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quarta-feira, 3 de julho de 2013

O voo da noite - Parte 2/8



Não fosse o solavanco inesperado numa cratera camuflada por um gigantesco lago artificial feito da chuva diluviana, e o miúdo jogaria futebol no espelho retrovisor de onde espreitava um bigode moreno, desconfiado de tanta reflexão absurda, saltaria do quintal pela janela da frente no lugar do morto, pedalaria campos fora a uma velocidade que os pesados ciclistas de rua, na imagem de fundo, não ousariam seguir.
Convencido, o puto, de que aquele era o mundo dele, uma província da qual não haveria História de Portugal que o colhesse. Tinha impregnada a noção de uma Pátria a preto e branco, modesta mas livre para os putos que se enchiam de pó nos infindáveis estradões de terra solta.
O bigode moreno do banco da frente balbuciou um “Perdão!” e o L. empertigou-se no banco de trás, no seu orgulho e na carcaça de homem feito, compondo-se de uma breve, mas sentida, emoção.
A chuva convenceu-o de que não estava em Lima, a terra de nevoeiro opressivo, mas que não aceita chuva por capricho da natureza, este tinha sido o seu poiso de semanas passadas, Santiago também não, porque aqui cheirava a Pacífico e as estradas tinham buracos.
Panamá e decidiu bem. Ao longe levitavam as luzes dos monolíticos cargueiros que esperavam a vez para entrar no canal, mas o táxi não se comoveu e, subitamente curvou para Leste, deixando o canal, os cargueiros e os milhares de marinheiros impacientes pelas costas…
A literatura do policial Carré não servira afinal de preparação, na sua primeira visita a este local, e nas outras que se seguiram, sempre como um entreposto, um mero poiso, umas horas de espera sem recordações nem memórias que valham sequer a fama e o proveito que resultam das suas ancas elegantes e curvas generosas, mas as memórias exóticas e românticas nada tinham a ver com este lugar, perdido entre a espelhada downtown e uma imensa e precária periferia pardacenta de predominância em latão e zinco.
Desejou muito, e de repente, voltar para o confortável e aquecido mundo das memórias.
Um exilado, compulsivo e rebelde levita permanentemente, sem ordem nem prioridade, por universos persistentemente contraditórios, mas tem sempre um refúgio sentimental para onde se recolhe, sempre que o incómodo ameaça torna-se insuportável.
Mas, assim tão de repente, não conseguiu porque a escuridão era agora total, e tal como o silêncio também a falta de luz impedia que película se projetasse nos reflexos sua memória. 

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