de instruções) e as reminiscências operárias de uma vaga de deslocados da ruralidade russa.


E, escondidos entre as traseiras de uma indústria extinta, nasce a Moscovo pós-industrial, em ilhas de um novo capitalismo exuberante e sem pudor, imersas nas carcaças velhas dos antigos armazéns revestidas de cores, cheiros e sons diferentes.
As antecâmaras dos túneis outrora sombrios, povoam-se de uma nova geração sem memória, que se move com a agilidade felina, roupas justas e de cores escuras onde a arte, a estética e o negócio, chegam de elétrico rápido e não trocam saudações com a vizinhança
O terceiro pilar da nova autocracia russa tem um novo olhar sedutor e uma convicção inabalável no destino.
A loura do Porsche Cayenne que sai velozmente do túnel obscurecido pela fuligem e pelo tempo é a prova de que restaram sobreviventes da lei seca e do processo de construção do capitalismo de fim de século.










domingo, 25 de novembro de 2018

Diálogos do século




A vida intelectual da Rússia de Nicolau I era condicionada na sua expressão pública por uma censura estatal dura, ainda que flexível.

Um conceito tão russo quão presente, reflexo das suas vocações orientalistas, uma forma estranha de lidar com a ambiguidade, pelo menos para os visitantes estrangeiros que descreviam a Rússia de Nicolau como um período noturno de repressão
Para a grande nação continental, esta foi uma época dourada nas letras russas em que a alta cultura russa se libertou da anterior imitação das artes ocidentais e produziram obras que alteraram os contornos da cultura mundial.
Nos romances e poemas de Puchkine apareceu o “homem supérfluo” o herói transformado em anti-herói, nas obras de Gogol ressaltaram as sátiras mordazes sobre as deficiências humanas do seu próprio tempo, personagens fantásticas e reviravoltas de enredos que anteciparam os escritos pós-modernos da nossa época, escritores que apresentaram, pela primeira vez, os servos enquanto personagens totalmente humanas.
E apesar das disputas entre os defensores do passado e do futuro, cujas únicos pontos comuns eram a oposição ao presente russo e o apoio à abolição da servidão, a maioria dos russos instruídos concordavam com a necessidade de censura e tinham orgulho em saber que a Rússia era a maior potência terrestre do mundo.
E, apesar de desconcertante aos olhos de um visitante ocidental, é fascinante ver a história pintada com os olhos da originalidade russa, aquela que se revelou na sua versão mais épica sempre que surgiu como reação a longos períodos de fascínio pelo esplendor ocidental.
Uma herança que povoou as memórias / tragédias do século vinte, uma sequência de pinceladas que confronta os exilados e as suas influências ocidentais temperadas pela nostalgia das estepes geladas e os que ficaram e conviveram com a história da maneira que quiserem ou puderam.
Visual, muito visual, como conhecer Lenine sem descontextualizar o conceito de guerra total, como reconstruir um regime através de símbolos, mas sobretudo retratos pungentes da vida quotidiana de um povo que insiste um sobreviver à imensidão do seu espaço exterior e, nas últimas salas, os retratos instrospetivos dos sentimentos de perda e desilusão e o desmoronamento da simbologia do século passado.
O novo Tretaykov revela-nos múltiplas visões da essência da história e de um povo, com tanta nitidez que custa a crer que, neste país, os instruídos professam, por defeito, o culto da censura.
Censura dura, mas flexível
Só os russos entendem, mas o resultado é épico, estes diálogos do século podem ser mesmo empolgantes















segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Glasnost





Glasnost não é uma expressão nova, na vida russa.

Publicidade, ou seja, com a participação da sociedade no planeamento e na execução da reforma.

É uma expressão tão voluntariosa quanto incapaz de impor uma vontade, original dos governantes dos séculos dezoito e dezanove que exigiam reformas profundas e ansiavam em impor a sua visão (ou uma visão inspirada na cultura europeia) mas eram incapazes de construir, financiar e dotar de meios o Estado para que ele se transformasse num instrumento de governo.
Glasnost é, pois, apenas uma ideologia tentativa, um estado de espírito de consequências imprevisíveis.
Na segunda metade do século dezanove, um terramoto com réplicas centenárias.
Mas a margem sul do rio moscovo respira um espírito de promessa,  como um fantasma que se revela em cada nuvem que se dissipa.
Atravessam-se as pontes e afastamo-nos do núcleo duro dos símbolos do poder central, das medidas de segurança e dos símbolos do turismo organizado em torno dos mitos do domínio imperial.
“I follow the Moskva down to Gorky Park”
Espaços amplos, locais que convidam ao diálogo e ao intercâmbio de ideias, não fosse uma manifestação de tolerância a plantação do parque das estátuas de um passado não reconhecido, bem no centro do jardim, com a bênção de Pedro e como uma extensão exterior ao novo Treytkov onde todo o século vinte da Rússia dos quatro momentos, insiste em confrontar as linhas austeras da sua arquitetura, com retalhos da vida de uma nação.
Reconhecendo que o tempo retira toda a urgência e quase toda a carga ideológica às noções de vanguarda e que, o que mantém a intemporalidade, é apenas arte. 
“Listening to the wind of change”
E, quando espreitamos pela janela, reconhecemos no desfilar pelos quatro momentos da história da Rússia, no sonho desvanecido de um estado moderno governado por czares, no exílio dos brancos nas metrópoles ocidentais, na vanguarda vermelha e no retorno às emoções do final do século, as crianças que jogam à bola por entre os personagens que moldaram o seu passado
 “Where the children of tomorrow dream away” 


E existe uma harmonia que engrandece Pedro, o navegador, do alto da sua armada, dominando o rio Moscovo como se fosse um mar, do alto dos seus noventa e oito metros, uma alegoria à sua estatura e ao seu cognome, o parque das estátuas perdidas, uma espécie de jardim momento que relativiza a importância passada
Independente da dominância de uma arquitetura austera 

I follow the Moskva, down to Gorky Park
Listening to the wind of change
An August summer night
Soldiers passing by
Listening to the wind of change

E nem o arco da vitória, que a todo o momento nos parece querer recordar que a história deste país nunca se fará de lugares comuns, consegue esconder os reflexos de uma simplicidade urbana que se vivia no fim da tarde do imenso verde chamado Gorki, repleto de pessoas comuns, movimentos e conversas numa língua que já nem nos parecia incompreensível, afinal de contas deslizar sobre patins é uma linguagem universal  


Walking down the street
Distant memories
Are buried in the past forever
The world is closing in
Did you ever think
That we could be so close, like brothers
The future's in the air
I can feel it everywhere

E quando o Sol se pôs sobre o lago, os sons da glasnost já não eram um fantasma, uma nova promessa de contornos épicos e resultados incertos, mas apenas uma promessa de normalidade contida

The wind of change
Blows straight into the face of time
Like a storm wind that will ring the freedom bell
For peace of mind
Let your balalaika sing
What my guitar wants to say

Glasnost, 
O que mudou desde o fim de século, não foi o sentido dos ventos de mudança, como uma ideologia tentativa.
Glasnost,  
O que mudou desde o fim de século foi mesmo a negação dos estados de espírito de consequências imprevisíveis.
Acho que nem os Escorpiões adivinhavam que, no princípio da noite do século vinte e um, nas sombras do parque Gorki, os transeuntes não marchariam a favor de um futuro no ar ou dos tempos de mudança, e que os restaurantes do parque manteriam o charme rural do imaginário da velha Rússia, e que as lanternas que crepitavam no seu anterior preferiam uma luz mortiça, quiçá romântica,  a uma promessa de fogo eterno.
Ou um par de cervejas russas e geladas, tagareladas entre meias doses de batatas fritas e uma banda experimental que tocava jazz ao fundo das escadas e que expandia o seu espaço exíguo na fluidez das imagens de fundo, que os ligavam ao mundo e às pequenas janelas que refletiam os passos de uma cidade.
No bairro medieval de Moscovo, apenas umas centenas de metros a sul da Lubianka

Afinal alguma coisa mudou nos ventos do tempo




terça-feira, 30 de outubro de 2018

O Homem da Maratona





Hoje é dia da Maratona de Moscovo e era impossível não perceber que algo de importante corria na cidade porque o anel, a avenida circular que envolve o centro histórico com uma floresta de jardins e um relvado de árvores frondosas, escorria as primeiras lamas do Outono em direção ao rio Mocka, porque a Catedral de Cristo Salvador não abria as portas ao Domingo, porque havia milhares de homens e mulheres fardados a percorrer os labirintos que circundam a primeira grande obra de recuperação do novo regime, inaugurada no inicio do século como um presente do novo Estado ao segundo renascimento cristão ortodoxo da Rússia.

Aliás a maratona de moscovo não parecia ser um momento de festa para as multidões, simplesmente porque não havia multidões a assistir, também é verdade que as maratonas são feitas para quem corre e não para quem vê, apenas os corredores, já muito cansados e conformados com a sua natureza solitária, provavelmente porque haviam escolhido o fatídico quilometro trinta  para desfilar diante o cristo salvador, entre o kremlin nas costas e a curva do rio para a direita, na sua frente.

Não havia multidões a aplaudir porque todas as ruas estavam fechadas e porque os homens fardados colocavam barreiras, vigiavam os transeuntes e organizavam o transito dos peões em faixas herméticas, corredores que nos afastavam das fachadas da maior igreja ortodoxa de moscovo e nos deixavam desconsolados , porque era domingo e o novo ícone da ortodoxia estava selada e a culpa era da maratona, dos homens fardados que não paravam de chegar e nos olhavam, desconfiados, quando os poucos curiosos se abeiravam das barreiras que nos separavam dos atletas e batiam palmas aos últimos resistentes de Atenas, certamente os últimos de uma fila longa e de uma corda desfiada de atletas.

Os homens correm sozinhos, mas a cidade Estado está salva e a mensagem foi entregue.
E, em assuntos de segurança interna, ninguém questiona a autoridade do estado sobre o direito da expressão individual dos cidadãos.
E não havia cidadãos a trocar votos de amor eternos nos cadeados da ponte, nem a render homenagem aos símbolos imperiais que se avistavam da ponte, a Norte a Basílica, a Leste o Kremlin e a Ocidente a grande estátua de Pedro ao leme da sua Armada, uma silhueta que enchia o horizonte.


E em todos os pontos cardeais, as sete irmãs de Estaline.
Em dias de maratona, circular é a palavra, as emoções podem esperar porque as memórias de insegurança ainda estão vivas e só as meninas dos abastecimentos aos atletas do quilómetro trinta gritam, esbracejam e estimulam os homens da maratona.
E nós perdemos a última cena da ascensão, contornámos apressadamente a ilha do Outubro Vermelho, uma promessa infundada de ócio e lazer, que prometia ser um trocadilho de irreverência mas não era e, cheios de fome, atravessámos a ponte e fomos almoçar à margem sul, entre famílias burguesas e crianças bem educadas, mas ninguém se pareceu importar com isso.




domingo, 28 de outubro de 2018

A guerra patriótica






A entrada na Alameda dos Heróis do Parque da Vitória foi como que se o século passado tivesse desabado das nuvens numa chuva não suficientemente intensa que apagasse os vestígios, mas tão insistente que turvava as memórias em catadupa, uma cascata da qual não se discernia senão uma espuma de tremores, sons de canhão e, por fim, um silêncio sepulcral.
Respira-se no silêncio da alameda, um eco cerimonial que atravessa a fachada do museu da guerra patriótica, um edifício que nos recebe com um abraço de formas côncavas, uma familiaridade que nos recorda, mais do que uma geografia ou uma ideologia, uma época.
Um silêncio que se ouve no corredor de luzes que nos conduz à escultura que representa a mãe Rússia, revestida de um branco que reduz a definição das suas formas e alimenta os mitos da nação invencível.
Sempre com um som de marcha militar, cântico revolucionário ou simplesmente um hino, tão baixo que parece ser destinado ao inconsciente, a não incomodar a memória dos heróis ou os rituais de cerimónia.
As imagens seguintes podiam ter saído de um diaporama, de dezenas de diaporamas


Mas são as imagens dos inúmeros meses de cerco nazi a Leningrado que ficam gravadas na nossa retina, sala após sala, numa repetição de horrores e triunfos de forma tão sistemática que confundo Minsk com Estalinegrado e, algumas salas depois, já não sou capaz de me recordar do novo nome da cidade do timoneiro da guerra patriótica.
E as guardiãs dos templos, que são as salas dos diaporamas, depressa desfazem os nossos equívocos, afinal a farda marcial e a postura preservada pela história revelam os novos sinais dos tempos, uma genuína preocupação pela nossa orientação na cronologia dos factos.
Claro que, depois do apocalipse, as memórias foram cuidadosamente reconstruídas, poucos duvidam que, no olho do furacão da violência e da barbárie, restasse uma imagem clara da cronologia dos factos.
Para além de que uns eram invasores e outros invadidos.
Memórias reconstruídas por uns e pelos outros, exceto pelos vencidos, a quem lhes foi retirado o direito de ter uma visão própria
E, para além dos vencidos, havia a nossa visão e a visão deles, do inferno, dos sons, luzes e fogo em que a Europa se tornou nos meados do século vinte, que foi cuidadosamente retocada também porque a construção das ideologias não convive bem com as imprecisões provocadas pelo caos.
Surpreendente, a forma didática como os crescidos, vestidos de pioneiros, recebem dezenas de crianças, também elas vestidas de pioneiros e de sorrisos concentrados, e lhes explicam com uma forte convicção sonora e visual, a visão russa da história soviética do século passado
A descontextualização da Guerra Patriótica (ou afinal de contas os soviéticos também eram russos) e o culto dos heróis e do sacrifício é (especialmente) uma forma de exorcizar os inimigos e afirmar o orgulho da pátria.
Termos contornado o século vinte, permite-nos admirar os espaços desprovidos de qualquer retórica ideológica e centrar-nos apenas na forma como os russos viveram o seu presente e, hoje, procuram reproduzir o seu passado.
Mas, quando assomámos do túnel do metro de Pobedy, não imaginaríamos nunca, que bastava substituir a bandeira da foice e do martelo pela tricolor, para que a toda uma memória reconstruída fosse preservada como se, nunca tivesse existido uma nova revolução de fim de século que tinha renegado tudo o que haviam defendido durante um século de revolução.
Bem, afinal nem tudo.
Surpreendentemente, existe uma visão oriental da guerra, a versão deles, sem o distanciamento de quase um século de paz relativa, que sobreviveu à hecatombe ideológica do século vinte e um



terça-feira, 23 de outubro de 2018

Alexandre, o Reformista




Alexandre II foi o primeiro Czar verdadeiramente renovador.
Já ia longo o século XIX e, nem por isso, a servidão tinha sido abolida da imensidão da estepe russa
Por isso o enorme quadro que preenche uma parede inteira no museu Tretaykov, o museu de arte moderna russa dos séculos dezoito e dezanove tem significado, para quem se esforçou por descobrir a História Russa, pelo menos a partir da ascensão dos Romanov.
Alexandre II falando com os camponeses, quem sabe tentando explicar que a nobreza que dele dependia o tinha impedido de libertar os camponeses com a dignidade suficiente que impedisse, algumas dezenas de anos mais tarde, o eclodir de uma revolução sangrenta e cessionária.
A última tentativa de salvar o império de forma tranquila, por isso insistiam os homens do Czar que a revolução tinha de ser feita de cima para baixo.
Mas não foi
A arte russa dos finais de Era é, essencialmente, explicita, como se o meio envolvente fosse de tal maneira pungente, que impedisse a abstração dos artistas, como se estes se sentissem na obrigação estética de desfazer os equívocos e as incapacidades de um estado se transformar num instrumento mobilizador da mudança.


Porque a ambição sempre foi tão grande quanto a dimensão do território, mas este foi esmagador na diversidade e na relutância de um destino comum.
Talvez por isso, a arte russa não precisa de ser revolucionária para não ser meiga, precede a revolução na sua expressividade, na proliferação das cores e na dimensão das suas telas e oscila, como a própria história do país, entre o triunfal e o sofredor.
Sem uma ordem nem uma cronologia clara.
Por isso, nas paredes do museu de Tretaykov espelham-se sinais de premonição, perpetuam-se as cenas épicas como se a Rússia profunda pré-revolucionária, não se pudesse construir apenas de lugares e gentes comuns.
Tão impressionante quanto os olhos dos guardiões do regime, os vigilantes, tão idosos como se vivessem na nuvem que lhes definiu o destino, muitas horas seguidas de guarda de honra aos mortos da História ( ainda se ouviam os ecos da revolução) tão inexpressivos quanto a sua ausência de palavras, gestos ou apenas um sorriso, sequer.
Há ainda uma geração que espera, pacientemente, que o tempo passe sem desfazer o bolor e a patine e baixa os olhos perante a curiosidade dos forasteiros.
Perscruto os vigilantes que dormitam de olhos abertos, e antevejo instruções precisas para não interferirem com o curso da História, nem demonstrar demasiado amor próprio.
Como se as instruções tivessem sido dadas há, pelo menos trinta anos, e ninguém mais se tivesse lembrado de os retirar da máquina do tempo.
Eram quase oito da noite e começava a chover em Moscovo.
Afinal de contas, o Verão tinha acabado hoje.
Nós, talvez por termos acordado repentinamente no princípio do resto do mundo, estávamos cilindrados pelas centenas de anos que os nossos passos haviam percorrido, mas devidamente recompensados pelo esforço prévio de tentar obter diferentes perspetivas para interpretar os sinais de cirílico que emanam dos lugares deste país.
Regressados ao calor da modernidade, esperámos pacientemente pela enorme pizza de presunto e dois baldes de cerveja russa, não demonstrámos sinais de impaciência e sorrimos em eslavo incompreensível para a jovem empregada de mesa, não fosse ela impacientar-se como a colega do almoço, perante a tímida lembrança de que tínhamos pedido dois, e não um, café.
“Coffee is cooking” – foi a única vez que, em plenos pulmões, nos sentimos compreendidos naquele dia, na cidade do Ivan.
E emborcámos sem piedade, com a certeza de que jamais nos iriamos aborrecer com os russos, mesmo quando lhes devolvemos troco em excesso e eles nos responderam com um trejeito, na fronteira entre o trocista e o indiferente ou mesmo quando a avozinha do guichet do metro se impacientou em russo quando demonstrámos não entender as suas explicações gestuais e sugerimos percursos alternativos que gostaríamos  de seguir, para alcançar o nosso destino.
Ela tinha razão, quem não tem experiência, não deve ter opinião

Afinal de contas esta malta também tem amor próprio, nós é que não entendemos



Quanto ao fim da  História de Alexandre, é relevante concluir que um problema de expetativas matou o Czar e a sua reforma!

sábado, 20 de outubro de 2018

A ponte do amor



Junto à ponte do amor, a noiva hesita, deverá esperar pelo noivo e subir para a ponte com o noivo pelo braço ou deverá subir para a ponte sozinha, porque a sorte e o amor são estados de busca e não de espera, conseguem-se com dois, mas não sobrevivem a relações de domínio, exigem construção e iniciativa
Ou espera por ele?
A noiva é branca, tão branca que retira o realce ao vestido, tão branca como uma louça de porcelana que permanece hirta e que devolve os reflexos de luz sempre que muda de ângulo, sempre que desvia o pescoço e lança os olhos para o horizonte, um olhar que hesita entre o predador e a presa , uma timidez de camponesa que pressente que, entre ela e o noivo, há uma urbe imensa que lhes pode alterar as perspetivas.
Ao seu lado, a acompanhante, de olhar vivo e nariz que se mantém ereto, como se farejasse a vida e as sensações de forma ininterrupta, veste-se de ganga coçada e de rasgões premeditados, , uma pele que aspira vida pelos poros e que realça o branco da sua blusa larga e a agilidade dos seus movimentos
Ela controla os movimentos circundantes, a ansiedade da jovem noiva, os pensamentos do noivo, a inclinação do Sol e emana uma auréola de cosmopolitismo eslavo que ordena à noiva, com olhares furtivos, mas decididos, que espere, é verdade que a tradição exige que o noivo espere por ela, mas todos os descuidos podem ser perdoados e são os imprevistos que justificam a proliferação da iniciativa privada, de uma nova juventude que concebe o seu estilo de vida próprio, com base na resiliência, na iniciativa e na capacidade de aproveitar as oportunidades que os sentimentos, as necessidades e as inseguranças dos outros, criam.
As bases do capitalismo, portanto
E, afinal de contas, manter algumas superstições não comprometem o rumo da modernidade e mesmo o futuro precisa de rituais para florescer
 A noiva que vive o ritual de uma vida na ponte do amor da grande cidade, da grande capital e que hesita sobre a melhor forma de trepar para a ponte dos cadeados do amor e a jovem consultora que sabe que os cadeados estão presos nas árvores e não nas pontes e que as árvores são artificiais porque não há arvores a nascer nas pontes, mas não tem dúvidas que o efeito nas memórias não se faz necessariamente da genuinidade dos elementos mas do efeito retardado que eles provocam nas memórias e no reconhecimento social.
E, diante a naturalidade de uma geração sem passado, e de outra que procura assimilar os múltiplos passados que moldaram os seus olhares perplexos de hoje, as mudanças constroem-se à sombra dos heróis da Revolução, dos símbolos da resistência e dos ícones do grande império.
Que, resolvidos os equívocos ideológicos, ninguém parece contestar.




Os passeios de Sábado ao longo do rio Mockba são uma manifestação das famílias que se pretendem reconfortar com o regresso ao direito à individualidade e a um quotidiano desprovido de momentos épicos, um bem tão precioso que parece justificar a abstinência de uma consciência política.
E uma forma de se procurar reconciliar as gerações, as perspetivas e as expetativas, independentemente da diferença dos olhares, das roupas que vestem e da resiliência que denotam.
Independentemente da inevitabilidade de haver vencedores e vencidos e do facto de apenas o indelével percurso da vida e da morte poder resolver as memórias em carne viva dos filhos do império.