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domingo, 30 de dezembro de 2012

Ano XII, Milénio II DC. – As personalidades europeias do ano


                                                                  In Guimarães - Capital Europeia da Cultura 2012

Faz (mais ou menos) 365 dias que o o-mago-havel  morreu, uma referência intelectual superior da nova Europa, o nosso Pai Natal da esperança europeia.
Havel era uma reconfortante combinação de pragmatismo reconciliador e de um idealismo federalista quase juvenil, uma brisa fresca mas suave que vinha de Leste
A Leste tudo de novo!
Um apóstolo na fronteira oriental, na Europa em que crescemos, feita de ideais comuns após guerra, algo intangível que nos ligava a uma ocidentalidade contida, primeiro por uma invisível cortina ideológica, depois pelos Urais.
Foi há pouco mais de 365 dias que ele quase chegava a 2012
O nacionalismo exacerbado que, mesmo envergonhadamente, se dissemina em egoísmos próprios e mesquinhos pelo continente, curiosamente a partir de leste, demasiado pouco tempo depois da queda do muro deixa-nos tristes que a partida de Havel não tenha deixado descendência visível.
Há quem repita que faltam Homens de ideais na Europa confusa!
Mas não na fronteira Norte.
As fronteiras do ano XII levaram-me a uma improvável dupla de encontros bilaterais com a mãe nórdica, princípio e fim do ano.
longa-noite-gelada-da-monarquia-nordica  em cinco de Janeiro e um de Dezembro nas sombras-de-um-inverno-nordico. 
Estocolmo e Copenhaga, uma orgulhosa Europa do norte e do gelo, sempre acima de qualquer alinhamento desnecessário, um registo constante de respeito por regras claras de conduta e de convivência em sociedade que se sobrepõe, numa surpreendente e duradoura frugalidade de alto teor estético, à ausência quase absoluta de cultos de personalidade
Olaf Palme terá sido o último dos dinossauros da divisão Nórdica do viveiro dos idealistas (ou dos cultos de personalidade) e aqui não se sente a Europa confusa…
Nacionalismos à parte, não fosse o deplorável episódio norueguês, o o-taxista-que-veio-do-frio-teerao. é a melhor prova (se há provas irrefutáveis do que quer que seja) de que uma certa cultura elitista europeia ainda pode ser um farol civilizacional.
Apesar de não terem conquistado a América (segundo consta, chegaram lá mas não voltaram, engolidos sabe-se lá porquê?), novas investigações arqueológicas revelam-nos, aliás, facetas vikings muito mais sofisticadas do que se imaginava!
Não fossem os seus os-seis-pecados-mortais-latino.
Na fronteira Sul do continente, volta-galileu-seras-estas-perdoado , porque é tempo de voltares a insistir que o Sol não gira à volta da Terra, mas receio por ti, porque os acólitos do Papa Berlusconi podem, desta vez acender a fogueira inquisitória, e não te deixar morrer de velhice, na miséria mas de velhice
Sobram os absurdos cultos de personalidade a Sul e não há dúvidas que faltam Homens de ideais na Europa confusa!
Enquanto procuro desesperadamente penetrar na bola de cristal que contém, segundo a lenda, o elixir sagrado da cultura ocidental, legado de uma Antiguidade plena de códigos e cultura humanista (entre outras barbaridades), conformo-me com a nossa reputação de perigosos anarquistas que nós somos, adoradores do culto marialva “se tu consegues ser absurdamente irresponsável eu consigo mais, pior e mais longe”, e converto-me à pureza do português anónimo, persistente e com mau feitio
o-taxista-que-gostava-de-jazz. e rio-de-onor-o-silencio-dos. ... sobreviventes , relembram-nos que nos alimentamos da antimatéria, longe dos dogmas e da fanfarronice da velha senhora (Europa), e são as amostras de país real que, se os deixassem, até podiam ser personalidades!

Os seis pecados mortais (latino incompreensíveis)dos nórdicos


São indiscutivelmente mais evoluídos no respeito pelas regras de conduta de convivência em
Mas revelou-se um povo de relevantes pecados mortais
         i.           Desligam a máquina do café expresso a meio do jantar dos clientes (acho que é de propósito “ai vais querer café não eu desligo a máquina”)
       ii.            Têm o péssimo hábito de começar (e acabar) tudo a horas esta mania de cumprir horários, só pode ser doença congénita. Segundo prima J. é a teoria dos 8*3, 8 horas de trabalho, 8 horas de lazer e 8 horas de descanso!
      iii. São obsessivamente adeptos do faça você mesmo, pelo que esperar no aeroporto é aguardar que encontremos o motorista dentro de um gigante autocarro amarelo, algures na escuridão da rua, obviamente nas chegadas que era a porta da direita e as partidas a da esquerda, duas portas de saída, duas portas de entrada, a mesma! Para nós nunca nos passou pela cabeça que o motorista em mangas de camisa nos esperaria pacientemente dentro do autocarro e que nunca lhe passaria pela cabeça nos procurar dentro do aeroporto. Motorista, logo, não guia. Uma inconciliável diferença cultural que só entendemos quando nos lembrámos do IKEA (desculpa aos dinamarqueses por me atrever a evocar um nome sueco)
     iv.       E depois explicam tudo o que se vai passar...sem surpresas
       v.       Insistem em jogar golf em campos nevados
     vi.      Paradoxo do serviço / Todos ganham bem logo o serviço é caro para todos, logo são comedidos, logo usufruem menos / Colocando a questão das 8*3 na equação então percebe-se que serviço bem diferenciador (por exemplo, fora de horas é escasso) é muito caro, logo não usam. Ganham bem, são protestantes frugais, não trabalham em excesso e fogem do serviço, logo não têm serviço. A igualdade na riqueza é assim uma equação impossível com qualidade de serviço. Serviço, significa desigualdade intrínseca! Então ricos, para quê? Imaginem então o choque para quem não ganha bem
IOL!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Sombras de um Inverno Nórdico



(ou não há tarde nas paisagens do Norte)
A Escandinávia rural embala-nos à volta do roast beef e do arenque (o arenque é invenção minha, porque não visão - estereotipada - completa do universo nórdico sem o salmão e o arenque)
São algumas (uma, duas talvez) horas da tarde e desde a manhã que persiste a mesma sensação de eterno pôr-do-sol atrás das nuvens, numa constância de cinzentos meio-toms, um amarelo sol que rompe esporadicamente o ameaçador carregado sobrolho celeste.
Silêncio, cavalos, sombras e reflexos no lago quase gelado, numa província em estado semi sólido, pequenos interlúdios da imensa planície branca.

O taxista que veio do (frio) Teerão



Cai um frio de quebra ossos na noite viking
Copenhaga, -4ºC.
Kokkedal Slot? A hesitação e a inépcia em lidar com o tom tom confortavelmente instalado no veículo que nos resgatara do frio, minutos antes da congelação final, não nos levantou suspeitas, tal era o frio e tal era a confiança cega na civilização nórdica.
Estamos na Dinamarca e aqui, na civilização, ninguém se perde (ou ousa perder)
Mas Kokkedal Slot está a meio caminho do fim do mundo e o taxista hesita…
Tão estrangeiro como nós? – A ideia trespassa-nos o cubo de gelo que obstruía os neurónios nas nossas partes altas!
28 quilómetros para o destino, pareceu-lhe uma longa distância, pareceu-nos que não fazia ideia do que estava a ver no ecrã encriptado do GPS em dialeto nórdico, provavelmente dinamarquês, dadas as coordenadas. 28 quilômetros pareceu-nos ( a nós e a ele) uma eternidade…de centenas de coroas, daquelas moedas de buraco ao meio, que valem mais do que o metal que contêm!
Não, apenas o cuidado de não falhar, uma reconfirmação necessária de quem presta serviço e se preocupa com o destino dos clientes!
O tom tom finalmente arranca e o mapa da cidade, cheio de cor na branca noite escura da cidade, as ruas marcadas a vermelho, as margens a amarelo, como se fosse um videojogo de vilão em riste, trespassando as ruas cada vez mais desertas, luzes laranjas que aceleram nas bermas da estrada, iluminando de forma cada vez mais ténue as fachadas austeras da cidade geométrica.
A (o) meia-noite (meio da noite, imaginamos que a luz, senão o sol, já desaparecera há mais de – quase - um dia) aproxima-se, e a malta civilizada prepara-se para regressar ao seu universo pessoal do chão aquecido e dos edredons de penas 
Começam a sobrar dos outros...
Segundo os locais, são suecos e noruegueses bárbaros a procura de bebida barata
(Barata? Uma arrojada metáfora para quem se assume como os únicos nórdicos continentais)
 A confiança do taxista aumentava com a ausência de queixas do tom tom e as queixas do frio são a sua forma de quebrar o gelo…
“ O frio é nosso amigo…atrai clientes…”
“… O gelo é nosso inimigo”
As incoerências do homem (mas afinal o frio é mau, ou é quente?) são uma fonte de inspiração da condição humana.
E da circunstancial conversa do frio, aproveita para nos explicar que antes (uau, afinal o tipo se calhar não é estrangeiro), este antes revela antiguidade e competência no posto, o frio chegava mais tarde…
“Aquecimento global!” – Foi a ponte encontrada para o monólogo que se adivinhava entusiástico, qual panfletário “ os americanos…” e eu olhava de soslaio para o tom tom, certificando-me de que a linha vermelha não desaparecia do ecrã, “…não acreditam no efeito estufa…” e eu pensava “O que virá a seguir?” e ele não me desiludia “ …se experimentassem ligar o automóvel dentro de casa com as portas e as janelas fechadas…morriam todos em quinze minutos…acham que a mãe natureza tudo aguenta, mas não…”
Ups! Lembrei-me da sua tez morena e a pergunta desenrolou-se qual língua sem vontade própria
“De onde vens?”
“Irão, 21 anos”
E eu fiquei a imaginar a ira do Imã!
Mas ele dirigia cautelosamente, sem qualquer emoção descontrolada.
O meu olhar enregelado (seria do frio ou da forte coincidência sugestiva?) despertou-lhe a compaixão ou o senso prático e politicamente correto de vinte e um anos de vivência no exílio dourado, num país em que “ quem tem emprego está bem”
“Nós (iranianos) somos um povo horrível… lavagem cerebral, enganam o estado, não pagam impostos (pagar impostos é bom) …”
Eu não tinha certezas…se era bom pagar impostos, se este tipo era real, quão bizarra era a anatomia de um iraniano de integração nórdica.
“…Aplicam a justiça pelas próprias mãos, sempre de gatilho armado…têm facilidade em matar”
E a linha vermelha começava a divergir de forma que nem as legendas dinamarquesas conseguiam camuflar.
“Enganei-me!” Pois, eu também percebi
“ Devia ter apanhado a autoestrada de Helsingor” Pois, todos percebemos
Recuperado do engano, provocado pelo seu excesso de zelo, apontou – sempre hesitante – para uma nova alternativa vermelha, e eu percebi que a orientação não era o seu forte
Perdidos à saída da capital!
“Por aqui são mais quilômetros, mas eu desligo o taxímetro quando chegar ao Km 22,5…”
Melhor a aritmética que em orientação e nesta fase eu estava prestes a entender porque é que entre Portugal e a Dinamarca há milhares de quilômetros de diferenças, e certamente os primeiros automóveis sem condutor nascerão neste ninho de tecnologia quase espacial.
Força Irão! Deixa-te ir! Conduzes como se estivesses no espaço.
Encaixado numa nova linha vermelha, mais pronunciada e curvilínea do que devia, agora perfurava com o halogénio a floresta de troncos que bordejavam a estrada, escuro como breu e semáforos ligados em cruzamentos plantados no silêncio e na ausência absoluta de transeuntes.
“Terrível, um povo que não presta. O meu irmão, que vive na América quis lá voltar e eu avisei-o…deu-me razão…veio embora, sem vontade de voltar”
“É um problema de vizinhança, têm maus vizinhos…e todos eles acham que os vizinhos são maus…aqui temos a Alemanha”
Também tu, Brutus!
“ Nunca a democracia vai vingar nestes países…Egito, Síria…”
Ele tinha definitivamente opinião, sustentada e abrangente e, para já, não estávamos em risco; circulava vagarosamente (é o gelo, sabem!?) numa interminável reta e a linha vermelha não vacilava
“ Eu não acredito em religião e os extremistas não permitem que as pessoas vivam em liberdade…é preferível que fiquem lá os ditadores”
Voltavam os cruzamentos, as casas, mas não sinal do mar (e devia haver), não se vislumbravam referências familiares para quem, como nós, já por ali devíamos ter passado hoje.
“ Eu li sobre todas as religiões, primeiro judeus, depois cristãos e a seguir muçulmanos, todos com a mesma origem comum e todos se guerreiam…por isso não acredito em religião”
Vinte quilômetros depois, soubeste que eu era português – para um estrangeiro que já não é estrangeiro e que fala inglês com quem ele entende que não é, de todo, inglês, perde facilmente a noção de que podem haver estrangeiros naquele local ermo e (agora) desconsolado –
“ Há muitos portugueses na Dinamarca…” estava na hora do interlúdio de simpatia para a nação lusitana, “…engenheiros, na restauração e são muito apreciados” agora é que eu já não percebia se ele era um iraniano integrado ou um nórdico com remotas reminiscências persas.
“Vou desligar o taxímetro, não quero que fiques prejudicado, o meu patrão vai entender”
Mas o caminho permanecia pouco familiar e a linha vermelha aproximava-se perigosamente do destino registado e as minhas dúvidas adensavam-se…
“Estamos a 800 metros” sim eu também tinha visto, mas não acreditava, e o inevitável aconteceu, uma estrada bloqueada à nossa frente, uma ponte sobre a linha de comboio e, do outro lado, o perdido Kokkedal Slot.
A única ponte no raio de visão do tom tom dinamarquês de um iraniano integrado que não fazia a ideia (nem estava preparado para reagir a imponderáveis geográficos)
Uma aventura no reino da Dinamarca, quem diria, e o nosso motorista parecia uma barata tonta, as ruas eram cada vez mais estreitas, pátios e parques de estacionamento, vivendas e não havia mais pontes para lá da estrada de ferro, um mar de castanho no aparelho que falava sozinho e, obviamente como máquina não pensante, não dava soluções, porque não havia, a não ser que saísse do quadrado.
“Zoom Out”, ordenei subitamente, achei que era a altura de mostrar a este cego crente na tecnologia do satélite, que nada substitui o sentido prático de orientação de um puro lusitano!
E como por magia, o mar apareceu e apontei-lhe o caminho
Alguns metros mais tarde, já de taxímetro ligado “ Importas-te? Com estas voltas o meu patrão não vai aceitar, eu não te quero prejudicar…”, a linha vermelha descobriu o novo caminho para o castelo encantado.
Força Irão, deixa-te ir!
Cem coroas de gorjeta depois (“ Tens a certeza?” e eu gostei da sua capacidade de autocritica) o taxista de Teerão agradeceu, comovido, de mãos unidas numa longa prece.
Um espírito livre, mas desorientado, na branca e escura noite nórdica.
Mais de uma hora e setecentas coroas depois!

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Coimbra – Serenata de imaculada irreverência


Segundo distinto orador, a cidade é a grande mãe da língua portuguesa, o berço de uma cultura única (una), a universidade que formou a primeira elite governante do Brasil após independência e, por isso mesmo, responsável por um país uno da dimensão de um continente.
Unidos por uma conceção comum do mundo, unidade de pensamento e de valores, cumplicidade académica inseparável.
Que impediram a disseminação do país irmão!
Uma universidade, um país, um provável feliz acaso que os vizinhos ibéricos não previram e, em múltiplas universidades, retalharam o restante continente em múltiplas, e belicosas, nações de língua espanhola.
Tudo isto, segundo distinto e catedrático orador.
E nós acreditámos, porque gostamos de acreditar que, no agora inevitável e permanente recurso à História, já tivemos algo a ver com o umbigo do mundo, agora que nos começamos a incomodar com a visão estreita que povoou a nossa pequenez a que nos reduzimos nas últimas quatro décadas
Em que, segundo outros, nos limitámos a retalhar a nós próprios, ao nosso pequeno território, saciados com as nossas pequenas conquistas de um consumismo alienado e hipotecado.
 
 
 
2020, é agora a nova data mágica para todos os eventos de um novo mundo em mudança
Tal como 1984, o orwelliano fim da liberdade individual ou 2001, odisseia no espaço ou 2012, o fim do calendário Maia (ou uma apocalíptica previsão de fim do mundo no solstício – inverno ou verão, dependendo da latitude)
Que o 2012 possa permitir que a nova meta civilizacional – apenas marketing de comunicação? – seja atingida.
Na Coimbra, cidade velha, os vestígios do tempo e de uma irreverência que sobrevive ao tempo (três décadas é o que a minha memória de Coimbra, abrange), espalham-se pelas ruelas que circundam a Sé Velha…
Não sabemos se é um bom sinal de resistência da juventude (seja ela geracional ou não), e portanto uma premonição de que a nossa História nos vai inspirar no futuro, ou apenas um testemunho de abandono (repúblicas de vidraças partidas) de uma geração que prefere refugiar-se numa boémia antiga, gasta e folclórica e não desce às avenidas largas das margens do rio, com medo da luz intensa do sol e da água.
 
 
Numa manhã de Coimbra viva, estavam lá todos: os boémios zombies e vidrados de uma geração indeterminada, os distintos e honorários membros do orfeão da cidade, os velhos tocadores de harmónica, os mendigos, os idosos, os miúdos da capa e batina negra de corte moderno e de ousada sobranceria e até os turistas da saudade.
Cá fora (lá fora) uma imensa nuvem cinzenta trazia vento e chuva de Sul, mas ninguém parecia querer interpretar o cinzento como a nossa cor do futuro, ou a perda da visão holística do mundo.
Afinal de contas, o Inverno está a chegar!

domingo, 25 de novembro de 2012

S. Miguel, as vacas estão de pé


Para o açoriano oriental não há mosquitos que não se possam resumir a piolhos que pululam, lá longe, na ilha rival…
Rival?
Lapas dos Açores ou da Madeira?
As dos Açores são melhores!
Pois!
As petingas do mar açoriano ainda não têm medidas mínimas comunitárias e, por economia e conforto, se devoram sem temor pelas espinhas morfologicamente compatível com os humanos.
Em S. Miguel respira-se beleza em estado puro, quase selvagem não fossem os canteiros primorosamente aparados, os miradouros recortados pela relva que nasce da chuva e as hortênsias plantadas pelos jardineiros do Éden.
É um intervalo, a Atlântida entre a América e a Europa (duas faces da mesma centralidade), as tempestades e o silêncio dos pastos, as lagoas e o mar enrolado, tão inatingível que chega a cansar.
É a última fronteira de(o) paraíso, à deriva nos elementos do atlântico, os ventos que empurram as correntes, fustigam as encostas da avenida marginal e se deixam acariciar pela paisagem que renasce do temporal medonho qual Génesis, numa manhã inundada de cores de Outono.
 
 
Entre as rochas negras um solitário, louco e amador surfista desafia as ondas e perde sistematicamente o desafio com o branco da espuma, que renasce a cada meia dúzia de segundos, do azul do mar
Mas confia na fé imensa, refletida no rochedo que, sob a forma de um mosteiro, enquadra a imagem de fundo imenso.
Mosteiros, ilha de Miguel
Se as vacas estão deitadas, então vai chover!
As quatro estações do ano no mesmo dia cansam as vacas dos Açores
Deita, levanta, deita e levanta!
O açoriano oriental, ao volante da nave do paraíso ri de prazer genuíno.
Mitos urbanos não resistem a estas visões do verde reconfortante da terra e do azul profundo do mar!
E ao silêncio, e à intocada inacessibilidade do lugar!
 
 

domingo, 11 de novembro de 2012

Lima - A (foto) síntese da Latina América



Lima de novo.
A neblina da primavera do pacífico persiste, embora temperada por um tímido sol, que acende uma chama protetora das indígenas que se refastelam na relva de Miraflores, a pastar os lulus dos ricos.
Depois da noite esfriada de cusco, altitude seca em estado sólido, rebolámos para a altitude 0.
Lima, Perú a nível do mar, mas protegida dos tsunamis por cinquenta metros de arribas convenientes.
Miraflores (o bairro) mira mar por vontade e vocação.
E hoje, descobrimos a burguesia peruana pelas ruas que trazem o oceano até aos jardins da cidade ociosa.
Uma outra face da mesma metrópole, tão enorme e tão surpreendentemente estratificada por bairros, ruas e quarteirões, ou simplesmente encostas de poeira desértica…
Contra as expectativas de uma metrópole invadida pelo país rural, numa anarquia sudamérica das periferias em pólvora, hoje revejo-me numa cidade com os ambientes Vargas Llosa que estou a aprender a conhecer, sessenta anos mais tarde.


No jardim Kennedy, havia bancos com estórias trocadas entre velhos amigos, gatos que se espraiam pela relva, uma porta para a avenida arequipa, a conexão literária entre o passado e o presente da cidade dos príncipes e dos pobres.
Um excerto de cidade sul-americana de latinidade ocidental, europeia sim mas com sotaque, como na bellavista em Santiago, em Ipanema ou no bairro S.Telmo.
Saudosista, levemente afetado, mas sedutor para um europeu latino que regressou dos confins (e das entranhas) da indígena (fascinante, longínqua e estranha à nossa cultura do mar e da planície) terra andina.
Mas a Lima nebulada e sombria de um inverno que não termina mais, revela-nos outras surpresas…
Num mundo em que a agricultura não é reconhecida, os terraços incas de experimentação agronómica e os ícones de aproveitamento da natureza, qual sal de maras, reproduzem-se nos novos laboratórios de experimentação gastronómica, exemplo restaurante central, a Lima, capital gastronómica da américa do sul.
A chef loura prepara o cheese cake cabra km 28, do lado de lá da cozinha peruana
E não sorri!
A um ritmo alucinante, uma estratosférica alegoria de ingredientes sublimes que legitimam, só por si, um abençoado regresso à terra profunda, um vale sagrado da agricultura de sabores.
Lá fora, os abutres, os pelicanos e as gaivotas do pacífico acenam-nos com as asas e voam, rasantes sobre as ondas.
Também na cidade dos reis, a última palavra pertence aos deuses, e seus fiéis símbolos da vida eterna sobre a terra.
Aleluia, Perú dos incas e dos viracochas!


sábado, 10 de novembro de 2012

Machu Picchu – Os três níveis da vida






Se deus quiser, amanhã de manhã os relâmpagos e a chuva já se deitaram e o sol intihuapa vai estar lindo e brilhante”
No santuário, entregam-se oferendas e fazem-se sacrifícios ao Huaiana Picchu, para que a bonança se sobreponha à tempestade, os relâmpagos sucumbam ao arco-íris…
Um festim medonho, pernas de cordeiro em forma de guisado, abundantemente regado a vinho tinto chileno cor de sangue e pisco sour para os sacerdotes celebrarem a mãe natureza.
Às seis horas da manhã do dia seguinte, o céu estava azul sobre as montanhas da cidade perdida e línguas de névoa (o espírito do cordeiro) invadiam docemente as ruínas…
Silêncio profundo no manto verde e montanhoso, um puma que não tem pressa de acordar, uma sonolenta vida terrena, concluímos nós.
Na precoce manhã, a vida subterrânea serpenteia o vale lá em baixo, um inquieto rápido sobre a forma de serpente, e, qualquer que seja o angulo, ela cerca-nos sem descanso.
Os milhares de pássaros andinos, não são deus na terra ou condor no ar, mas agitam-se incessantemente entre as ruínas de pedra, seus ninhos celestiais.
Machu Picchu é a terra dos pássaros, prova indiscutível que esta é uma terra de deuses.
O puma imaginado na pedra não reage, nem na temperada manhã, nem após o repovoamento do lugar, umas horas depois.
Este não é pois, definitivamente um lugar terreno.
Também Bihram teve dificuldade em reconhecer este local como uma terra de homens, tais as dificuldades em achá-lo, em alcança-lo, em domá-lo, em entendê-lo…
Aí, as serpentes da selva e o serpentear do rio fizeram-no pensar que não haveria vida para além dos símbolos da morte inca, apenas vida subterrânea, incompreendido pelos nativos e fustigado pelas chuvas torrenciais.
Não há pois, aparentemente, estágios de vida intermédios na cidade perdida!
Às nove da manhã, uma mulher de hispanidade ambígua chorava copiosamente diante da visão arrebatadora da cidade redescoberta e soltava lágrimas, tão abundantes e inquietas quanto os rápidos do rio urubamba, para o telemóvel gasto pelo tempo e pela espera:
“Estou muito emocionada. Já cheguei, graças a ti!”
Não entendemos mas parecia profundo, uma espécie de desfibrilhador emocional.
Cinco horas depois do nosso primeiro olhar, com os nossos olhos pejados de uma paisagem suprema, olhámos por detrás do ombro esquerdo, numa lógica de despedida emocionada e silenciosa (havia malta jovem sentada em posição yoga e estados avançados de transe).
E, de repente, pareceu-me (não, tenho a certeza) que, na encosta por detrás das ruinas, o desenho do puma – símbolo da vida terrena - e puma animal, agitou-se de forma súbita, exibiu a sua enérgica posição de fera ao ataque…e ter-se-ia lançado sobre a multidão extasiada…se não fosse apenas uma interpretação pouco plausível, nem uma lenda sequer, e de pedra
Afinal, mesmo que tardiamente reconhecida, machu picchu revelou-se um sagrado lugar terreno.
Prova de puma!
Invulgar, extraordinária, mas terrena.
Abandonei as ruínas da sagrada cidade perdida, convencido que entre mim e o puma poderia ter nascido uma linda amizade!
Se ele tivesse renascido da lenda como um ser real.
Seria?
Num local como este, os meus olhos e o meu cérebro são incapazes de destrinçar (falta de discernimento total) entre o que acontece e aquilo que nós pensamos que está a acontecer.
Cinco horas em Machu Picchu, muito melhor que qualquer realidade!

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Rail to Machu Picchu


Vistadomme desce o vale estreito a um ritmo descontrolado de mais de 20 km/h.
E o vale estreita e aproximamo-nos das paredes de uma vegetação mais densa, adivinha-se a selva amazónica por detrás dos picos, para onde o rio urubamba se despenha, ora alargando ora encolhendo, conforme o espaço que a montanha lhe concede.
Os rápidos não desarmam, uma ansiedade irreprimível de chegar ao grande rio Amazonas.
Vistadomme desce ao ritmo da música espiritual andina e persegue a corrente do rio, sem êxito.
Na última curva do rio, águas calientes espreme-se no fundo de um entroncamento de desfiladeiros, como uma terra de múltiplas fronteiras: a selva amazónica, a cidade perdida nos cumes inacessíveis e o caminho de fuga de um dos últimos “ultimo” inca em direção a villacamba nos seus exílios lunares, enquanto o seu mundo de bronze se desmoronava a sul e a norte, a leste e a oeste e nascia um mundo de um só deus…


A linha férrea semiabandonada que trespassa o vale e o povoado entre pizzerias, lojas de souvenirs e hostels de mochileiros, submergindo a estrada inexistente, que já se afundara no vale sagrado recorda-nos que, depois de águas calientes só resistem os bravos do pelotão!
Bom, consideremos que esta é uma visão fantasiosa, mas reconfortante.
Enquanto habituo a minha visão à baixa altitude (afinal de contas estamos a pouco mais de 2,000 metros) e à agitação multidireccional (porque vem de todos os lados, culturas e latitudes) despejada em rápidos de seres humanos à procura de um momento de comunhão sobrenatural com a mãe natureza, invadem-me perigosas alucinações.
Vindo da selva, escapa-se primeiro um rasto de fumo a sobrevoar os telhados de zinco (uma gata nos telhados de zinco?), depois a aparição de um longo e ruidoso comboio a abarrotar de madeiras preciosas, culturas tropicais, indígenas e metais preciosos, que invade o fundo da rua dos souvenirs, e se aproxima velozmente da nossa visão grande angular…
E ninguém parece estranhar…
Um fantasma (será a sua transparência, sinónimo de imortalidade?), de manco inca pulverizado de ouro, chapéus altos e tecidos garridos, puxa do apito, impassível mas obstinado, rio acima em direção ao vale sagrado.


Começou a subida alucinante para a cidade perdida!

domingo, 4 de novembro de 2012

Domingo é dia de feira no vale sagrado

Domingo em Pisac é dia de feira.
Tal como em todo o vale.

Logo de manhã, enquanto o petrificado e pindérico puma colérico procura lançar o pânico no povo (sem qualquer efeito aliás, o velhote mumificado que se sentava à sua sombra que o diga, ele era o espelho do tédio) …
O povo invade as ruas e as estradas, vestido num arco iris de roupa e chapéus (sim, chapéus surreais, cartolas e de coco com umas abas de acrescento, um erro lamentável de um empresário, certamente de origem espanhola).
A procissão que desfila através das janelas do nosso combie de luxo, monta as bancas em todas as praças e ruas, aquece os fornos de assar o pão, espeta os porquinhos-da-Índia sobre as brasas improvisadas de um qualquer lugar, um repasto que se confirmará como a última ceia dos guerreiros feirantes…
Como foi afinal a última ceia de Cristo, segundo artista andino desconhecido, elevado à imortalidade nas paredes da catedral de Cusco.
Seja qual for a ocasião ou o pretexto, o baby pig é que se lixa!
A nova Pisac do vale (distante da inca perdiz – em quéchua, sinónimo de pisac) atrai também outros espécimenes mais alternativos, aquela raça de europeus encardidos que sempre renascem (intemporais) das cinzas qual JC, direitos ao passado de ganza e das drogas alucinogénias, e que deambulam por todos os jardins floridos ou quintais que evoquem (mesmo que remotamente) um título de sagrado.
Tudo se compra e se vende em Pisac, numa gigante feira, uma exposição universal do mundo peruano em formato Perú dos pequeninos, onde deixamos de entender se o objetivo final é comercial ou antropológico.
A mesma diversidade de cores e feitios, um bazar dos antigos ali, ou em qualquer pisac do mundo!

A antiga Pisac das montanhas abruptas, permanece silenciosa nos cumes que cercam o sagrado vale, relembrando os nossos contemporâneos que as verdadeiras razões para se permanecer nas alturas podem ser intemporais… porque a história é longa, e repete-se!
Ruínas sábias!
Dilúvio no vale e no rio, a terra tremente, soldados espanhóis a rebolar ao contrário da corrente do rio e os restos da civilização inca, arrastados pela corrente abaixo.
Sinais da História e da Natureza!
Em dias maus, é melhor deixar o verdejante vale entregue à cultura das batatas e outros vegetais.

sábado, 3 de novembro de 2012

Ollantaytambo, o templo do Sol


Aqui, envolvido pelos terraços de Moray, circulo perfeito de terraços agrícolas, laboratório agronómico inventor de espécies, percursores da batata e da agricultura biológica…
Aqui, sobre a encosta de Maras, onde os pacientes incas esperaram que o sal brotasse das entranhas da montanha e o tratavam como o sal de mar (as) …
Aqui, debruçado sobre o rio sagrado, enquanto o divino sol se despede do vale, por detrás do ocidente, para lá de Machu Picchu…

Aqui, na encosta do templo sagrado de Ollantaytambo, onde me imagino sentado no trono do inca a venerar o sol que nasce na montanha a leste, e o Deus de todos os deuses esculpido na pedra…
Aqui, na varanda do quarto do hotel rio sagrado, embalado pela música da corrente do rio, pelos pássaros que enfeitam os mantos de escuridão que nos invade, e pelo eco do apito do comboio que regressa de Machu Picchu a Cusco…
Aqui, converto-me sem condições ao ciclo da religião inca:
Uiracochan – imagem do criador do céu e da terra
O Sol e a Lua
A manhã e a tarde
O verão e o inverno
O raio e as nuvens
A chuva e o granizo
A terra e o mar
O rio e as árvores
O puma
O homem e a mulher
Deus de todas as coisas
A alimentação do povo
….
Com algumas pequenas imprecisões de teor andino!
Cientistas e agrónomos, arquitetos e sacerdotes cheios de penas coloridas, observadores e planeadores sem referências de civilizações vizinhas, um povo normalmente obediente, de tanto agradarem aos elementos sagrados da natureza se esqueceram que nem todos os estranhos barbudos que não tomavam banho todos os dias, eram deuses enviados à terra…
E tramaram-se!
Mas foi uma pena.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Cusco, Capital Imperial


Cusco é a capital inca que os espanhóis trituraram na capital das índias ocidentais.
Por mais que os movimentos incanistas prometam não prestar vassalagem à hispanidade, vão ter de esperar por um novo terramoto e que as reconstruções de 1650 e 1950 não aguentem o novo abalo de 2250.
Exercício difícil para um império que durou cerca de cem anos e que foi, antes do resto (e naturalmente que o resto é ainda muito), uma síntese das civilizações americanas anteriores.
Inca é, acima de tudo, o fascínio do desconhecido e do lendário…
E a ligação profunda à natureza que adoram e exploram e o (provável) mito urbano de que eram um povo que vivia para as coisas simples.
Para além de socialistas, também ecologistas.
O incanista José, mestiço, cantiflas e o novo avô cantigas, eriçou o seu fino bigode com a nossa discordância académica sobre os (pouco frequentes, é verdade) sacrifícios humanos de raparigas escolhidas aos deuses, nos vulcões gelados dos andes.
Bom, estamos na fronteira da imprecisão histórica – alguns povos residentes nos territórios incas, faziam-no, e a forma liberal como os incas tutelavam alguns territórios, sobretudo a sul, permite, hoje, a eles incanistas renegar a paternidade destes rituais, que mancharam a reputação dos Aztecas, reputados de bárbaros pelos descendentes dos Incas
Mais eriçado (agora de orgulho) só quando celebrou o terramoto como a desconstrução criativa do poder inca.
Cusco património da humanidade, é uma cidade peculiar, vibrante e mestiça. Mas o colonialista é conhecido e a sua predominância é clara.
Os espanhóis criaram uma cidade sobre Cusco tão imponente e grandiosa que não permitiu ninguém algum dia descobrir, por debaixo, os restos da geometria da cidade antiga.
Mais grandiosa que a original, tão imperativo era o desígnio da evangelização!
Na noite fria da explicada altura andina, o ar cortante que se respira entre ruas, praças ou travessas, é definitivamente colonial


Como o requinte e o bom gosto que não se escondem nas arcadas da praça, das três praças que redefiniram o urbanismo da cidade inca sagrada, onde cada templo, cada expectativa de palácio ou residência sacerdotal é hoje, meticulosamente calculado, uma igreja, um convento ou uma residência colonial pós Pizarro.
Olho por olho, templo por igreja!
Sagrada era e assim se pretendeu manter…
Mas os incas não são uma miragem: as dezenas de ruínas de templos e fortalezas que circundam a cidade, demonstram que eles existiram e tinham talentos inatos e uma espiritualidade intensa.
Subjugados, dedicaram-se a pintar e a esculpir uma visão andina da arte sacra europeia.
A (as três) catedral (is) de cusco pavoneia-se de um interior de uma riqueza forrada de ouro, prata, madeiras preciosas e pedra mármore como nenhuma catedral espanhola, mas sempre com um toque artístico andino…
É certamente a única catedral do mundo em que a magnífica tela da última ceia de cristo, serve porquinho-da-índia – um petisco absolutamente peruano – como repasto principal
A vontade espanhola de apagar os vestígios dos ídolos pagãos e a submissa vontade de vingança dos incas, criaram algo de muito singular, rico e esplendoroso.
Cusco, espanha por cima, incas nas entranhas!



segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Finalmente os vestígios do Império - a caminho de Cusco



O templo de Wiracocha marca a nossa entrada na terra dos incas.
Wiracocha é o deus dos deuses, uma crença que apenas os barbudos mal cheirosos desprezaram.
A caminho de Cusco, a descer para o vale sagrado, embalamos nas histórias do nosso guia, um inca cusquenho convicto que não admitirá nunca que ponhamos em causa a superioridade de um povo, um estado e um deus, cuja principal razão da sua existência era alimentar o seu povo.
E conquistá-lo, diria eu!
Eles não queriam a roda, porque não lhes servia…
Eles não tinham escrita, mas tinham uma forma de comunicar, que os barbudos liquidaram.
Falou-nos e mostrou-nos as qolqas (armazéns de mantimentos pertencentes ao estado inca), os templos, os círculos perfeitos e a simetria das paredes inclinadas como as pernas dos humanos.
Mas os barbudos, tudo levaram, o ouro e as estátuas.
A primeira das vitórias da história do capitalismo selvagem sobre o socialismo humanista.
Nas ruínas gastas do deus maior, vagueiam anciões que não parecem ter outro destino que se acomodarem nas sombras de um império que não conheceram, mas de quem se sentem filhos, e relembram-nos quão perecível é a natureza humana, tal como os impérios por eles erigidos.


A imagem do casal de idosos sob a sombra de uma qualquer árvore nativa, de nome indecifrável, ele a nível superior sentado numa pedra milenar, ela subalternizada no chão poeirento de uma terra que já foi fértil, resgata-nos da nossa fascinação por uma civilização, que afinal ainda tem ruínas em pé, para uma existência de fé, pobreza e sofrimento.
Católicos, apostólicos e andinos.
Um pouco adiante, como se fosse numa ordem cronológica pré definida (mais próximo da grande capital e o poder dos colonizadores torna-se ostensivo) em Andahuaylillas, perto do nada e longe das rotas andinas, descobrimos a capela sistina dos Andes, uma verdadeira extravagância de ouro e preciosidades, frescos e pinturas, um verdadeiro teatro de experimentação dos novos (e convertidos) artistas da escola de cusco, que releva a pintura europeia do século XV, numa nova dimensão indígena.
Aqui, tal como no Colca, os santos vestem luvas e cachecóis (porque a igreja é fria), e são humanos que sentem, numa crença quase pagã em que colonizados e colonizadores se fundem em vontades distintas, mas convergentes.
Afinal de contas o dia de S.João coincide com a data do solstício de inverno – mágico para os incas e seus rituais de adoração ao deus sol – a cruz de cristo, simboliza o cruzeiro do sul, uma referência astronómica dos adoradores das estrelas e do céu.
Tudo tem uma explicação, tudo se enquadra numa civilização que, pela ausência de registos, convive bem com a lenda e com as interpretações arrojadas da sua história.
Hoje, católicos, apostólicos e andinos!


Chegámos a Cusco ao fim da tarde mas vínhamos do vale e falhámos a entrada triunfal, qual Pizarro, sem vista aérea sobre os tesouros do Império.
Antes, submergimos numa qualquer periferia anárquica e precária que nos desagua diretamente no centro histórico.
É sempre triste uma frustração à chegada, para quem já se imaginava cronista do reino.
No restaurante Marcelo Batata, jantamos o profundo Perú e, levantando a cabeça deparamos com uma frase inscrita nas paredes deste espaço incomum:
“O nosso medo mais profundo é que tenhamos um poder desmedido” – Nelson Mandela
Quem diria, em Cusco!
Depois de vários copos de vinho peruano, acho que faz todo o sentido.