Pesquisar neste blogue

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Streets of New York ( 12 shots with no subtitles)

1. You´re my mirror


2. The King of the Square


3. Moving towards 34


4. A Horse with no name


5. Chelsea, my dear


6. Miss Liberty


7. Windows to Broadway


8. Singing for a Dollar


9. Street Station


10. Flying over time


11. Gone with the wind


12. Surrender


domingo, 24 de julho de 2016

Urban Squats


Alphabet City é um bairro dentro de um outro bairro, East Village.
O nome desperta lembranças das utopias dos heróis da banda desenhada, cidades sem passado nem futuro que se constroem em linhas direitas, medidas austeras e uma comunidade de residentes que se povoa de forma simplista e desenhada entre vilões e heróis.
Mas a realidade é tão apenas prosaica como a descrição híper realista de um conjunto de quarteirões que se localizam entre a avenida A e a D e as ruas um a catorze.
Provavelmente porque, naquele canto da ilha, a leste da primeira avenida, ninguém quis numerar as ruas com números negativos
Mas Alphabet City é exatamente o oposto das lembranças animadas que o nome desperta.
É um bairro de histórias e de habitantes locais.
A história do Chico, que cresceu na avenida C, frequentou as escola pública e transformou-se num muralista contemporâneo, pintor de spray e de mensagens de esperança para os residentes do Harlem hispânico, e homenagens a figuras inspiradoras, histórias de tragédias pessoais e celebrações da comunidade.
Na ausência de mecenas abastados, trabalhava por encomenda para os proprietários dos bares e das mercearias, como uma espécie de substituto para os inexistentes cartazes e neons.



Eu encontrei pelo menos um mural assinado pelo Chico, tendo garantido a todos os incrédulos que estava perante uma obra de arte, um artista em exposição em galerias da Europa e do Jjapão.
Mas este é definitivamente um bairro de histórias e habitantes locais e, por isso, ninguém o visita
Exceto as celebridades que espreitam nas paredes, em dimensões variáveis, na  devida proporção da sua admiração pelos seus atos de fé e coragem.
Exceto os seres que a tornaram famosa nas décadas de oitenta e noventa, os últimos anarquistas da cidade, antes da cruzada de pacificação e que hoje vagueiam entre os bancos de jardim da Tompkins Square, entorpecidos por anos de luta anarquista, muito fumo e alguns ácidos.


E uma negociação conveniente com o pragmático Xerife Giulliani, que atribuiu aos ocupas dos anos noventa, espaços para viver, jardins para cultivar a arte de rua e garantias de que nem todas as esquinas jardim seriam transformadas em prédios, mantendo-se preservadas como as hortas da comunidade artística e os locais de culto da partilha de experiências e do saber fazer.
Mas, e apesar do enorme esforço que a cidade tem feito para transportar todos os seus habitantes para os círculos, para as redes, para os comportamentos e para o modo de comunicar do mundo global, muitas vezes aproximando a cultura a movimentos de vanguarda anarquista quase antissocial, ou promovendo a arte marginal nos círculos das galerias, como uma moda elitista e social, sim, apesar deste lato senso que tende a extinguir os eremitas sociais, basta atravessar o Tompkins Park às onze horas da manhã de um dia de verão intenso, para entender que, por ali, vão sobrando os restos de uma envelhecida katmandu.
E os trinta e nove jardins comunitários que persistem no bairro não deixam de evocar, aqui e ali, tons que variam entre o moderado e o persistente psicadélico, e estão povoados de seres que alternam entre a meditação e a alucinação, ou outros apenas que perseguem com olhares persistentes, as mulheres que os atravessam.
Habituados a uma boémia intelectual e revolucionária, hoje socialmente aceite por uma West Village que transpira jazz, joga xadrez em Washington Square ou declama poesia nos cafés do bairro, sentimo-nos a trespassar uma zona quase interdita.
Sem um critério de pesquisa ordenado, deambulávamos por ruas que ainda penduravam lençóis manuscritos em prédios decadentes, por bandeiras de Cuba que clamavam por revolução, por jardins fechados com cadeados ferrugentos “esse jardim está sempre fechado, nunca ninguém o abre” – exclamava um velho sem dentes de cabelos brancos, compridos e desgrenhados mas com uma conversa fluente, que insistia “ deve haver aí tesouro escondido” e percebemos assim que, mesmo em ambientes comunitários, existem os donos das chaves, e ele, que vagueava entre a avenida A e a 1ª avenida, rondando uma lavandaria comunitária e uma feira de velharias, um centro paroquial e uma loja de take away.
E o velho combatente, um sobrevivente dos meses de ocupação de prédios desfeitos sem luz ou água, e das batalhas de jatos de água com a polícia de NY insistia que ali, também viviam histórias, concedendo-nos direitos de fotografia e reportagem, tal era a saudade dos tempos em que este era um bairro tão antissocial, que era notícia.
Nada que fosse demasiado importante para a menina do café com gelo que jurava que os seus amuletos de sorte eram as notas de dois dólares e as moedas de um dólar.
“São raras”
East Village é um bairro de histórias que não acabam e quando, na Houston Street nos cruzámos com a Kats Delicatsen, logo me recordei das minhas anotações no livrinho de recordações e daquela cena quase mítica em que Meg Ryan desafiava Billy Cristal “you are a kind of man that frightens women”, ou algo parecido, e lhe demonstrava que todas as mulheres sabiam fingir um orgasmo.
Perante a incredulidade de Billy e o espanto do restaurante cheio de figurantes, a menina do “When Harry met Sally” simulou um muito ruidoso e energético orgasmo que transformou este estabelecimento de fast food na maior celebridade do bairro de East Village.
Em mil novecentos e oitenta e nove caiu o muro de Berlim e estávamos no auge do movimento dos ocupas, alguns quarteirões acima, no bairro do alfabeto.
Porque é um bairro de histórias e de pessoas do bairro, só o visita quem tem curiosidade ou recordações.

Ou ambas




sábado, 23 de julho de 2016

7 (in the) border (of the) line


“Uptown or Downtown?” – Perguntou-me a miúda americana de ténis amarelos, enrolada em distração e headphones
Diante de nós, quatro linhas de metro, duas encostadas às plataformas e outras duas no meio do escuro, escondidas por colunas e com um óbvio significado para qualquer estrangeiro informado: expressway
Uma tem o sinal redondo, o outro retangular
A miúda, que abanava o rabo-de-cavalo ao ritmo de uns auscultadores com vida própria, não fazia a ideia do que eu estava a pensar ou do significado de expressway, sequer!
Atrás de nós a rua, apenas separada da plataforma por uma porta giratória metálica, que servia de entrada e saída e um átrio com o tamanho de uma casa de banho, onde predominavam os azulejos de tom amarelo e um rosto encardido de pouco lavado porque, afinal de contas, o metro de NY tem uma reputação cinematográfica a defender.
Se a ruiva que vestia calções neste final de manhã de asfalto incandescente, quisesse apanhar o 7, eu responderia East, East to Flushing Meadows, e acrescentaria com a minha voz do género cavernoso:
Queens!
Mas ela não queria apanhar o 7, pelo que eu lhe respondi sabiamente “uptown” e acrescentei, sem que ela me tivesse perguntado, com um riso assustador:
Bronx!
A miúda continuou a abanar a cabeça e terá pensado “louco estrangeiro” apesar de nós acharmos, por defeito, que miúdas americanas de ténis amarelos, cabelos ruivos, calções e rabo-de-cavalo com headphones na cabeça, tem alguma tendência para não pensar
Mas chegados a Times Square 42nd ela continuou no fresco da carruagem, destino “uptown, wherever it would take her” e nós embarcámos no 7.
Antes que construam os muros ao longo da fronteira.
E a Sarah, a minha amiga imaginária (esta não era a miúda ruiva, era adulta, morena e de porte atlético invejável, “do you see what I mean?”) acompanhava-me, sempre em passo de corrida, ao longo dos corredores intermináveis da Times Square 42nd, e explicava-me, num inglês pausado (não fosse eu não entender, afinal de contas um louco estrangeiro e a Sarah era de NY) que uma viagem no 7 requere o uso de todos os (masculinos) cinco sentidos, porque se trata de um monumento à diversidade de NY que precisa de ser tocado, saboreado, ouvido, visto e cheirado e procurava impressionar-me com números, grandes números, uma americana maneira de querer esmagar um qualquer pequeno europeu, “cento e dez línguas diferentes são faladas ao longo do 7”
Não sem antes me puxar levemente o braço e obrigar-me a olhar para o mural de Roy Liechestein, pintado na nível mezzanine da estação 42 “ 53- foot-long Times Square Mural”, não fosse ela de NY, sempre pronta a impressionar com uns belos (e para mim indecifráveis) números.
Mal descolámos a leste, para os céus de Queens, Sarah largou-me sem se despedir e discutia agora, de forma entusiástica, com a nova-iorquina Hillary, em missão de desimpedimento de fronteiras, que esta linha era, sem dúvida, a de maior diversidade étnica do mundo, tendo ambas decidido, em conjunto e sem perguntar nada aos interessados, designar o 7 como o “international express”, passando a fazer parte da rede “National Heritage Trail” que, entre muitos outros caminhos, inclui as rotas dos pioneiros colonizadores em direção ao oeste selvagem, capturando desta forma o verdadeiro espírito americano.
Hillary, acabada de entrar na nossa carruagem, na cidade fronteiriça de 21st Street (lógica e numeração de Queens)
Não cheguei a Flushing Meadows, faltou-me o tempo e, afinal de contas, já tinha perdido o jeito de comer com pauzinhos.
Não cheguei a Corona Park, faltou-me o tempo e o Mets também não jogava hoje.



Mas mergulhei no rio do leste e renasci das profundezas da cidade em linhas elevadas, tendo como cenário de fundo, bem à minha esquerda Manhattan skyline, envolvido pelos restos do industrial subúrbio de Queens, e pousei para a fotografia em Queensboro- Plaza
Eu, um monte de miúdos fardados de um vermelho berrante, escada do metro acima, todos em fila indiana e com um número na camisola, e uma imensidão de vozes, dialetos, e estruturas faciais, tão grande quanto o olhar de espanto de todos eles a perguntar-nos, com os olhos, “afinal de contas o que é que se festeja por aqui?”


O resto é o costume: até à 45, a reincarnação da arte moderna que transborda da grande maçã em museus, galerias, instalações e no local de “warm up” para as noites de Sábado na cidade, a casa de Louis Amstrong para norte, eslavos um pouco mais para leste, uma imensidão de comunidades hispânicas em Corona e, ao longo da linha italianos, filipinos, coreanos, indianos e  chineses.
E, segundo dizem, lá para os lados de La Guardia, também há portugueses.
Mas ainda não foi desta que lá chegámos
O regresso à rua foi menos entusiasmante.
As portas giratórias metálicas da estação elevada, estavam mais amachucadas que o costume, o ar encardido da estação parecia ter recuado aos anos oitenta do louco taxista de Niro, os mendigos começavam a acordar por volta da uma da tarde e havia mais transeuntes nas esquinas do que no resto da rua enquanto os camiões TIR atravessavam as avenidas desertas com um profundo desprezo pela cidade.
No único bar que servia hambúrgueres com espessura inferior à regulamentar, o empregado servia de calções, mas isso não beneficiava a tatuagem que preenchia a perna esquerda entre o joelho e o tornozelo, as pequenas eram todas para o forte (que saudades que eu já tinha da Sarah de Manhattan) cabelo com espessuras variáveis entre a testa e a nuca e uma bela tatuagem, sempre e em todas, ocupando as suas respetivas omoplatas direitas, a música que fazia jorrar a cerveja dos barris e as cartas de menu eram capas de álbuns do Cat Stevens.
Cá fora, o taxista parava na esquina deserta e não arrancava no stop, espiando o nosso fascínio pelos cartazes de parede, e não arrancava mesmo, de cabeça à banda e olhos vidrados nos loucos estrangeiros e, junto à entrada do metro da 21st, em Queensboro Bridge, tivemos uma breve visão das esquinas da balada de Hill Street.
Não sem antes respirar, uma última vez, o ar quente da fronteira do sul, e reparar que, dali até ao rio, está a nascer uma nova fúria de construção de torres de vidro, sinal precoce de que a fauna estará, brevemente, em debandada para leste.
Procurámos a linha F e a seta que apontava para Manhattan / Brooklyn West e mergulhámos outra vez no East River, behind the border line.
Mas mal a porta do F se abriu, logo a fauna reinante se levantou, e concedeu dois lugares de primeira às senhoras estrangeiras de pele branca e tez vagamente celta que, sem demonstrarem qualquer surpresa, se sentaram sem agradecimento sequer.

Afinal de contas éramos bem-vindos na fronteira oriental da Gotham City





sexta-feira, 22 de julho de 2016

FDR


Franklin Delano Roosevelt
Trigésimo segundo presidente.
O homem que chegou à presidência com a grande depressão, inventou a solução para a primeira crise capitalista da história e morreu com a guerra já ganha.
Entendia as coisas com rapidez, conseguia ligar-se às pessoas, tinha autoconfiança e era dedicado à causa pública.
Por isso foi eleito para quatro mandatos, um de cada vez
E havia quem dissesse que era um homem com sorte.
Mereceu a ilha que lhe dedicaram, plantada no East River, entre Manhattan e Queens, mesmo no meio do rio, uma ilha entre duas ilhas.
Foi contudo uma prenda estranha que lhe ofereceram
Foi prisão e asilo, custou trinta e dois mil dólares aos nativos e esteve abandonada décadas depois de Charles Dickens ter denunciado as péssimas condições em que ali viviam prisioneiros e velhos.
É o maior dos elogios que lhe podiam fazer.
Roosevelt era um homem que gostava das causas perdidas
Tem uma ponte que a atravessa por cima, mas que não permite que os pedestres que atravessam de Manhattan ou de Queens desçam na Roosevelt Island.
Para lá chegar só rasgando as entranhas do rio na linha F do metro da cidade ou pendurado num teleférico que sai de Manhattan na rua sessenta.
Sempre encostado à ponte de Queensboro, como que lembrando que aquela ponte nunca devia esquecer a ilha do presidente.
Os lugares exclusivos, Sr. presidente não são nunca de fácil acesso.
É o maior dos elogios que lhe podiam fazer.



Mas porque os grandes homens só são coroados quando a História lhes dá razão, o projeto do FDR Four Freedoms Park demorou quarenta anos a ser erguido, seguindo escrupulosamente o plano original do arquiteto Louis Kahn.
Cobre a totalidade da ponta sul da ilha, hoje barrada por um imenso estaleiro de construção que impede o acesso a não ser a pé, ao longo de quase uma milha entre destroços e guindastes, debaixo de um calor abrasador no Verão ou dos agrestes ventos do Atlântico, no Inverno.
Portanto um santuário virgem, apenas para crentes, um lugar mágico que estimula o sonho e liberta o espírito.
O parque celebra o discurso das quatro liberdades, em que o presidente, face à ascensão do nazismo e do totalitarismo, previu um mundo fundado sobre quatro liberdades essenciais
Cinco magnólias com trinta anos, cento e vinte árvores pequenas de folha de tília, uma barreira de rocha com onze mil metros cúbicos de um composto de granito, parcialmente recolhido no local, que suporta a ponta da ilha e a protege da erosão, um busto esculpido a bronze e as quatro liberdades esculpidas num bloco de granito.
Uma bandeira das Nações Unidas e um monte de moedas de Roosevelt.


E um enorme, soberbo e inspirador silêncio.
Seis de Janeiro de mil novecentos e quarenta e um
“In the future which we seek to make secure, we look forward to a world founded upon four essential human freedoms. The first is freedom of speech and expression – everywhere in the world. The second is freedom of every person to worship God in his own way – everywhere in the world. The third is freedom from want…everywhere in the world. The fourth is freedom from fear…anywhere in the world”
Encheu-me o dia!

Estava pronto para regressar à Babilónia


quarta-feira, 20 de julho de 2016

Bowery 250


A Bowery não é uma grande rua.
Não é alta nem é baixa, apenas corpulenta e descuidada quanto seria afinal de esperar de uma rua que é uma gigantesca linha de fronteiras confusas e identidades sobrepostas.
A sul a frenética e incompreensível terra da China.
A oeste o berço da emigração italiana e irlandesa, agora uma pequena Itália, invadida, quarteirão a quarteirão pela corrente chinesa
A leste vivem os últimos marginais da cidade, que disputam as poucas árvores com uma silenciosa e tímida comunidade japonesa e um jardim onde todas as manhãs anciões chineses (eles outra vez) passeiam pássaros Hua Mei em gaiolas de um orgulho estridente, não fossem estes, pássaros cantadores.
A norte e a leste, a ponte de Williamsburgo, que foi a rota de emigração dos judeus para Brooklyn e ainda a norte a rua de Houston, onde ainda persistem alguns dos bares clandestinos que proliferaram na baixa Manhattan, durante a lei seca.
E há quem garanta que, nos bairros circundantes, viveram os alemães que cruzavam o bairro da carne e serviam os melhores bifes da média maçã. Antes de terem emigrado para Brooklyn à frente dos judeus e saltado para Queens, de braço dado com os irlandeses, outra vez intimidados pela ortodoxia dos judeus da cidade.
De piso esburacado, placas centrais pouco cuidadas e de uma largura desproporcional à altura dos prédios antigos, gastos e atolados de reclamos sem luz e carateres verticais, a Bowery é uma velha feia e com mau feitio.
Não é bela e snob como o Soho, nem suja e vanguardista com a East Village, nem intelectual como a Greenwich Village.
Pronto.
Dá mesmo a impressão que alguém se esqueceu dela.
Mesmo com a chegada do vanguardista New Museum aos 235.
É mesmo preciso ser resistente para suportar a chegada ao 235.
Como alguém marcava na rua, “ainda bem que sou ateu”


Mas o Bowery deve ter algum encanto.
O Instituto de Fotografia Contemporânea instalou-se a vinte e seis de Junho no 250.
Número par, azar dos Távora, é no outro lado da rua, e parecia um canguru a fugir das crateras do meio da rua, infeliz por não haver passadeiras e os semáforos ameaçarem desligar-se a cada passo na direção desta largura oceânica.
Pois, o ICP, é como se chama, despediu-se da mediática e luminosa sexta avenida e desterrou-se junto à muralha da China
E logo com uma exposição que se mantém aberta até a noite cair, chamada de Publico, Privado e Secreto.
Inquietante.
“ A exposição mostra como a contemporânea identidade de cada um é atualmente moldada de forma indelével pela visibilidade pública e pela imagem que nós próprios construímos para disseminação.”
Voyeurismo e vigilância.
Um tipo que se depila em frente a uma webcam, uma blogger que marca encontros fortuitos na Houston Street e os filma com uma micro camara, peepshows virtuais e filmes construídos a partir de camaras de vigilância.
E a cave, ampla e luminosa cave da Bowery 250, a partir das seis da tarde parecia uma antecâmara dos mais secretos e perversos jogos das pessoas comuns.
E entre os corredores sentia-se uma tensão que cheirava a suor.
Assustadora a forma como os (inúmeros) visitantes deste local, oscilavam entre uma profunda intelectualidade de vanguarda e doentia personalidade psicopática.
Bipolaridade ou impressão minha.
Felizmente havia camaras de vigilância em todos os cantos.
Regressados à superfície, a Bowery já parecia mais normal e, porque estávamos exaustos de atravessar tantas fronteiras e descer a tantos buracos, levantámos o braço e estacou, de súbito um táxi amarelo, para variar uma Nissan, desta vez com trejeitos de veículo comercial.
Abrimos a porta e o negro gigante assomou no lugar do condutor, sorriu com uns grandes dentes brancos e gritou com um indisfarçável sotaque francês:
Cab is free.
Mais uma fronteira. Bem-vindo a Port-au-Prince!
Ao nosso lado direito, abriram-se as faixas de aceleração para a ponte de Williamsburg e à nossa frente, enfiado numa cratera gigante jazia um táxi amarelo para gáudio dos transeuntes e ira do nosso haitiano, “como é possível que um taxista caia num buraco, se fossem os outros agora um taxista tem de conhecer os buracos todos”

Ele tinha razão e a marca do táxi afundado era um Ford.


terça-feira, 19 de julho de 2016

Taxi Driver I


“ Apenas um por cento das pessoas pensa no significado da vida!”
Onze da noite em Meatpacking District.
Muitos anos depois de um tempo em que o bairro “actually packed meat”.
Era Sábado à noite na cidade trendy, nas ruas escuras, propriedade dos antigos matadouros que alimentavam a cidade voraz, de uma linha de comboio que desventrava quase duas milhas de cidade, entre armazéns com odores fortes e velhos prédios cobertos de fuligem.
O mesmo espaço que se transforma em todos os amanheceres, nas margens do rio Hudson, em espelhos de vidro que se anunciam, neste novo oeste de territórios abandonados.
Mas as luzes ainda rareiam neste estaleiro que se procura reinventar, entre a alta e a baixa, entre a oitava e a décima primeira, onde outrora habitavam as entranhas gordurosas da metrópole.
Como que renegando a genética luminosa da cidade, na nova centralidade a multidão move-se nas sombras, hoje à noite de reflexos multiplicados pela chuva que voltou, alimenta-se de espaços fechados de tijolo vermelho, transformados em cavernas de Ali Baba, mal se transpõem os portões metálicos tão rudes como a irregular calçada que serpenteia o burgo.
Enquanto os últimos artistas de rua ainda resistem nos derradeiros muros em processo de reconversão, antes de se mudarem para East Village, depois Brooklyn e Queens e, quem sabe, mais tarde para o Bronx.
Ou se mudam para dentro das renascentes galerias envidraçadas de arte de vanguarda.
71º F era a incompreensível temperatura húmida e abafada que se anunciava na nona avenida.
Entre o formigueiro de vultos e automóveis que desciam a nona, acendeu-se uma pequena luz branca que serpenteava a rua em obras.
Free.
Free is the cab.
Mão ao alto antes que chova, e não há maior prazer que chamar um táxi com uma mão ao alto.
Primeiro, porque também nós podemos ser estrelas de cinema.
Vimos isto tantas vezes nos filmes.
Depois, porque em NY, isto funciona mesmo, basta olhar para eles, simular que levantamos um dedo e temos um amarelo só para nós.
Já não é um amarelo como o dos filmes, hoje o império dos sentidos orientais invadiu as ruas da maçã, e um ford já não é tão fácil de agarrar com uma só mão.
Um vulto de barba branca (e no início jurei que tinha turbante) chamou-nos para dentro do Nissan e, naquele momento acreditámos que iriamos escapar à chuva e à mole humana que nos empurrava para a noite.
“Apenas um por cento das pessoas pensa no significado da vida” – foi esta a primeira frase que saiu pela porta aberta entre nós e o homem de barba branca, que não tinha turbante mas que vestia uma pele escura, encardida da vida e dos fumos da cidade.
Sim, ele sabia muito bem onde era a quarenta e anuía sem desviar a cabeça da calçada, nem o ouvido do som que ecoava no táxi.
Uma voz límpida e com um sotaque indesmentível saía dos altifalantes do carro amarelo, e falava aos fiéis, como se fosse uma audiência em direto.
Entre a rua 14 e a rua 26, cheguei a jurar que era um som de mesquita e, dentro do carro, não sobrevivia um som que retirasse a limpidez àquela voz que falava uma linguagem simples, quase pueril, para uma plateia de silêncio, dentro do carro e para lá do fio (seria rádio, alguém jurava que era um ipod)
E o homem de barba branca e pele escura não alterava aquela expressão de meditação interior e absoluta concentração exterior no trânsito caótico que se intrometia entre nós e a décima avenida.
Nem mesmo quando se atravessavam nos para-choques dianteiros as adolescentes de saias muito curtas e de decotes profundos, saltando como gazelas entre o trânsito e os portões metálicos dos grandes tesouros de Ali Baba.
A partir da rua vinte e seis, a voz falava de Mumbai e explicava que a aparência era o que menos caraterizava o espirito dos homens e a minha crença mudou.
Provavelmente era um Homem Santo Hindu, um sacerdote Jainista ou um monge Budista.
Porque no fundo o que a voz nos explicava é que a essência do ser, e do nosso papel no mundo está para além da ostentação de símbolos de poder e riqueza.
Entre o sotaque difícil e as palavras simples, entendi as siglas BMW.
Conhecendo nós Mumbai, então percebíamos
De palavras simples, voz solene e mensagem única, só concluímos que era o momento espiritual do submarino amarelo na noite chuvosa da grande cidade.
Um silêncio que durou vinte e seis quarteirões, em que fomos transportados para uma outra dimensão.
À saída, e num inglês absolutamente perfeito, o homem de barba branca e pele escura, anunciou a conta, desejou-nos uma noite feliz e agradeceu com uma simpatia desprendida, a gorjeta de três dólares.
Bem vistas as contas, bastante mais que os vinte por cento regulamentares.

Bem pouco para tamanho banho de universalidade



segunda-feira, 18 de julho de 2016

Trump City


“Give me a dollar or I’ll vote for Trump”
A cidade veste-se de sinais inequívocos. Não há local mais hostil que a grande metrópole.
Os mendigos alinham a mensagem com os artesãos, os sacerdotes rezam preces e invadem os ares de mensagens bíblicas, os resistentes colam cartazes e expressam uma indignação tão leviana quanto a boémia permite, os grafitters pintam imagens de anticristo e a cidade inclui o homem no folclore das novas manifestações de arte de vanguarda 


Nova York está para a América, como Londres está para Inglaterra: gostam do mundo, tendem a lidar com os absurdos com arte e humor, respondem ao extremismo com vanguarda e subestimam o improvável.
Nem mesmo o cabeçudo que agitava a desproporcionada cabeça de plástico em frente ao edifício de mármore de uma ostentação, agora soberana e eleitoral, consegue gerar mais do que breves sorrisos dos transeuntes indiferentes ou dos polícias acidentais que discutem retórica com uma mão no ombro dele e outra de olho no trânsito.
Sem sirenes, nem jatos de água.



Na quinta avenida, numa sexta-feira de calor sufocante, a aguardar uma trovoada que o céu de chumbo anuncia, e que os residentes esperam, traga água.
E, se no final do dia, ninguém lhes der um dólar, sequer?
É que à grande maçã, nem sequer lhe é reconhecida, o estatuto de capital de estado.



domingo, 17 de julho de 2016

Paralelo 40



- Dá-me um cigarro!
Os olhos dele assemelhavam-se a um cristal prestes a estilhaçar-se, tão profundos eram os veios avermelhados que lhe arranhavam a retina, tão cristalizado era o seu olhar
Ácido, foi a primeira ideia que me assaltou para caraterizar a sua negritude indolente, os seus fios de barba eriçada, uma tentativa, desfasada do tempo, de ser ameaçador, de se afirmar como o ultimo cavaleiro da anarquia e do asfalto, o último dos reis da selva extinta pelo xerife Giuliani, duas décadas atrás.
Mas nas ruas que cercam a grande praça do tempo, os despojos de um submundo florescente, vomitam-se pelos cantos dos passeios, vagueiam sem orientação precisa pelas esquinas, que já não lhes garantem proteção da babilónia que devorou os traficantes, os chulos e as prostitutas, tudo espécies devidamente extintas do centro da luz, das notícias e do consumo do mundo ocidental.
Só ficaram os que não tinham forças para fugir e, que agora, vagueiam em círculo pelas esquinas que funcionam como um zoológico, um laboratório experimental de seres do outro mundo, um centro de interpretação do passado
Mendigos ou passadores
Mortos vivos que parecem ter ganho uma vida artificial a partir das personagens expostas no museu de cera da quarenta e dois, aquele em que uma jovem sem memória dos fascinantes e perigosos anos noventa, antecipa as cenas à porta, agita os braços e abana o corpo, em táticas de marketing agressivo de renascimento dos passados.
Mortos vivos que deambulam na imaginária Elm Street, entre a trinta e nove e a quarenta e um, entre a oitava e nona, de forma significativa chamada de corredor oeste, à procura de agente ou cineasta que os ouse adotar e que se assustam com a invasão de seres normais, segundo a nova ordem, juventude, línguas indecifráveis e gente que corre de um lado para o outro e que nem sequer se recorda dos tempos em que eles eram os donos da rua.
Quem aborda a grande ilha pelo túnel de Lincoln e por ali se fica, convence-se momentaneamente que o glamour da grande maçã é apenas cinematográfica e que a cidade se veste apenas de feios, porcos e maus.
Mas a sensação não dura mais do que breves minutos e apenas um quarteirão.
Para lá da oitava, vive a metrópole, como um jogo de fortuna ou azar, onde todos parecem conquistar algo.
Para lá da oitava, não existem tempos mortos nem figuras de retórica.
- Para que é queres a máquina? O que fotografas?
- Coisas
Olhei-o de cima a baixo. Ele esforçava-se por manter o semblante rufia de outras eras, mas era apenas um mendigo em fase de espera.
- Coisas – repetiu, baixando os olhos, segurando com as duas mãos o isqueiro laranja que lhe passei para as mãos, acendendo o cigarro, antes que eu me arrependesse de ter parado.
Ele e mais uns vinte que se encostavam nas entradas do metro, cercados por milhares de transeuntes, centenas de nacionalidades, dezenas de polícias e, pelo menos, meia dúzia de tons de pele.
Lembrei-me de Tabucchi, “o que fazemos neste corpo”, sem interrogação.
E adivinhei que todos têm um lugar sagrado, de onde não escapam as suas memórias

Vens aqui para morrer