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domingo, 12 de fevereiro de 2017

Realidades encenadas


Um Sol furioso enfrenta a tempestade com perseverança. 
À tempestade, sucede a bonança. Nem sempre é assim, mas as multidões acreditam. 
Afinal de contas o nosso clima reflete a nossa natureza: esperança
Mas no Inverno, o ciclo é, tendencialmente, fechado, e a bonança pode ser prematura.
Mas as multidões já congestionavam a marginal, a estrada mais perto do mar.


A maré subiu, a tempestade galgou as areias e a crença na inexistência de alertas meteorológicos de monta, deixou as famílias inquietas e a estrada mais perto do mar voltou a encher-se


Abandonaram-se os despojos com uma pressa de quem não antevê amanhã, adivinham-se castelos inacabados e um choro de criança.


Fuga descontrolada por causa do Sol de Inverno, promessas interrompidas e um terreno fértil para a encenação de realidades como aquela visão de criança (que não tem medo de molhar os pés) promovendo simetrias com o mar e com os faróis da foz do Tejo.
A partir de terra instável, claro




A Guerra Santa


No silêncio dos claustros, ou na escuridão dos longos corredores que prolongam a solidão das celas, não há sinais dos Templários.
Diluíram-se em sete séculos de construção, na habilidade negocial dos lusitanos em subverter as ordens vindas do exterior, em proveito próprio, e nos desígnios da História de Portugal.



Sim, os Templários foram extintos, palavra adequada para descrever uma ação premeditada de quem construiu fronteiras na sua sombra.
Aparentemente porque perderam a batalha de Jerusalém, contra os muçulmanos.
(ou porque o seu poder ameaçava os reinos medievais)
(ou porque há sempre um momento na História que os heróis de sangue, se tornam incómodos)
(ou porque o Rei de França não pretendia pagar os avultados empréstimos que contraira junto da Ordem)
Filipe IV é o nome do exterminador e o desconforto provinha dos rituais secretos da Ordem.
(secretos, portanto desconhecidos)
1312 foi a data do fim decretado dos Templários, destinados a morrer nas fogueiras do Cristianismo.
(ironia, dos que sobreviveram ao limite oriental das Cruzadas)
Em Portugal, o Rei D Dinis, argumentou perante o Papa, evocou interesses nacionais pela vizinhança do Reino Andaluz, mudou-lhes os mantos e criou, sob o manto de Cristo, um exército religioso, tão precioso se revelou na expansão do novo império.
(perspetivas)


Mas no interior da Charola, construída segundo o modelo do Santo Sepulcro de Jerusalém, revivemos, debaixo do eco da sua cúpula, as angústias da Guerra Santa e, agora, da cidade dividida, um dos limites orientais da Guerra Santa, dez séculos depois da primeira conquista sangrenta dos Templários.
(ou ocidental, conforme a perspetiva)
Mas no interior da Charola também se sente a fé, enquanto ato de introspeção e refúgio.
(consegue ser libertador)
Mas o Homem é incapaz de sentir para si próprio porque é, afinal de contas, uma espécie social e intrusiva.
Daí o sangue permanentemente derramado na disputa do mesmo Deus.
Lições de (a) História, numa (com uma)  perspetiva contemporânea.
No Convento de Cristo, enredado nos claustros labirínticos de uma obra com sete séculos de evolução.



segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Stranger in the city


Amadeo terá vivido muito em pouco. 
(1887 - 1918)
Afinal de contas terminou como a guerra.
Morreu demasiado novo para se deixar influenciar por tendências.
Um figurinista de expressões marcadas, um experimentalista, um aventureiro.
No fundo, tudo aquilo que não se deixa tocar.




E a sala do MNAC estava tão cheia que as formas geométricas, os números, as figuras e as mensagens subliminares se acotovelavam na ansiedade de uns e no absoluto desconhecimento de outros.
O nosso desconhecimento enleva-se com o reconhecimento dos outros.
Afinal de contas é um homem de Paris de França e da pré guerra, que só a guerra o devolveu à nossa província triste.
Mas o Grande Palácio da cidade luz concedeu-lhe as honras de um boémio habitante da entrada de século.
( sem sinais de honras póstumas, de tão contemporânea a cidade se revê nele)
E o MNAC deambulava entre as minúsculas salas do antigo registo civil, vasculhando as suas publicações no ORPHEU, e as atribulações das suas exposições, que se atreveu comissariar em território Luso, esperando que a guerra terminasse.
Puro escândalo, nunca a irreverência foi o nosso forte.
Mas hoje, nós mais adultos e devidamente certificados pelo fascínio que os franceses nutrem pelos seus e por aqueles que prolongam a auréola da capital boémia, prestamos uma solene homenagem ao homem novo.
Ao estrangeiro da nossa cidade.
Eu pressinto que Amadeo teria preferido um belo e atormentado escândalo.
Esperou que a guerra terminasse, mas a vida não esperou e, ironia do destino, matou-o com uma epidemia de após guerra.
Não ficou para desconstruir o novo regime.
Concedeu essa honra ao Almada e entregou-se, pela morte prematura, ao prolongamento de um mito e numa afirmação de soberba de que a arte não é privilégio de velhos.
Ao anoitecer de luz obliqua e tempestade adiada, decidi prolongar-lhe a história do século XX nas ruas do bairro do Chiado.
Todos merecem, afinal, uma segunda oportunidade.




domingo, 5 de fevereiro de 2017

A praia dos cães



Ontem observava o reino das gaivotas.
Isso era ontem, ali estão elas, entre nós e a tempestade.
Aqui o Sol estava (sim, ontem) à bulha com as nuvens e com o vento.
Agora (ontem, mas um bocadinho depois) chegaram os pombos, daqui a pouco (sempre ontem) vamos ter uma batalha aérea entre pombos e gaivotas, o mar a a ver e o vento a soprar.
(Ontem ainda foi dia de tempestade)
Os pombos mantém-se à distância, e as ondas assobiam.
Aqui (ontem) os pombos ocupam o setor oriental da Avencas  (Ohama) Beach e preparam o assalto à fortaleza das gaivotas..
Ups, mas as gaivotas começaram a levantar voo.
Afinal não vai haver guerra.
Estão todas a fumar o cachimbo da paz.
Isso foi ontem.
Hoje é manhã de bonança e a balada do vento tornou-se na praia dos cães.
Sem violência, apenas uma brisa fresca do mar.


sábado, 4 de fevereiro de 2017

198? - trinta anos já é História? (3/3)




A lua inclinava-se no horizonte da lassidão, deitados na relva proibida, estrelas sim, todos na busca do seu Criador, cada estrela a razão da existência de cada um?
E uma sombra debruçada, aproximava-se veloz, a sua velhice tingia o luar de negro, todos a sentiram na pressa arrastada num vestido comprido, escuro de bruxa, velho de assustada, era uma expressão que eles pressentiram, mas juraram ignorar.
Mas não conseguiram!
A sua aflição exprimia-se numa língua que jurávamos inglês, um sotaque que ignoravam, uma distância que não deixava dúvidas, uma língua natal que a interrompia na sofreguidão e na ausência de fôlego, para correr mais, longe era certamente o seu desejo. Seria?
- Ajudem-me! Estou a ser perseguida…política….Polaca! Roubaram-me tudo e vão-me matar!
A identidade já se tinha esvaído na ausência de documentos, no indecifrável de um nome…
Seria louca, perseguida, doente ou alucinada, polaca ou esperanto?
Não havia mais sombras na imensidão do parque!
A Guerra-fria teria tropeçado neste grupo? Sinais ou imaginação?
Só o Leste seria capaz de os emudecer de fascínio. Até o Che passava a ser Europeu sem restrições perante tal distância…
Ela tinha um olhar que eles não conheciam. Assustado mas altivo.
O medo vinha do frio e eles não iriam perder este contacto imediato com a História, apesar de ninguém acreditar mais em espionagem, em chapéus-de-chuva assassinos.
Pelo seguro, porque mesmo não acreditando, eles podiam ter sobrevivido à Perestroika anunciada – esse era o nome, o rosto era apenas uma mancha na testa – o grupo abraçou-a no seu e no destino dela!
As luzes de Pigalle atraíram-nos, madrugada de rapina, a fauna espelhava na hora a crueza da maquilhagem que desbota, são cinco da manhã, e nem mesmo as mulheres da noite (travestis – corrigiu o parisiense, que jogava em casa e tinha a certeza) resistem na sua altivez, donas da selva, da extravagância e do néon, o baixo fundo já se arrasta pelos cafés, sem vontade de vaguear mais pelos peep show que se desventram para a solidão, e para ninguém, não há turistas, ninguém troca cartas, os pés cansados molham-se nas ruas que se inundam de jactos de água, vassouras, homens de outras fardas que procuram afundar definitivamente a noite, e quase conseguiam provocar a alvorada!
Sem sustos, Petra liderava a militância! Era preciso salvar a velha, mesmo que fosse apenas dela própria e dos seus fantasmas!
- Sempre existem os centros da Segurança Social. Ela precisa de alvura, uns lençóis, sonos tranquilos e uma eventual reconquista com a sua própria identidade, psicólogos e tradutores, alguma medicina convencional – Era bom habitar o centro do mundo, ter Joseph por perto enfim, ser guiado para longe das ameaças, ter soluções práticas para os enigmas da noite e da geopolítica, para além da capacidade de evocar um espírito militante e anarquista!
- Alvura seja! Viajará connosco na transição da noite para o dia – Giovanni procurava reduzir as distâncias, uma insuficiência que se sabia crónica, um solitário nunca deixará de o transparecer…
Pedro e Michélle não descolavam, já não havia distâncias nem solidão entre eles.
E atravessaram Pigalle sem se sentirem perdidos, a velha embalava-se no grupo, sabia-se a salvo, nunca o inimigo poderia ser tão multinacional, só podia ser uma força de paz, sentia-se no olhar que ela sabia.
Por isso caminhava sem soluços, entre eles, partilhava as conversas deles no silêncio, adivinhava-se, e embrenhou-se nos túneis do metropolitano, ela e todos, despediam-se do dia, e ele acabado de nascer, o destino era a alvura.
Ninguém se abandonava, nem no metropolitano, porque era Domingo e não podia haver nada de tão interessante a revisitar nos sonhos, eles que esperassem!
Esperavam que o momento não se diluísse na claridade (há momentos que sobrevivem à noite, àquelas noites em que nos sentimos capazes de levitar o mundo e troçar da relatividade, absurdos físicos) e ofereceram-se café com leite à avozinha, uma esplanada de boulevard que lhes acrescentava minutos á existência, que prolongava o feitiço da Lua, uma atracção que não precisava de longas e sinuosas seduções, tão pouco temáticas comuns, apenas presença, imaginação e divagação experimental sobre o mundo deles, temperado pelo bizarro e pelo mistério que sempre adensa a cumplicidade.
SOS era o slogan de uma marcha que inundava o boulevard, a avozinha entregue aos cuidados e á alvura, uma mole de gente, todas as raças de França, despediam-se em protesto dos recambiados pelo governo chauvinista.
Ahmed enchia-se de razão e os seus braços ao alto afirmavam que afinal havia temática.
Paris protestava “mais uma sinuosa curva á direita” – afirmaria Joseph!
O feitiço desistia finalmente da Lua e a comunidade de seres tornava-se irreconhecível.
As despedidas diluíram-se na fúria dos outros, e dele Ahmed!
Ahmed SOS, somos todos irmãos, a onda humana também é dele, trocaram moradas e telefones, isso sim, sabiam que sou artista e pintor?
O tempo tinha sido curto. Até á próxima! Afasta-se com a multidão.
Giovanni e a solidão viraram as costas à multidão. Despedidas sem telefones nem moradas. Talvez uma minúscula lágrima, um fungo social que corroeu um mar de individualidade. Petra pôs-se a adivinhar e juraria mais tarde que era uma individualidade tão desajeitada que só poderia ser…de escritor!
- Vemo-nos por aí! – Era como Joseph se deveria identificar com tudo. Paris aldeia, o encontro não é destino mas inevitabilidade estatística. E daí porquê moradas, era altura de retornar aos sonhos, uma sesta de Domingo!
Petra, Sthepanie, Maria e Michélle foi um abraço diferente, mais longo e nocturno, mais uma noite de Inverno sob a Gare do Nord, são sempre assim as despedidas, moradas, telefones e promessas, e já nem Maria parecia tão desemparelhada, nem a cumplicidade delas tão impenetrável.
Um beijo muito longo. Pedro e Michélle. Amar-nos-emos em Genéve!


198? - 30 anos já é História ? (2/3)



E este era decisivamente um discurso europeu, de quem nascera em França, de quem já acreditava que Maomé morrera na cruz, de tanta escola e cultura em França, terra que o tinha transformado de adolescente em adulto, de quem tinha ultrapassado as fronteiras dos bairros, estudava na Universidade e se preparava para invadir o espaço cultural francês, disso nem Stephanie tinha dúvidas.
Mas Ahmed tinha.
- Nascemos em França, mas não nos sentimos franceses…
- Mas pensas e expressas-te como cidadão europeu – Stephanie esboçava um protesto, porque essa conversa de filho indesejado e relação fortuita não lhe parecia discurso de muçulmano tradicional.
- E não somos tratados como franceses…
- Mas se nem vocês se sentem, como esperam que uma nação conservadora e republicana os vejam? – Pedro não perdia nenhuma oportunidade de provocar o Che, e não era racismo, era embirração com o personagem.
- E a democracia europeia não deve assegurar a todos o que ajudaram a construir o ideal da Europa a igualdade de direitos e, simultaneamente, o direito à diferença? Sobretudo aqueles que se enterraram nas fundações, que se misturaram com o cimento da construção europeia!
   E não nos podem interpretar mal quando, de tempos a tempos, sentimos o apelo do bom selvagem, a vontade de regresso ás origens que não conhecemos, mas que os nossos pais nos contaram, e estas ânsias, para vocês surpreendentes, coincidem com os súbitos desvios da vossa (nossa) democracia à direita profunda, tão bruscos quanto igualmente surpreendentes, multiplicação de bandeiras tricolores em todos os edifícios vagamente públicos, ridícula confusão de identidade com nacionalidade.
Pedro calou-se e reconheceu a derrota. O tipo era consistente.
E Ahmed, embalado pelo encanto dos seus próprios argumentos, e pelo enlevo demonstrado pelos ouvintes, sim, todos o cercavam enquanto desciam a escadaria do jardim, Sacré Coeur atrás e atenta no monte, Pigalle em baixo provocante e certamente indecente, explicava-lhes os sacrifícios dos pais, o racismo no seu mais puro quotidiano, o grito de afirmação das manifestações de 84,a afirmação da cultura do subúrbio, daquela vontade que apenas a juventude conhece, afirmação ou desterro!
- E existem milhares de desintegrados que vagueiam pelas estações de comboios à procura do que nunca encontram, ilegais e que escorraçados se refugiam nos bairros e os destabilizam, com a sua raiva – Joseph, parisiense, frequentador da noite de Monmartre e Pigalle por vocação e conforto, sem quaisquer convicções específicas, apenas pela musicalidade e pela estética dos bares, de Brel, das discussões pela noite fora, ele parisiense também tinha direito a opinião, e exprimia-o.
Enquanto Ahmed anuía, Michélle e Pedro sorriam, embalados um pelo outro, enquanto que, por exclusão, Petra e Giovanni caminhavam silenciosos, olhos na lua ou na calçada, ouvidos em Ahmed ou em ninguém, longe um do outro, vizinhos rodeados de montanhas.
Ninguém percebia como este grupo se havia criado, talvez geração espontânea, mas este italiano, que não cantava nem tocava aparentemente nada, que viajava e por aquela noite havia encalhado, tinha tropeçado numa qualquer saída de emergência e parecia sentir-se satisfeito por apenas não caminhar sozinho, todos acharam que uma ambição tão modesta não poderia ferir ninguém e adoptaram-no!
Petra decidira envolver Giovanni nesta existência de grupo, sorriu-lhe e aceitou a conversa tímida, apenas geografia de lugares e coreografia de seres, era preciso desentorpecer as nuvens de desalento que espreitavam as escadarias de Monmartre.
Pois, a musicalidade nocturna perdia sonoridade na madrugada do impossível.
Diferenças. Impossível!

Mas Petra e o amor dos outros imergiam a Argélia profunda.

198? - trinta anos já é História? (1/3)



Pedro,
Genéve tornou-se fria! Esta semana nevou, e o Inverno começou esta semana.
Hoje Reagan chegou, tudo está bloqueado, vigiado, a cidade submerge em militares, em metralhadoras.
A cidade manifesta-se, uma marcha pela paz, uma manifestação pelos judeus, pelos afegãos, pelos refugiados.
Na semana passada tivemos medo em Genéve. A maioria votou “Vigilante”, um grupo de extrema-direita e, numa única semana, centenas de refugiados Zairenses e Turcos foram reenviados para os seus países. Et onc!!! Este fim-de-semana, na segunda ronda, os lugares foram distribuídos entre liberais, socialistas e um Vigilante.
Genéve, a Suíça, não está tão calma como aparente.
Eu regozijo, porque em breve terei uma semana de férias.
Mas sempre o teu silêncio. Recebeste as minhas cartas?
Penso em ti muito forte e espero que estejas bem. Escreve.

E Michelle cruzara-se com os seus olhos, por entre uma onda de loiras colegiais num bar de estação em Munique, cervejas que rodavam na mesa, elas eram quatro e ele sempre só, não diria abandonado porque Pedro achava-se longe desse estado terminal que significa abandono.
- Chamo-me Pedro!
- Michelle – o sorriso era verdadeiramente transparente, ou talvez cor de Alpes – e as outras são Stephanie, Marie e Petra, e vimos de Genéve.
- Vamos no Orient-Express até Paris!
O Orient-Express era uma griffe e, mesmo para um veterano dos comboios noturnos, havia alguns diferentes dos outros, provocavam arrepios de ansiedade e dependência, delírios de imaginação. E quando mais tarde, bem mais tarde, relia a longínqua e desencantada carta de Michelle, entre duas aulas, teoria e prática de uma prolongada vida universitária, lembrou-se como tudo (ou nada) tinha sido um produto do Expresso do Oriente de regresso a Paris, que apenas no nome resistia ao pedigree de outrora, mas que detinha um estranho poder, era o mistério sobre carris que reinava nos seres que se atreviam a desafiá-lo, entrando!
- Paris? É uma excelente altura para regressar a casa!
O fresco da noite despertou-os e a música atraiu-os para um pequeno bar escondido entre ruelas e trepadeiras, um pátio cercado de vedações e um portão que insistia em ranger, degraus esgotados pela erosão dos séculos, retorcidos como o corrimão de ferro que os empurrava para as luzes e para o fumo, um balcão corrido até ao fundo, mesas cheias de gente e histórias que se contavam em voz de tambor, o acompanhamento das baladas do jogral, viola no colo e notas bem puxadas ao sentimento e à atmosfera que Pedro jurava em voz alta já ter visto num filme qualquer, com muitos anos, sempre num qualquer antes da guerra, Paris no seu auge, como uma premonição de euforia antes que o mundo se consuma numa carnificina qualquer!
E quando a festa finalmente terminou, a pedido do barman, o grupo tinha crescido; um novo parisiense, o Che magrebino, Pedro e as Suíças e um Giovanni aparentemente mais maduro.
Este novo microcosmos de seres calcorreava as calçadas de Monmartre à procura de horizontes, e encontrou-o nas escadarias de Sacré Coeur, mas as largas vistas da colina e da cidade recusavam as certezas que eles procuravam, a música tem este efeito, anestesia o conformismo, o individualismo e gera vontades.
Mas, apesar do esforço nem mesmo o Che argelino, o mais recente espécimen europeu desta colónia em ebulição intelectual, adivinhava até onde podia ser aquela paz pardacenta que sobrevoava os anos 80, porque este envelhecido Continente não se compadece com tantas décadas de estabilidade emocional.
- Os franceses precisam de nós, mas não fazem mais do que nos tolerar – esforçava-se Ahmed por explicar os seus dilemas e sofrimentos a Stephanie, que genuinamente o desejava compreender, tal era a sua atenção – eles sentem que a nossa vinda é um fardo que tiveram de suportar, por nos colonizar, assim como um filho indesejado numa relação fortuita.

(continua)