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domingo, 7 de julho de 2013

O voo da noite - Parte 6/8


Mas cedo percebeu que BA era uma cidade da boémia decadente, tão sedutora quanto falida, e não era por ali que L. podia viver do seu trabalho
Tal surpreendente constatação não o impediu de vaguear semanas a fio pelos mercados de S.Telmo ou pelos bares de Palemo, de se embrenhar em peregrinações pejadas de atos de fé nos Santuários da cultura e paixão.
Acompanhado de E. um orgulhoso cicerone de Borges e de uma legião bem representativa da nova inteligência porteña, vasculhou todos os lugares do autor e captou o seu espírito mais denso e profundo no café Tortoni, Rua de Mayo, 875, referência de intelectuais e artistas, teimosamente posicionado no eixo do poder, como a barricada da irreverência incontida e permanente á ousadia imperial dos governantes.
Rua de Mayo, entre a Plaza de Mayo e a dos Congressos. Borges e Gardel: duas extremidades do quadrado estético de referência do passado recente de um povo jovem. Tortoni, antiga tertúlia, hoje espaço de culto.
L. sentiu-se rapidamente preso a este povo, tão jovem mas com uma História tão intensa, tão cheia de contradições e tão familiar na sua profundidade intelectual e na sua inabilidade para gerir as coisas práticas, sempre à beira do abismo e tão juvenis quanto emocionalmente instáveis, quando se entregam em desespero a um pai ou uma mãe do povo, dê por onde der!
Na Plaza de Mayo, a fronteira entre a boémia S.Telmo e as avenidas imperiais, e o obelisco que se impõem como uma bandeira de pedra entre o palácio do Presidente e a praça do Congresso, símbolos do poder e (quiçá) do nacionalismo aceso, L. sentiu-se no âmago das encruzilhadas históricas deste povo jovem.
Para E. e os seus entusiastas amigos – e agora amigos de L. - a Casa Rosada, ao fundo, representava o farol do (fascínio pelo) poder, da força messiânica dos líderes do povo (descamisados, pobres e infelizes), dos militares absolutistas e opressores com sonhos imperiais que repõem uma ordem instalada (?), uma sucessão alucinante de extremos, que se intercalam periodicamente com os reinados de famílias com mística popular e o fascínio pelas mulheres de personalidade forte que se tornam poderosas e idolatradas.
“O clã Peron, os militares e as mulheres são os protagonistas da História da casa rosada, do farol da Plaza de Mayo e de um país” – repetia L. entre um gole de café gelado com sabor a rum – “Sangue, suor e lágrimas” – realçava E.
E L. já imaginava Eva discursando ao povo na janela da casa rosada.
“Mas a Plaza de Mayo é também o palco dos equívocos, os absurdos, os contrassensos e as encruzilhadas do nacionalismo excessivo”
“A mistificação das mães de Maio no auge da ditadura militar, que exibiam os sinais dos filhos desaparecidos opositores de um regime, que não tolerava protagonismos populares ou cento e cinquenta mil pessoas que aplaudiram a invasão das Malvinas, em pleno período de declínio da ditadura militar de Vilela “ – continuava E.
L. percebia cada vez melhor a nossa raiz latina comum; Manipulação, revolta, nacionalismo, mistificação e a voz do povo, tudo numa só Plaza e num só século.
L. concedeu a si próprio estas indulgências de turista – ele preferia ser reconhecido como viajante, ou explorador da natureza humana - como sendo parte integrante do seu processo de aculturação a uma nova vida num novo hemisfério.
Mas, latitudes diferentes e a mesma língua levantaram voo, semanas depois, para Santiago, São Paulo, Bogotá e Lima, o quadrado da sua nova vida de exilado económico e sentimental

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