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sábado, 18 de abril de 2020

SILK ROAD #18 – Last train to Bucara




“Se não tivessem cometido grandes pecados, então Deus não me teria enviado para vos punir”
Ghenghis Khan sabia que as cidades com passado assombravam as suas ambições de domínio absoluto e, por isso, arrasou Bucara, como todas as cidades que lhe recordavam os primeiros senhores da rota da seda, os povos e as tribos que detinham um poder diferente do concedido pelos exércitos musculados e por uma apurada noção de estado, inquietavam as ambições imperiais.
A evocação divina que amaldiçoou os reinos do comércio e do auge das aventuras e da mobilidade, os intermediários no comércio entre os impérios dos extremos do mundo conhecido lançou, para todo o sempre, uma tempestade de areia e de pó, que cobriu Bucara e a outra metade do mundo, uma rota desenhada no mapa que ligava Samarcanda a Ispão, de Merv a Herat, de Balkh a Nichapur.
A outra metade do mundo que ficou na outra extremidade do deserto porque não há mais linha para lá de Bucara.
E a culpa foi dos mongóis e provavelmente em nenhum outro sítio como estas cidades de trânsito se pode afirmar que a história nem sempre é circular e, às vezes, o fim é mesmo o fim.
Por isso a cidade alimenta-se das memórias, e é delas, e com elas, que procura construir um destino que levante a nuvem de pó que cobre a cidade de adobe.
Mas, vislumbrando o mapa mundo, que recentemente se tornou plano, percebemos que o renascer da rota da seda já não passa por ali, e a culpa é dos czares.
Sim, porque a culpa é o principal motor das disrupções da história, mesmo que nem sempre haja consenso sobre os culpados e estes nunca sejam os personagens condenados, no momento em que a história acontece.
E foram os russos, os últimos senhores destes locais, que decidiram que a nova rota nascia mais a norte e se movimentaria sempre mais a leste.
E por isso em Bucara vive-se uma época de não tempo, e um tempo de recriação de um exótico contido, uma experiência de islão sem recriminação, de bazar em moeda universal e numa nova língua franca, qualificações indispensáveis de um homem do meio, uma herança cultivada pelos sogdianos desde as suas origens.
Quando saímos do último trem para Bucara, tínhamos alcançado o meio do caminho, mas a própria cidade afastara-se dos novos caminhos que o ferro impôs às terras áridas do meio e nós sentíamo-nos impelidos a sair dos carris e prosseguir, areias adentro, para o que faltava da metade do mundo.
Tudo o que o primeiro dos mongóis cobrira de areia e destroços para sempre, Merv, Herat até à outra metade do mundo, Ispão.
Por isso, as primeiras impressões do não tempo são de uma imensa perda, impelidos pela ânsia de prosseguir, perseguidos pela maldição de termos chegado ao meio, e sermos obrigados a retroceder, para não poder, sequer, começar tudo de novo. 
Depois, a deceção recompôs-se com a lassidão dos bairros de poeira e argila, varridos pelo calor que propaga a mistura dos sons intemporais da música oriental com os grandes clássicos da música pop, repetidos na mesma sequência, todos os fins de tarde, na hora em que todos os casamentos se aproximam da beira do lago, com a mesma solenidade com que os animais da selva se dirigem ao local e à hora da água, nos confins da savana.
E, tal como qualquer outro sentimento de perda, o tempo novo e os hábitos antigos curam as feridas. Com a contemplação.
Com a contemplação do pôr do sol a incidir nos quarenta e oito metros do minarete de Kalon e nos seus oitocentos e noventa e dois anos de idade.
Com a contemplação da mesquita dos quatro minaretes, construída a uma dimensão de casa das bonecas e que partilha a praça com miúdos ruidosos, idosos que se passeiam mesmo sem a devida permissão de Alá, sentados numa sombra que nos protege do Sol e do bazar repleto de  quinquilharia belicista soviética.
Com a contemplação da criança que nos olha fixamente ao longo dos becos perdidos da cidade esquecida ou das silhuetas dos miúdos que, alheios à luz mágica de um fim de tarde seco e quente, disputam os seus duelos com bola, as corridas de bicicleta e os passeios sem corrente nem filtro na praça de Kalon, concedendo uma dimensão humanista ao conjunto dos lugares de culto e de ensino do Islão.
E, à medida que a poeira da nossa nostalgia se levanta, descobrimos que o segredo da resiliência da cidade resulta dos caprichos que a história dispensou a Bucara, que sempre viveu na sombra das outras cidades do meio, nos primórdios sempre relegada para o secundário pelas cidades a Ocidente e, quando da fúria dos senhores da guerra do século treze destituída de honras pelas cidades do Oriente.
E, por isso mesmo, sobreviveu no casulo dos Emires, os seus grandes senhores de um reino insignificante, que destilaram prepotência sobre os povos locais ao ritmo do calor das estações do ano e afastavam os intrusos com a sua raiva de animal pequeno, dentes afiados e rosnar ameaçador, mesmo que vivendo apenas da fama conquistada através do massacre de aventureiros sozinhos e desarmados que se atreviam a assomar as portas da fortaleza.
Triste, a sina dos espiões do grande jogo.
E assim guardaram o Ark, a cidade dentro da cidade e a reconstruiram vezes sem conta, sempre que o pequeno emirado se atravessava de forma demasiado ostensiva perante os grandes impérios.
Até chegarem os sovietes.
Daí o exótico contido, uma espécie de tradição de emir rural, temperada por oito décadas de bolchevismo que desprezava os heróis do islão, mas despendia pouco tempo com as bordas do império.
A mesquita estava aberta ao público antes da oração da uma da tarde, brilhava de azul turquesa, os fiéis eram poucos, mas não havia reclusão e os hereges eram tolerados, desde que soubessem onde e como descalçar os sapatos e que não confundissem um tapete com um capacho.
Mas o despojamento e a turquesa eram um chamamento à meditação e, por momentos, sentimos os ecos do islão temperado e sábio de Khayyan, longe das multidões e dos cânticos sofridos.
E, enquanto aguardam a próxima invasão dos Seljúcidas do século vinte e um, esperam que, nos próximos, os gestos sublimes se sobreponham à mesquinhez, que os soberanos esclarecidos se imponham aos sequestradores incultos.
A jantar à beira do lago com repuxos de água que refrescam “Shape of my heart” de Sting, à volta de uma cerveja e muitos shots de Vodka.
A percorrer os bairros por reconstruir entre os limites da cidade e o corredor turístico que pretende apontar os caminhos do futuro.
A visitar a última sinagoga e o cemitério dos judeus de Bucara, porque desde a antiguidade que a necessidade de fazer comércio quase sempre se sobrepõe ao absolutismo religioso .
A constatar, sem estranheza, que os chineses são os estrangeiros mais reverenciados neste novo país.
Com a noite a dissipar a poeira no ar, sem o olhar inquisitivo  da criança uzbeque e com a garrafa de vodka sem líquido nem tara, era bem capaz de abdicar da outra metade do mundo e render-me às palavras sábias de Omar Khayyan:

“ A vida de corte não é para mim; o meu único sonho, a minha única ambição é ter um observatório com um jardim de rosas e contemplar perdidamente o céu, com uma taça na mão e uma bela mulher ao meu lado”




sábado, 21 de março de 2020

SILK ROAD #17 - Samarcanda




“Deixemos que ele, que dúvida do nosso poder, olhe para os nossos edifícios.”
E nós olhámos, sem dúvidas do poder de Timur, para os troféus das suas conquistas, construídos pelos melhores artistas e artífices de todo o seu Império, de Damasco a Deli. 
Um homem sem empatias especiais que era iletrado, mas protegia os homens cultos, os cientistas e os artistas, mas destruía as cidades que lhe resistiam e empilhava os mortos ao lado dos destroços das maravilhas da arquitetura dos seus inimigos.
A recriação romântica do mito de Timur tem como figura principal a esposa a quem dedicou a Bibi Khanum Mosque, construída num tempo recorde de cinco anos, com recurso intensivo a elefantes e escravos vindos das primeiras conquistas da Índia. 
O grande senhor da guerra e do mundo que se estendia de damasco até à índia escolhia a mulher que amava, filha de um rei mongol por si derrotado, como a primeira entre todas as outras, apesar de não lhe ter dado filhos e a quem entregou o cuidado de todos os filhos das suas outras mulheres. 
E, em Samarcanda, perante as suas criações e imbuídos por uma versão orientalista da história, tornamo-nos menos exigente relativamente ao novo fundador da pátria porque olhando para as fachadas da monumentalidade Timur, ganhamos um novo discernimento, aquele que relativiza as barbaridades com o tempo e com as condicionantes de uma época longínqua, até porque o homem falava fluentemente  duas línguas e era um fanático jogador de xadrez.
E, apesar das suas origens longínquas, Samarcanda já não é a cidade dos Sogdianos, de Alexandre o Grande nem de Marco Polo, enterrada nas ruínas do Nordeste da cidade atual.
Samarcanda é hoje, de facto, a cidade de Timur, feita renascer pelo fascínio soviético pela arquitetura do esplendor, sem qualquer intenção de exaltar os feitos deste Muçulmano com descendências turcas e mongóis, sujeito que desprezavam porque lhes fazia recordar os mongóis, mal adivinhavam eles que estavam a reconstruir o legado de um dos futuros fragmentos do império, e o mito que iria substituir o camarada Lenine nos pedestais das praças da nova utopia Uzbeque.
Bastaram cinco horas de viagem pelas estradas do Uzbequistão para regressarmos aos tempos de esplendor da Rota da Seda, cinco horas de uma alucinação provocada pela inexistência de amortecedores que duplicavam a velocidade aparente, os acidentes nas bermas da estrada, os postos de abastecimento a cheirar a gás, o tipo a ser algemado no capot de um Lada novinho em folha, atalhos para fugir a atalhos e obras, uma anarquia vivida no esplendor do asfalto, sempre na dúvida se estas eram as reminiscências nómadas do povo Uzbeque ou antes a desorientação natural de quem procura o sentido para uma nova nação.
A estrada para Samarcanda era a única forma de entrarmos na máquina do tempo em modo acelerado e recuperar o exotismo ao pôr do sol projetado no Rajastão, que chegou a confundir-se com o alívio de chegar, afinal de contas não é possível experimentar a emoção das caravanas de cavalos e camelos carregados de mercadoria e ambições, em direção a oeste, a bordo da cabine climatizada de um comboio moderno.
P tinha razão, a chegada foi quase eufórica, enquanto a temperatura abrandava ao mesmo ritmo dos baldes de cerveja e das espetadas de borrego, as fontes de água intrometiam-se entre os brindes e o espetáculo de luzes que fustigava as paredes das madraças, dos mausoléus e das mesquitas.
E, pela primeira vez em semanas, sentimo-nos turistas e usurpadores de memórias.
Sem remorsos, sequer! 
A luz do dia revelou-nos o contraste do azul do céu na infinidade de tons de dourado e uma lassidão própria dos lugares de culto, sem excessos de fé, uma romaria de gente de vestes coloridas e sorrisos dourados das famílias numerosas que visitavam com critério e com uma alegria cerimoniosa a mesquita de Bibi, o bazar de Siab, a avenida dos mausoléus da aristocracia Timurida e o mausoléu de Bibi.
Não como autos de fé, mas apenas como cultos de personalidade, de homenagem ao improvável herói da modernidade uzbeque 
Na avenida monumental não havia sessões de culto, homens prostrados a Meca, mesquitas interditas, circulava apenas uma enorme comunidade de povos do mundo, recebidos de forma amistosa pelos locais que partilhavam as calçadas e mostravam os dentes de ouro em fotografias de grupo, numa república em que as mulheres não se escondem por detrás de véus e, dentro da cor das suas vestes, revelam-se as protagonistas do seu destino, e dos homens que as seguem.
E, inebriados pelos contrastes de cores, vamos imergindo nas lendas que se sobrepõem às provas do poder efémero, a do mausoléu individual dedicado ao amor de Timur por Bibi, envenenada pela nora, três anos após a morte do conquistador do mundo ou a do roubo pelos persas do túmulo de Timur,  transformado em mau olhado ao filho do imperador, a atabalhoada devolução da pedra que se partiu em dois no caminho, e as melhoras do filho depois de desfeita a maldição.
Ou a abertura do túmulo pelos soviéticos que descobriram, nos ossos, os efeitos das lutas entre bandidos que precederam a sua conquista de fama e de proveito e a crença, qual faraó egípcio, de que a usurpação do seu túmulo teria sempre consequências para quem se atrevesse, uma maldição inscrita na pedra e que precedeu a invasão alemã da Rússia.
Uma maldição que os séculos não desfizeram e que parecem confirmar a sua profecia de que o mundo é demasiado pequeno para mais de que um Rei.
Depois da visita a Gur-i-Mir, não havia mais histórias a contar, porque depois da sua morte, a cidade mergulhou no esquecimento até os russos chegarem, quinhentos anos depois.
Por isso partimos para o bairro dos vencedores, um bairro discreto e sem presunção imperial, onde se refugiam as classes dominantes do novo século.
O jantar dançado ao som do vodka revelou uma festa de graduação em que se dançou até tarde numa intrincada confraternização Luso Uzbeque onde as civilizações e as gerações não esgrimiam divergências e dançavam sons latinos, em roupas e gestos ousados, com a benevolência coberta de lenços de seda e muitos anos de condescendência dos avós.
Na esplanada do restaurante, uma família muito tradicional sentava-se para um jantar tardio, elas com olhares tímidos, lenços que lhe cobriam a cabeça, eles empinados para trás de rostos autoritários e semblantes prepotentes, elas sorriam diante os copos de vodka que se içavam na mesa do lado, eles incomodavam-se com este mundo de transgressões e descontrolo.
Sobre o túmulo de Timur, pairava a lua cheia, mas os únicos lobos da noite destilavam álcool e faziam apostas sobre qual a maldição que se lançaria sobre quem afrontasse, de novo,  a memória do imperador.



sábado, 14 de março de 2020

SILK ROAD #16 – E, de repente, (re)nasceu Timur


Sentados nas escadarias do Hotel Uzbequistão, encostamo-nos à última pérola da utopia, construída com um realismo exacerbado pelo desejo de afirmação de uma verdade absoluta, forrada por milhares de quadrados esculpidos na fachada, todos iguais, como se uma nação, um sonho e uma hipérbole ganhassem força pela repetição, pelas ilusões de ótica, pelo número de andares e pela forma de abraço com a qual o arranha céus envolve a praça, a história recente, os pavilhões de verão da aristocracia russa, as avenidas e os prédios austeros construídos pelos que, através de uma revolução, herdaram um império na Ásia Central.
Do alto das escadarias do Hotel Uzbequistão, posamos para os padrões de beleza uzbeque e,  enquanto elas se adaptam aos mecanismos e ao telemóvel eleito pela posteridade, nos segundos de momento suspenso, nós passámos a acreditar no antropólogo famoso que afirmou um dia que a chave estaria na mestiçagem, afinal de contas se os povos não conseguem viver em paz na diferença, então a solução pode ser misturá-los, e criar uma raça mestiça nova, com novos valores comuns.
Diante nós, no fundo das escadas, as três jovens transeuntes de sorrisos transparentes, espalham alegria e beleza exótica pelas escadas acima, alheias ao movimento motorizado dos jovens de uma estirpe de mestiçagem desconfiada que as rondavam.
Elas, também indiferentes a Amir Timur, o último dos residentes da praça, imponente e de dimensões generosas, de cima do pedestal no geométrico centro da praça redonda, ou elevado a herói no novo bloco de vidro que preserva as memórias do novo fundador, provavelmente com os efeitos especiais da multimédia, o edifício que completa a história da arquitetura e a últimas das esquinas da praça de dimensões imperiais
Nós, pelo menos alguns, gastámos os segundos de espera ansiosa pela fotografia de grupo a pensar no diário de 1865, do ministro do interior do czar, Pyota Valuev, que escrevia que ninguém (entre os conquistadores) sabia bem qual teria sido o objetivo da conquista de Tasckent pelo exército russo, mas existia algo de erótico em “tudo o que estamos a fazer nas longínquas fronteiras do nosso império”  
Outros, os mais letrados, lembraram-se de Dostoievski que, em tempos, terá dito que a Rússia devia, não apenas comprometer-se com o Leste, mas abraçá-lo.
E rimo-nos todos muito, quando nos despedimos da nova e mestiça juventude uzbeque.
Na noite anterior, abafada pelo verão interior da maior cidade da Ásia Central, não havia referências de grandiosidade dos grandes imperadores tártaros e, por estranho que nos tenha parecido, sentimos o calor cosmopolita com uma excitação quase juvenil, que entrava pelas janelas abertas do táxi sem marca e sem idade que se desentorpecia, a alta velocidade, pelas largas avenidas da cidade, contornando as geometrias em forma de praças e enfrentando as formas construtivistas em sequência. 
As origens prosaicas desta antiga aldeia que cresceu na fronteira entre os mundos nómada e sedentário e que viveu na obscuridade durante oito séculos, até à chegada dos czares, não sobrevivem à falta de memória, porque a cidade viveu sempre na sombra de Samarcanda.
Com pena de que Babur, o neto de Timur, não tivesse emigrado precocemente para as criações de Dinastia Mughal, tão, tão longe, do seu vale de fergana.
Se Babur não tivesse sido expulso de Samarcanda pela descontrolada herança de Timur, poderíamos ter vindo a Tasckent para visitar o Taj Mahal.
Mas foi, e carregou com ele o esplendor dos grandes imperadores, deixando aos sucessores de Timur, o papel secundário de criador de cavalos destinados ao luxo dos grandes impérios do Oriente.
E, nas entranhas da maior cidade da Ásia Central, não ressoam os ecos de uma História longínqua.
As ambições desmedidas de Tasckent, tal como os seus feitos e desgraças, têm origem nas suas ambições imperiais, um local onde os russos  se sentiam senhores e os uzbeques, meros súbditos ou servos, conforme o seu grau de colaboracionismo.
Tasckent é, pois, uma criação dos czares quando descobriram que os seus distantes e inóspitos territórios de fronteira eram ricos em ouro, madeira, peles e imensos espaços de cultivo e quando a cidade foi escolhida pela expansão ferroviária que fez renascer as ambições da rota da seda, a partir de S. Petersburgo.
Uma herança muito apreciada pelos sovietes, apesar de muito criticada por Marx, em meados do século dezanove.
Mas a visão dominante da quarta maior cidade do império Soviético é composta por avenidas a rasgar os destroços do grande terramoto de 1966 e os horizontes, um metropolitano construído à imagem e com a grandeza da capital, e a sua herança de edifícios de arquitetura construtivista, porque a maior cidade da Ásia Central tinha de ser soviética.
Nos seus feitos, como nas suas desgraças, a cidade merecia um terramoto para ser devidamente perfilhada pelas grandes obras do regime e no metropolitano o tempo parece ter parado e o espaço transportado para Moscovo, e até as funcionárias fardadas eram de pele clara e porte eslavo, um mundo subterrâneo que destoava da mestiçagem da superfície, dos mercados com reminiscências nómadas e fé muçulmana, e eu juraria que as guardas da estação só falavam russo.
Mas, cercada pelas realizações imperiais e pelas obras de regime, ainda vive o bairro muçulmano de casas baixas e pátios interiores, miúdos que brincam nas ruas um povo de tez morena, vestes compridas e uma curiosidade por quem chega e donde nós chegamos.
O bairro muçulmano fecha às onze horas, mas as mulheres recolhem-se enquanto os homens veem na televisão o europeu de futebol, e nos perguntam, sem timidez, se gostamos do Uzbequistão, com a convicção absoluta de que só havia uma resposta possível.
No último reduto dos povos nativos, poucos se parecem importar com a forma como o novo poder parece lidar com a desorientação da queda recente do último dos impérios, que os levou a substituir os pais do socialismo, dos seus pedestais, por um novo pai e herói da nação uzbeque, muito antes de alguém ter imaginado que ela iria, um dia, existir.
Pois, a criação de um novo herói nacional para justificar a existência da nação Uzbeque foi tão precipitada que não tiveram o cuidado de verificar o seu passado
Timerlane para nós, Amir Timur para eles e os seus dezassete milhões de mortos não são, provavelmente, a melhor das referências para uma nova nação.
Pensámos nós, pelo menos antes de chegar a Samarcanda.






segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

SILK ROAD #15 – Não há cavalos voadores no vale de fergana






É uma alegria atravessar fronteiras a pé.
Infantil, mesmo!
Apesar das fronteiras longínquas do século vinte e um terem menos regras e mais intérpretes.
Porque nos recorda os tempos de infância em que havia fronteiras no nosso espaço de conforto, filas para o passaporte, tempos de espera para a revista das malas, lojas de câmbios e um comércio efervescente de troca de vantagens circunstanciais entre os dois lados da mesma fronteira, um balde de plástico pelo qual um deslize fiscal ou cambial do lado mais frágil da fronteira, passou a justificar a travessia a salto do inócuo contrabandista e permite aos zelosos funcionários manter a exigência dentro dos limites de uma força que equilibra os mercados e  impede que ocorra uma escassez crónica de baldes de plástico no lado da fronteira mais instantaneamente competitivo.
E, ao mesmo tempo, justificar a existência de uma grande fronteira aberta e, consequentemente os seus postos de trabalho.
E nesta azáfama, que um estrangeiro que desconheça as misteriosas forças do mercado, não entende, ninguém se preocupa com a momentânea desorientação de quem necessita de trocar notas de uma moeda  presunçosa por um milhão de duzentos mil soms uzbeques, o que significa cento e vinte notas de dez mil somes que, cada uma não vale um euro sequer e, depois, não há espaço nos diversos compartimentos preparados para a viagem, para arquivar tantas notas, nem sequer segmentar o arquivo das notas por ordem de importância, porque quantos somes precisaremos para meio dia de Uzbequistão?
Atarefados com os baldes de plástico e outras minudências, os habitantes de um país único que se chama fronteira, atravessam para cá e para lá, sempre através do mesmo corredor forrado de madeira e de roupas coloridas 
É uma fronteira forrada de materiais pré-fabricados, corredores que disciplinam as filas, casotas apertadas, guichets desconfortáveis, adjetivos e mais adjetivos que não apaziguam a algazarra de povos que se habituaram a interpretar as regras com retórica tribal e a enfrentar a rigidez dos processos, há muitos séculos, sempre com um sorriso nos lábios e algo de valioso para trocar.
Eles sabem que a esquizofrenia de José baralhou os espaços naturais dos uzbeques e dos quirguizes por gerações e os guardas preferem não despender tempo e recursos em construções duradouras enquanto os povos não encontrarem os limites das suas próprias fronteiras.
E abrem alas para nos deixarem passar, sempre com uma palmada nas costas e uma compreensão sincera, porque eles sabem que a nossa resiliência se esgota depressa e que, ao contrário deles, estamos apenas de passagem e só precisamos de um carimbo no passaporte.
E de táxi improvisado, sempre em excesso de velocidade, atravessámos a uma da tarde e percebemos que era sexta feira e que, depois de atravessada a fronteira, os fiéis ajoelhavam-se, cobertos de branco, à porta da mesquita que transbordava de fé à berma da estrada e o espírito dos crentes vivia a sudoeste.
Em Adijan, parecia termos mergulhado no Islão, sem aviso nem preparação.
Até porque nem os ventos do oriente nem a apertada vigilância pagã dos donos da terra e dos senhores da guerra e da paz, nos tinham avisado que podia existir uma fé tão intensa nas fronteiras do Uzbequistão.
Há dias que procurávamos o local de junção das placas tectónicas da religião, para onde é que séculos de invasões pacificadoras, de peregrinações evangelizadoras e de negociações mitológicas tinham empurrado a fronteira do dragão e das visões dos cavalos voadores.
E, assim de repente, não fossem as ambições imperiais russas, tudo até parecia encaixar na lógica,  porque já não existem fronteiras naturais que os afastem dos grandes impérios dos desertos da Arábia.
Mas em Adijan, vive-se apenas no síndroma do enclave em que ninguém quer parar, a  desilusão dos autóctones por não a querermos visitar, uma alma ferida pelo massacre de muçulmanos, perpetrado por um aprendiz de tirano de mão desastrada e bolsos profundos.
Entre a curiosidade, os olhares desconfiados e  o vale de fergana, há um território de pertença do Imã, uma corte de homens que absorvem todas as palavras do sábio de barba rígida e olhar que perfura quem ousa olhar de frente, à volta de uma mesa farta e de muita intensidade dramática.
 Um território que se desvanece quando atravessamos a entrada da gare ferroviária, um edifício construtivista fora de época, um símbolo da nova nação com memórias antigas, depois de um prelúdio intimidante, nada fazia antever que o trem do vale, era um símbolo da vontade deles em aspirar à tecnologia dos homens do norte.
Quando nos deixámos cair no conforto das poltronas, percebemos que Adijan era um enclave e qual era a direção do estado uzbeque.
Mas, através da janela do comboio do futuro, não vislumbrámos nem a mitologia do dragão nem a visão dos cavalos voadores de fergana.
Apenas campos de algodão e pomares de fruta que esgotam o horizonte do  grande oásis e uma densidade populacional que se acotovela na devida dimensão das riquezas da terra e, para lá do ocidente, as primeiras manchas de areia que, de forma efémera, nos provocam flashbacks do passado glorioso dos cavaleiros nómadas e dos indómitos aventureiros.
Pequenas imagens de negativos a preto e branco que se revelam, para logo se eclipsarem, com os raios de sol que correm em sentido contrário das janelas obscuras do comboio rápido para Tachkent.
Que se desvanecem por completo com o cair da noite e com o aproximar da pérola soviética do Uzbequistão.

sábado, 1 de fevereiro de 2020

SILK ROAD #14 – Os equívocos de José




No jardim por detrás do pedestal do fundador da pátria soviética, agita-se a noiva, os convidados da boda, os fotógrafos e o staff de organização do evento, nos preparativos para o grande dia, não fosse a indústria dos casamentos uma coisa muito séria no país quirguiz, que obriga a um ensaio geral detalhado, encenado de forma adequada e sem vestes alternativas, aproveitando a magia da luz do fim de tarde.
Antes, ainda o Sol queimava as folhas do jardim central, as mulheres juntavam-se nos bancos de madeira debaixo das sombras e sorriam muito para a posteridade com os forasteiros, porque os dentes de ouro equilibravam as cores da fotografia de família, as jovens de olhos vivos e curiosidade acrescida interpelavam as mulheres do ocidente, desafiando a língua universal lançando-se na moda e na tecnologia, trocando projetos de vida enquanto os velhos jogavam xadrez, trocavam olhares tranquilos e partilhavam o seu perfil com a comunidade internacional, como os últimos baluartes da geração de campeões soviéticos.
Para cá das montanhas, em Osh, os humanos comuns despejam curiosidade e afetos pelo jardim e pelo parque de diversões e descem dos três mil metros para a civilização urbana, mesclada entre as suas raízes nómadas de tez carregada, influências da ásia interior e profunda, absorvendo as sucessivas vagas de imigração do Norte, patrocinadas pelo império russo e pelos sovietes.
Privada de uma mão protetora, a cidade reanima-se em torno do grande bazar, o único espaço da cidade que não perdeu a traça labiríntica, que não sucumbiu ao grande incêndio e que parece querer perpetuar a herança dos povos mercadores, do período em que eram o pêndulo entre os grandes impérios do ocidente e do oriente.
Segundo a lenda, um dos maiores mercados da Ásia Central, impossível de se definir dentro dos seus limites, tamanha é a sua dispersão e a sua expansão para além do conceito de um edifício de dimensões humanas.
Atafulhado entre todas as bugigangas ou artigos de primeira necessidade que qualquer um pode imaginar precisar, espalhado entre edifícios de cimento, barracas cobertas de zinco ou apenas ao longo das ruas circundantes, é o único local da cidade onde se acotovelam vontades e se revelam ambições.
Saindo do mercado, Osh revela-se uma província distante das metrópoles, longas avenidas ladeadas de casas térreas e árvores de folha antiga e raízes profundas, mantendo a sua herança rural e periférica que não se atreve na construção em altura, prova o único prédio que podia ambicionar o estatuto de torre e que permanece embargado, após anos de esquecimento.
E enquanto nos refugiávamos no único internet café da cidade, a nova referência da globalização vista por um prisma ocidental, sentíamo-nos certos de que tínhamos, pela primeira vez em duas semanas de uma caminhada ininterrupta para ocidente, encontrado um povo de raízes diferentes, todavia muito temperado pelas influências da potência dominante do século passado.
Tão entusiasmados pelas nossas próprias certezas, que não demos importância ao facto de o café internacional estar alojado num bloco de apartamentos na melhor tradição soviética, que até se poderia assemelhar a uma pequena torre de três andares coçados pelo tempo e pela fragilidade da sua construção, tal era o seu grau de descontextualização relativamente ao seu meio envolvente.
E as centenas de famílias que, por ali rondavam, não procuravam o único expresso da cidade a preços proibitivos, mas antes preparavam-se, na porta ao lado, para o primeiro dos diversos passos obrigatórios para cumprir o complexo e dispendioso roteiro do casamento: o registo civil.
Sem grande interesse pela faceta folclórica quirguiz, espelhada nas montras das lojas térreas, cobertas de branco e de véus, procurávamos entender o esforço demonstrado pelas novas autoridades em reavivar o culto dos novos heróis autóctones, com os quais se pretende legitimar a origem dos novos estados, localizando a sua criação exatamente após a ocupação dos grandes impérios da antiguidade e as disputas imperiais do final do primeiro milénio.
Uma forma conveniente – e de antiguidade respeitável – de manter vivo o dogma, até porque não é fundamental clarificar devidamente o seu passado, apenas criar a certeza de que este existiu.
Afinal de contas não é uma tarefa fácil, agregar as varias faces de muitos povos que foram obrigados, pelas contingências da história e pela brusca desagregação do último dos impérios, a ser independentes quando, há muito, estavam habituados a ser tratados como os donos do fim do império, esquecidos e pobres, um escudo contra o rival do Sul, protegidos por belas e elevadas montanhas mas governados pelos novos mestres sem muito terem de agir, senão cumprirem as metas do plano quinquenal.
Talvez por isso mesmo Osh tenha sido a única cidade a manter, nostálgica,  a imagem de Lenine no seu pedestal, rara sorte do fundador dos sovietes na grande nação estilhaçada.
Já a recordação de José, não parece granjear memórias afetivas na população.
Porque Osh é o centro de um enclave Quirguiz na coerência do território Uzbeque, a uma meia dúzia de quilómetros da fronteira desenhada a régua e esquadro por Estaline, seguro de que a pátria soviética duraria mil anos, e que o novo Homem seria um ser superior aos detalhes étnicos. 
Na última vez que os factos desmentiram os equívocos de Estaline, nem o bazar sobreviveu à fúria das etnias, e aparentemente o que os dividia nem sequer era a religião e o que mais os aproximava era o comércio.
Vista de cima do cume, do monte saleem, património imaterial da UNESCO  e santuário do Islão que abençoa a fecundidade,  a cidade parece ainda mais provinciana, baixa nos seus prédios rasos de telhados de zinco, uma arquitetura discreta de subúrbio do mundo, do império e agora do país.
Entre as raízes nómadas dedicadas à pastorícias, sem rotas comerciais para incomodar,  e a diversidade étnica sem referências geográficas precisas, do cimo do trono de Suleiman, o Islão vive um clima temperado pelas barreiras naturais,  procurando sobreviver entre um poder intrusivo e uma vontade de aderir ao mundo, segundo os melhores padrões de igualdade do género.


quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

SILK ROAD #13 – O silêncio dos inocentes




A pureza do silêncio é a recordação mais viva do encontro com as neves eternas dos montes Pamir.
Interrompida, aqui e ali, pelo roncar dos esparsos camiões que vão e veem da fronteira, pelos chocalhos dos animais que voltam sozinhos para casa, na hora do recolher, pelos risos estridentes das crianças que enfrentam os estrangeiros com o mesmo atrevimento com que saltam para a estrada para um registo de posteridade, mesmo que essa seja a única estrada por onde passam os mensageiros do além terra, as vacas no regresso a casa sem pastor nem cão guia e que a velocidade dos intrusos não chegue para assustar os mestres do isolacionismo, não há óleo no chão que desfaça as montanhas de estrume seco que ligam as bermas e relativizam as fronteiras. 
Mas não há ruídos de fundo e, portanto, quando os intrusos se recolhem ou simplesmente partem , ouvem-se os ecos do silêncio até aos cumes dos picos que empurram o planalto para ocidente.
Apesar das centenas de yurts que se espalham no verde da paisagem e expelem fumarolas brancas das chaminés improvisadas, como se tratassem de pequenas comunidades circenses que reúnem os seus pertences, as suas proles e os truques de magia em torno das tendas circulares, mas a sua essência está nos planaltos e nos vales, no gado que rumina a cor e alinha o relvado, e nos cavalos que correm sem respeito pelos limites da propriedade, a independência e os símbolos do orgulho das tribos nómadas das estepes, muito tempo depois de terem deixado de incomodar o que se espera ser o percurso normal da história dos povos e dos impérios dominantes.
Na solenidade desta sucessão de momentos, resta o respeito pelo silêncio, os cavalos de Fergana, a paisagem, a Numância, o isolamento e a reduzida afirmação do estado, que concedem a estes povos de movimentos tolhidos, a noção de espaço infinito.
E a velocidade com que atravessamos a vida deles não nos permite decifrar os seus códigos, nem os indagar sobre as lendas que os cobrem, será que ainda raptam as noivas, será que se organizam em clãs e exercem o poder político da mesma forma que as velhas tribos controlavam as franjas dos impérios e exigiam tributos, para não fustigar as caravanas e as ambições de domínio global, será, ou são apenas hologramas deixados no planalto com o único propósito de inspirar respeito pelo medo, a derradeira tentativa de adiar a sua própria extinção?
 E Sari Tash é o entreposto que liga a vida dos planaltos verdes ao mundo exterior, sem os dissolver, e é a expressão material do “Epic of Manas”, um poema tradicional com meio milhão de linhas que descreve a unificação de sete tribos num único povo e que se transformou, no século passado, no livro de escrituras que justifica, através do dogma, a existência de uma nação com raízes na história.
Afinal de contas, sem dogmas devidamente inseridos numa cronologia credível, as sociedades organizadas não sobreviveriam, nunca, à anarquia e à errância.
O anoitecer chega a Sari-Tash ao ritmo dos ciclos da natureza, das vacas com um sexto sentido, e que se recolhem com os humanos que nos sorriem apesar dos seus olhares encardidos pelo frio, pelo vento, pelas neves eternas e pelo convívio interrupto com os caprichos dos elementos.
Também as nuvens regressam ao final do dia para se fundirem com as montanhas e permitirem aos camponeses descansarem das visões dos grandes espaços, enquanto recolhem os utensílios e se recolhem para descanso de mais um dia de sol a sol.
Em Sari-Tash reencarnámos nos primórdios da era moderna, a vida deles não se alimenta de aspirações, apenas das oportunidades que a terra e os ocupantes lhes proporcionam porque eles sentem que entre a nostalgia das tribos que, em tempos, dominaram as estepes, e o esforço dos homens da planície em construir uma raíz histórica credível que justifique a existência da nação, estão eles .
Apesar do apelo das águias caçadoras, é na aldeia que vive o presente.
O velho que regressa a casa puxando um carrinho de mão , botas de borracha que marcam os caminhos enlameados, com o puto empoleirado em posição de corrida, as mulheres que recolhem a roupa estendida, antecipando as nuvens que cobrem os montes e a noite que vai congelar os riachos, o puto que nos espreita por detrás das estrelas vermelhas recortadas nos muros amarelos que seguem a estrada principal, as crianças que jogam à bola nos terrenos lamacentos que que se ligam entre as casas dispersas como quintais comunitários ao cuidado da natureza, os homens que guardam o feno no que resta dos camiões de transporte do exército soviético.
Debaixo da grande tenda circular do aldeão sedentário, debatemo-nos com as amplitudes térmicas, os ventos rastejantes de norte, o canto dos galos submersos em insónias e procuramos imaginar o céu que não conseguimos espreitar por cima dos cobertores, receando que o nariz congele e se desfaça.
E com a noite apagaram-se as luzes em terra e acenderam-se as estrelas no céu, bem para lá do monte Lenine.



domingo, 5 de janeiro de 2020

SILK ROAD #12 – Latidos na terra de ninguém





Os três rafeiros, habitantes da zona de ninguém, descansavam na sombra da guarita do último reduto chinês, sem culpa e com uma conivência descomprometida dos últimos soldados de farda suja e coçada, mas levantaram-se à nossa chegada e lideraram a passagem da fronteira a salto, ladeira abaixo, cauda a abanar e orelhas em riste. 
A chegada, fomos recebidos pela hospitalidade da Ásia Central, por fardas ainda mais coçadas, uma total ausência de sistema, de organização ou processo, armas tão enferrujadas que denunciavam a sua inutilidade, bem para lá da última curva da terra de ninguém, e entrámos no primeiro perímetro de defesa quirguiz sem mostrar passaportes, afinal de contas, Portugal é sinónimo de vedetas mediáticas do desporto chamado de rei. 
Os nossos amigos caninos esses foram corridos à pedrada, ladeira acima. 
No Quirguistão não suportam colaboracionistas. Especialmente com os chineses.
Um bando de turistas chineses que vieram experimentar a terra de ninguém juntam-se numa fotografia de grupo com a estrela amarela em fundo vermelho pintada na encosta fronteira e, em grande alarido e excitação lançaram-se ladeira abaixo sem passaportes nem controlo para observar o primeiro posto de fronteira do Quirguistão de um mirante construído pelos donos da colina porque afinal, mesmo na terra de ninguém, existem sempre os uns e os outros.
E há quem sugira que estes chineses estão sempre a empurrar os limites para ocidente.
Pela ladeira acima, em direção à China empilham-se os camiões quirguiz que adivinham dias de espera, uma nesga de oportunidade para colocar os produtos na grande mãe do oriente, enquanto os chineses desdenham, fazendo-os esperar, sem aviso nem critério.
Na nova terra, os camionistas revoltam-se à procura de um lugar mais próximo do sol nascente, enquanto os táxis informais se atropelam na zona de segurança máxima para angariar os poucos clientes que atravessam a fronteira a salto, sempre com o beneplácito suspeito dos guardas.
Chegámos à fronteira do fim do mundo pouco depois da pausa de almoço porque sim, esta travessia permanecia encerrada todos os dias durante duas longas horas, não porque esta interrupção fosse necessária para alimentar o regimento dos guardas, mas como uma forma de refrear a leviandade dos viajantes por teimosia.
Se entendêssemos a língua, certamente estaríamos avisados para os grandes desafios do presidente e da nação, desenhadas em amarelo nos placards vermelhos plantados na paisagem, aliviando a monotonia das cores dos montes e vales, milhares de tons de castanho, em direção à fronteira.
E eventualmente teríamos entendido as diversas prioridades estabelecidas nas filas de espera, junto ao que julgávamos ser o último posto fronteiriço, antes da Ásia Central.
Estatuto ou atrevimento ou apenas uma componente da máquina processual de desencorajar liberdades de movimentos, que se possam tornar excessivas, com o hábito.
E porque a redundância é um processo tecnológico e de gestão, que tende a reduzir os riscos de erro, e a independência dos diversos reguladores é uma forma, como qualquer outra, de evitar desastres, fomos conduzidos lentamente e de uma forma, na perspetiva deles, metódica, na nossa, aleatória, de controlo em controlo – afinal de contas tantos dias a vaguear pelo ocidente chinês, pode configurar uma interminável série de delitos ideológicos – até aos últimos metros da grande marcha, o edifício da fronteira, o posto de controlo avançado da fronteira e até ao arame farpado propriamente dito, onde o nosso passaporte é validado pela vez número seis.
Alternando entre as caras fechadas, os gestos bruscos, uma total indiferença pelos nossos segredos, mesmo que inexistentes, alguns leves sorrisos e diversos desentorpecimentos musculares quando se falava do astro da bola, uma educação sem excessos e alguns laivos de gentileza e disponibilidade logística como se fizesse parte do processo, sem que, contudo, nos fosse permitido tomar como seguro qualquer passo seguinte.
E, por fim largaram-nos, com um alívio quase indisfarçável, na terra de ninguém.
E cinco quilómetros bastaram para que entrássemos num turbilhão de novas dimensões, como se a China tivesse acabado de se desconstruir ladeira abaixo, como se a terra de ninguém fosse apenas um prelúdio para uma nova dimensão, e cinco quilómetros bastaram para testemunhar os efeitos da queda de um império, as estradas que perderam alcatrão sob o efeito do tempo e do esquecimento, os camiões militares transformados em galinheiros, por falta de peças mas sobretudo pela sua inutilidade perante os desígnios de uma nação que nasceu de um descuido dos pais.
E quando completámos os cinco quilómetros de descida aos antípodas da realidade aumentada a que os chineses nos tinham habituado nos últimos dias, (edifícios de vidro que resplandecem de novo, estradas que não refletem uma ruga sequer, apenas pavimentos brilhantes, traços cuidadosamente desenhados e uma sinalética que exalava ousadia) regressámos abruptamente ao hiper-realismo soviético dos lugares esquecidos nos confins do império, lugares despojados de referências, em tons pastel, com corredores que existem como divisões próprias, portas, muitas portas, de madeira e vidros foscos, guichets, muitos guichets, revestidos de castanho, madeiras que se corrompem com um caruncho chamado tempo, um lugar que se queria manter fiel ao ideal construtivista, queria ser uma marca da grandeza do regime à vista do império vizinho, mas que sabia, de antemão, que nunca teria o protagonismo que motivasse uma condecoração ou um louvor.
E, no fundo do corredor, enfrentamos os despojos humanos que, da distância e da solidão, ainda não entenderam se são o último bastião do regime ou apenas um farrapo da história recente.
As mesmas fardas coçadas e olhares inquisidores que, na ausência de instruções e de objetivos, se tornam, primeiro em interrogação, depois em desconforto e, depois de percorrer corredores e cruzar portas, soletram a nacionalidade, exercitam o bigote e colocam um sonoro carimbo nos passaportes de quem entra no seu novo país.
Como se tivéssemos recuado algumas dezenas de anos, em poucos quilómetros,  nas referências visuais e nos gestos, e até na ideologia e nos propósitos, mas fora do contexto original, mais de trinta anos depois da história passada.
E quando fomos admitidos no  Quirguistão, logo a natureza nos envolveu e apagou a curiosidade, é definitivamente uma terra diferente mas, nesse dia, nem um minuto nos recordámos da importância dos desfiladeiros de Irkishtan e das montanhas Pamir ao longo da história da rota da seda e no destino dos povos quirguiz. 
Enquanto desfilavam, ao longo das janelas da mini van do amigo de P, os planaltos de verde, as cordilheiras de branco, as centenas de tendas e de famílias que ainda vivem da pastorícia nómada,  não deixávamos de pensar que os rafeiros colaboracionistas bem poderiam ter escolhido melhor os seus donos, as suas conivências e fidelidades.
Aqui respira-se melhor, na perspetiva de um cão vadio.