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quarta-feira, 22 de junho de 2016

Insane



Sentado nas profundezas do metro...
(abrigo anti aéreo, sala de espetáculos, melting pot cultural, galeria de arte e design)
...estendi  as pernas enregeladas de inverno tardio e  as pontas das botas enlameadas pelo pote de sensações e de chuva, até ao limite permitido pela linha amarela, fixei o meu olhar embaciado nas paredes cilíndricas , para lá da  plataforma e das linhas que nos separam, que logo me avisaram escrupulosamente, evitando danos maiores:
“Mind the Gap”
A pequena de biquíni amarelo logo me respondeu “Are you ready for beach?” e logo me deslumbrei (reconheço que sou um deslumbrado compulsivo pelos sinais da irreverência humana) com a desconformidade permanente que grassa na grande metrópole insular.
Por ela estar despida na gelada primavera de Londres.
Pelo amarelo do biquíni, para lá da linha amarela, periodicamente varrida por dezenas de composições atulhadas de milhares de transeuntes.
Pela provocação, pelo interdito e pela inveja.
G. tinha emigrado havia quinze dias, tão bruscamente que lhe agarrámos as asas da mala.
Logo atravessei o canal da mancha e aterrei na babilónia europeia.
“This is a kind of boys only vision and we never mind the gap” e apenas mais uma manifestação da singular liberdade de escolha que tanto me comove neste antro de civilização ocidental.
Pensámos nós, e tirámos a melhor fotografia do fim-de-semana.
E voltei muitas vezes, depois de Abril 2015, e reencontrei as formas de arte contemporânea mais disruptiva e provocadora, a militância do Ben, o graffiter, o exibicionismo de Mick, a classe do Muhamud, the Uber Man, o sotaque do O’Brien, the irish in the pub, Burt, o crítico indómito, os ciclistas nus contornando o Hyde Park, os indianos frenéticos de Shrodetich, os comerciantes árabes de Marble Arch…
Mas a pequena do biquíni amarelo, foi envergonhadamente retirada do metro por promover corpos irreais.
E entretanto assassinaram um jornal satírico em Paris de tiragem limitada, de atitude muito provocadora e, por vezes, de um bom senso duvidoso, e nós enchemos as ruas para defender (com óbvia coerência com os nossos princípios civilizacionais de tolerância e humanismo) o direito à expressão, por mais incómoda que ela possa ser.
Mas a pequena do biquíni amarelo, foi envergonhadamente retirada do metro por promover corpos irreais.
Porque duzentos e quarenta e três pessoas se queixaram.
Too young, too undressed, to skin.
Como se a única forma de não ferir sensibilidades das crianças que não sabem nadar, fosse obrigar toda uma praia a usar braçadeiras de plástico
E voltei muitas vezes à Babilónia da Europa.
Não resisto.
Enquanto discutíamos animadamente, à volta de duas cervejas, a extraordinária exposição “Exibicionismo” que relata a história fascinante de cinquenta anos de carreira dos Rolling Stones, na margem sul, esperando que o por do sol invertido aparecesse, entre as nuvens ameaçadoras do céu de Londres, junto à Tower Bridge, G. antecipava as próximas eleições para a Câmara de Londres, demonstrando um irresistível (e politicamente desinteressado, porque os nossos filhos são, por natureza, apolíticos) apelo pelo candidato trabalhista, uma lufada de ar fresco para a cidade, um Homem de raízes humildes e de um passado construído com muita integridade e esforço, uma antítese do insensato tory (palavras dele) que governava a Babilónia e ameaçava submergir a capital em torres de vidro e guindastes metálicos, um candidato de origens não inglesas mas que pretendia devolver a cidade aos seus habitantes.
E o candidato ganhou e prometeu devolver a cidade aos seus habitantes.
Um discurso de posse extraordinário do novo mayor, Sadiq Khan.
E eu regressei a casa, com milhares de imagens novas na minha mente.
Hoje, no dia de solstício de verão que, numa rara coincidência científica, apenas constatável de setenta em setenta anos, convive com uma noite de lua cheia, a rapariga do biquíni amarelo voltou às capas de jornais.
“ Como pai de duas raparigas adolescentes, fico extremamente preocupado com este tipo de publicidade que pode rebaixar as pessoas, em particular as mulheres, e fazê-las sentir envergonhadas dos seus próprios corpos. Já é altura disto acabar”
Entendo a preocupação do pai, mas não percebi o mayor de Londres
Too young, too undressed, to skin?
O que pensarão os curadores da Saatchi Gallery que expõem a vida desgregada (e brilhante) dos Rolling Stones com filmes de pequenas em trajes menores nas festas dos exibicionistas de Londres?
Antes do mayor ser eleito, depois de eu e o G termos bebido umas cervejas, termos visitado uma dúzia de exposições fantásticas e loucas e assistido a uma dezena de concertos espontâneos nas ruas da cidade, voltámos à mesma estação de metro da menina de biquíni  que já tínhamos esquecido e estacámos, deslumbrados com a nova campanha promocional do Selfridges, chamada Everybody.
(relembro que sou um deslumbrado compulsivo pelos sinais da irreverência humana)







De um bom gosto tão britânico e tão disruptiva como a primeira.
“Porque não deixam os criativos em paz?” – Apeteceu-me perguntar ao G.
Adoro respostas inteligentes, sem preconceitos nem protótipos definidos por mentes confusas.
Sejam eles quais forem!
Hey Brits de bom gosto e mente irreverente, durmam bem porque amanhã é dia, e lembrem-se que hoje, dia do solstício de Verão, verifica-se uma coincidência cientifica, que se repete apenas de setenta em setenta anos: é noite de lua cheia.

E que a última destas coincidências ocorreu em 1946.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Bairro X


Efémero bairro X
Apenas o urinol do centro da praça não se impressiona com as perspetivas de modernidade que se avizinham
Ou não.
Cochicham os novos ocupantes dos espaços devolutos que o universo de fábricas abandonadas está
(vendido)
(por vender)
(à venda)
Vinte e cinco
Trinta
Milhões
Tal como o bairro, vagas promessas, sem métricas muito precisas.
Indiferentes às promessas do bairro X, os habitantes (tal como o urinol da praça) destilam o calor na cerveja gelada, recorrem-se dos espaços sem vista, deambulam de sombra em sombra, enfrentam a arte urbana com um desdém de quem já assistiu ao rio roubar-lhes o bairro, a indústria sonegar-lhes o orgulho, a encosta traseira construir-se em torres de um modernismo social de pós-guerra e sugar-lhes os habitantes, e portanto, o direito de ser bairro e espaço social.
Mais do que desdém, imunidade.
Por isso, neste Domingo à tarde de calor, os sobreviventes circulam sem precauções nem sobressaltos por esta zona de fronteira.




No bairro X (que confina com Z, a nova modernidade a oriente, e a ocidente com um plano diretor municipal confuso e desorientado) confluem os restos do industrialismo urbano, os novos fenómenos de irreverência artística, a cerveja artesanal, os últimos camiões TIR, um porto moribundo e as torres fantasma do terminal de cereais.
“Estás sujo!” – e o companheiro, de riso tonto e pose infantil, acena com a cabeça e acrescenta eloquência ao guardador de histórias, o chefe do bairro que antes se dedicava a assustar os incautos forasteiros que por ali se atreviam a espreitar.
De imperial na mesa e despojos no prato.
Com a fama do bairro.
Agora, tal como os baleeiros dos mares profundos e violentos dos Açores, dedica-se ao turismo.
“As fotografias servem para nos recordarmos” – e outro ria – “por isso estás sujo, e ninguém te bate, limpa-te lá fora, estamos aqui para ajudar, não é?”
Como as baleias, diria.
Também eles (nós) não nos (a eles) devolverão o direito ao seu espaço social, eles que pairam no seu efémero infinito.
Deixa-os sujar
Dá-lhes de beber, até que a voz lhes doa.





A olhar o rio a M, o Pedro, o Válter, o José Luís, a Rita, a Leonor e, pelo menos, mais vinte e um e os amigos, deliberam sem consenso, se a modernidade se faz construindo ou recuperando memórias.
A M insiste em afirmar que o que tem que ser, tem de ser, se levam os posters para casa é porque apreciam a arte e, afinal de contas, a criação é de todos.
A M não tem mais de vinte e cinco anos, mas tem o mesmo olhar para o rio do que o velho corsário do bairro X, do que as fachadas que derramam as lágrimas do tempo, do que os bairros que elevaram as colinas a uma modernidade minimalista e do que a industria que alimentou as colónias.
Aqui, a noção de tempo é como a penúltima letra do alfabeto, tão efémera quanto infinita.
Transversal entre gerações.
Agradeço ao corsário as sombras fortes que dão cor ao bairro X, mas ele olha distraidamente para leste fingindo não perceber que já se constroem trincheiras a dois quarteirões da praça do urinol público, para lá de Braço de Prata,
O companheiro de riso tonto e pose infantil, esbraceja para oeste e eu julgo que ele me adotou como a ultima baleia dos mares ocidentais.
Mas o imediato do corsário nem deu pela minha partida, apenas saúda o facto de, para oeste, não se vislumbrar nada de novo.

X de Xabregas, provavelmente a última fronteira.


domingo, 12 de junho de 2016

Prometeu, ou a origem da raça humana


( Uma instalação de Mariana Dias Coutinho, Land Art Cascais, Quinta do Pisão 2016)


Faltava pouco para o Sol desaparecer na entrada do poço do Porto Covo onde, no século passado, os rendeiros do local extraíam cal.
Pouco para o Sol se afundar na ribeira da Quinta do Pisão.


Prometeu significa premeditação.
Co-criador da raça humana utilizou areia e argila para criar a raça humana.
A artista usou figuras de cerâmica e pedra e parece sugerir que a humanidade se cansou de ser criada, caminhando de forma ordeira e indistinta na direção da sua aniquilação.
Considerando, por um lado, a profundidade do poço e, por outro, a dimensão e a simetria das figuras (ausência absoluta de uma vontade própria e dissonante) eu diria que a artista inverteu o mito de Prometeu, o Titã que, desobedecendo a Zeus decidiu criar o Homem e roubou o fogo de Olimpo para o fortalecer.

 

Na direção do poço do Porto Covo, onde antes havia cal e hoje só escuridão e silêncio.
(Enquanto o Sol já não é mais do que uma fugaz mancha de branco efémero)



Consta que Zeus castigou Prometeu a trinta mil anos de sofrimento, agrilhoado e exposto aos ataques das aves de rapina (para outros por toda a eternidade, porque Prometeu era imortal)


Falta pouco para o Sol se por no vale de Porto Cova, Quinta do Pisão e, a avaliar pela determinação das figuras de pedra e cerâmica, já não falta muito para se cumprir a premonição da artista...


Zeus deveria ter as suas razões e Prometeu, o "previdente" corre o risco de cumprir pena, muito para além da validade da sua criação.
Pobre Prometeu.



sexta-feira, 10 de junho de 2016

Milhões de letras

Em cada um dos recantos de exposição, bastam uns segundos de alheamento para nos entranharmos nos universos ficcionais que se alinham nas prateleiras improvisadas das caravanas de cultura que percorrem o parque.
Cada momento que conquistamos à multidão, apenas nós e os livros, é uma memória nova, construída por bolsas de silêncio e de recolhimento, que nos cercam da matéria e nos isolam em imaginárias bolas de sabão em argumentos inesperados, personagens esquecidos, feitos heróicos, dogmas recontados, dramas lembrados.
Que despertam as dúvidas sobre a cronologia dos factos e nos permitem desenhar os nossos próprios enredos


A nossa cultura é desenhada por sombras e detalhes, palavras e alinhamentos, símbolos, números e planos recortados



imagens, autores, palavras, milhares de palavras, milhões de letras, citações e títulos sugestivos




Basta que nos deixem esquecer a multidão de gente ruidosa que sobe e desce a alameda num ruidoso auto de fé, enfrentando os cheiros a pipocas e os sons metálicos que anunciam uma comunhão popular entre os centenas de autores consagrados que partilham a sua criatividade na contracapa dos livros autografados e impressionam com a sua dimensão de seres humanos à sombra de um chapéu de sol, numa esplanada que serve livros....
Basta deixarem-nos a sós uns poucos segundos, sem ninguém entre nós e aquela história que desponta da prateleira improvisada...



e logo criaremos bibliotecas de novos universos ficcionais ...
E nem a pobre da animadora que berrava para as crianças distraídas uma assustadora história de crianças e gesticulava, e as crianças continuavam distraídas e só os pais sorriam porque era alta e as tranças espetadas lhe davam uma graça especial, e as crianças continuavam distraídas e ela que falava e gesticulava sempre mais alto até uma criança ameaçar chorar...
voltei-me para as histórias que se lançavam das prateleiras e procurei recuperar o recolhimento das palavras escritas, não sem um breve período de desorientação e imagens desfocadas
Enrosquei-me nas milhões de letras que se moviam em fila na banca, como milhares de formigas que constroem os seus próprios caminhos e que resistiam teimosamente aos ventos de norte que desciam o parque, apaguei as imagens supérfluas e dediquei o resto da tarde a construir novos universos ficcionais com os milhões de letras que nos envolvem.
É que a cultura é mesmo uma coisa séria!