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terça-feira, 23 de julho de 2013

As asas do desejo - Parte 3/5


 
- Boa noite, alma gémea!
A surpresa já se transformara em esperança, o toque de telefone que coincidia com o desdobrar da chave na fechadura, era um garantido prolongamento das noites de uma insónia latente.
Era assim, todas as noites fossem tardias, todas as tardes, sempre que o por do sol me assustava…
- Já não me imagino chegar a casa e não sentir a tua companhia do outro lado da linha.
- Eu imagino-te a chegar…
Era evidente para Pedro que as coincidências têm limites e a voz pressentia vizinhança, olhares envergonhados e fortuitos, Bom dia balbuciado nos corredores ou nos elevadores!
- Continuo sem adivinhar de onde me escutas e pressentes.
- A impaciência tolhe!
- O sofrimento aguça a curiosidade
- Ai sim?
Já pensaste se és ou não afinal uma mente exilada?
- Não tenho memória suficiente para me recordar. Parti porque queria envergonhar o destino…
- E chegaste a um mesmo destino! – Atreveu-se a voz sem grandes certezas
Mas Pedro parecia não a ouvir.
- Os primeiros meses dessa antiga nova vida, no recém-adquirido ensino superior, representaram um duro amanhecer de longos dias de incomportáveis descobertas, um sucessivo desvanecer dos sonhos da adolescência, uma inexplicável capacidade de absorção de sentidos, uma maquiavélica e paciente aprendizagem dos extremos, sistemática moldagem de comportamentos, dourada insistência na preparação de uma elite, uma geração obrigada a absorver décadas de vazio, de Estado Novo, de figuras paternais, de revoluções de cravos, da queima de soutiens, de inflação, de choques petrolíferos, do small is beautiful, dos modelos de crescimento sustentado, das expectativas redentoras de um novo mundo, tudo em passo acelerado, comprimido, estilizado, impresso como marcas de fogo nas nádegas de loucos carneiros de uma nova existência.
- Era assim tão tenebroso?
- O sucesso prometido era tão inebriante quanto os efeitos de uma dolorosa cirurgia plástica que nunca mais cicatriza, mas promete eliminação de gorduras desnecessárias, lábios defeituosos, cérebros incapazes, e as visões de uma nova vida de aventura, descoberta de seres, partilha de ideias loucas, derrube de barreiras, fronteiras, uma perturbante recompensa de estarmos vivos, sem sabermos o que desejamos, lendo em voz alta poemas de António Sérgio, reclamando a nossa juventude.
- Então a culpa foi do António!
- Foi dos genes. Quando parti pela primeira vez já não consegui mais parar de partir. É uma adrenalina impossível de conter
- Um curso superior a meio…
- Uma série de sonhos que só se alcançam na solidão e no desconforto do efémero.
- Já adivinhavas tudo isso?
- Vá lá, não me sobrevalorizes! Os sonhadores nunca antevêem o lado negro e obscuro do seu sonho.
- Mas voltaste a atracar…
- É diferente viver no centro da Europa
- Ah! A busca desesperada da centralidade
- Não. Em busca da partida fácil, perto de tudo, longe das explicações, das prisões e dos freios sociais
- Nada de prisões especialmente emocionais?
A primeira pausa da noite foi atravessada por uma gargalhada desproporcionada ao sentimento da pergunta, ao atrevimento da voz.
Absolutamente feminina, esta necessidade de se certificar de que não existem concorrentes, os tais empecilhos emocionais – Pedro adivinhava-lhe a intenção mas a resposta não saiu.
Porque ris? – Seria inquietude ou desilusão, a insistência da voz?
- Não faço a ideia do que isso representa! Sou um sentimental, mas pelas causas dos outros.
- Queres dizer que nada se atravessa entre ti e essa miragem tua de navegador de asfalto ou de carris!? A paixão compromete a descoberta? Nunca sentes que tanta descoberta é cansativa, não serve para nada, a recompensa não tem corpo, porque não há ninguém já á tua espera, quem sabe para te abraçar?
- É assim que te sentes? – Pedro teve um palpite e não conseguiu guardá-lo para si, este era o fascínio destas conversas nocturnas e sem rosto. Não havia freios. E, sem percebê-lo, mais uma vez se defendia dos sentimentos, não fossem eles fatais.
- Desde que te vi, que tenho a certeza de que somos espelhos…
- Como se chamava a tua última desilusão?
- Tomas! E a tua?
- Cristina!

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