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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Adão & Eva

Adão e Eva - Silvia Patrício in Humanário 
(Centro Cultural de Cascais)

A ideia de que a criação do mundo tenha sido um big bang , primeiro o céu entre as nuvens escuras, depois uma enorme massa redonda, o mar e a vegetação, os seres vivos e, finalmente o nosso eu é uma visão reconfortante.
Tenha sido obra de um Deus maior ou uma mera coincidência científica.
Muito mais simples de explicar do que uma complexa teoria evolutiva que, por se perder nos confins do tempo, diluiria qualquer sentido de urgência.
E evitava termos de lidar com conceitos difíceis como o tempo infinito e a ordem das coisas.
E sedimentava a crença de sermos o destino final do processo de criação.
Mas quando foi necessário construir uma história dentro dos limites da compreensão humana, foi-se esvaindo a ideia de uma criação sem mácula.
Primeiro a ideia da costela do sonolento Adão se transformar em mulher, depois os filhos do Deus que escolheram as filhas dos Homens para mulheres e o amargo arrependimento do criador perante o resultado da sua criação.
E da culpa nasceu a fatalidade de ter de remendar, eliminar, corrigir, escolher os melhores entre cada espécie, os nobres entre os pensamentos e os desejos que tendiam sempre e unicamente para o mal.
E depois emergem as interrogações, porquê o Noé e não outros, porque é que uns sobreviviam ao dilúvio dentro de uma arca construída de madeiras resinosas, e outros eram arrastados pelas fontes do grande abismo
E no fim dos primórdios da História, temos um Deus que desistiu de castigar os homens, na mesma medida em que desistiu dos homens e ficou a noção de que o amor era sinónimo de castigo e de que os homens não eram afinal o destino final do processo de criação mas apenas um defeito de fabrico.
Assim sendo, e se recusarmos aceitar os difíceis conceitos da física, da química e da matemática dos astros, ficamos presos às consequências deste pecado original.
De uma das duas ideias igualmente perturbadoras: quem cria também destrói ou afinal de contas, porque fomos um erro, estamos entregues ao nosso próprio destino
E nesta fase da história eu já estaria mais tentado a converter-me à teoria da evolução que, verdade, não eliminava nem corrigia os defeitos da natureza humana, não nos atribuiria o estatuto de centro de universo mas apenas de uns seres, entre muitos outros, que tenderiam a adaptar às continuas mudanças do universo com o objetivo de sobreviver.
Nesta fase da (porventura curta) história do universo, o desconhecimento do infinito transforma-se em conforto porque sugere continuidade e sustentabilidade.
Depois de ler a história (do que conhecemos até ao presente) a ideia da criação é assustadora.
Por múltiplas razões.
Por julgarmos que somos o centro do mundo e, portanto, estarmos convencidos de que não temos de nos adaptar às mudanças no espaço cósmico.
Porque o big bang de entrada potencia um big bang de saída.
Ou simplesmente por estarmos entregues a nós próprios.
A não ser…

E se rebobinássemos outra vez a história para aquela parte do Adão e Eva, antes da culpa, do pecado original e da arca de Noé?

Silvia Patrício in Humanário 
(Centro Cultural de Cascais)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

O mundo é (está) plano


(primeiro plano)

A luz é ténue, filtrada pelas pipas de vinho, pelo calor que se escapa da cozinha queimada pelo tempo, pelas portadas de carvalho que rangem a cada raio de Sol que se intromete nas frinchas e no caruncho.
Os velhos arrastam os pratos em nome da tradição e, lá dentro, não se ouvem vozes enquanto os lugares vazios se impacientam com a lentidão dos passos e com a solenidade fúnebre dos empregados de mesa.
A mesma poeira que lhe cobre os rostos, que lhe eriça as barbas e que confere à garrafeira um subjetivismo quase romântico.
Na parede do fundo, uma imagem de Eça lança a incerteza de uma dedicatória irreconhecível sobre o ideário romântico que povoa a sala de jantar.
Longe dos ruídos do exterior como se, ao abrigo da tradição, fosse possível parar o mundo.

(plano intermédio)

No museu do neorrealismo procura-se recordar a história do século vinte à luz dos princípios do realismo socialista, defendendo uma arte útil, dedicada aos problemas reais da sociedade.
À parte dos equívocos que história nos causou, permanece viva a dialética entre forma e conteúdo que povoou as discussões de um século inquieto, rico em pensamento e sangrento na ação.
Na rua Alves Redol, já se dissiparam as poeiras do tempo, mas os visitantes são raros neste mausoléu de modernidade e arquitetura contemporânea, um legado de um novo século de políticos ambiciosos e de eleitores desinteressados.
Aproximamo-nos do rio e da linha férrea, uma espécie de meio-termo entre o romantismo positivista e o neorrealismo, mas os guardiões do templo partilham do bocejo dos que se atrevem a entrar e investem em direção aos portefólios fotográficos de difícil leitura que invadem o local sob o manto protetor da bienal.
Só, no auditório, predisponho-me a observar um qualquer pedaço do mundo que desfila no ecrã da esquerda para a direita.

(um mundo plano)

Visto de um comboio a andar, o mundo parece plano e, numa viagem de vinte minutos com o autor pelos caminhos do Oriente, sinto a visão a turvar perante a vertigem.
Porque a paisagem se atravessa depressa demais sob a nossa vista, porque, desta forma, nunca aceita uma segunda opinião.
Porque mistura visões de grandes angulares com a imprecisão dos grandes planos de vegetação distorcida
“ A exposição está aqui na biblioteca, tem um link, uma fotografia e uma série de livros e de separadores, e de…”
Não alcancei porque, depois de uma acalorada visita aos bastidores da dialética entre a forma e o conteúdo, declarei-me vencido pela última sobre a primeira.
Entre a linha férrea e o rio, entre o jardim e a paisagem vivia toda a cidade de domingo à tarde.
Uma multidão que enfrentava o resfriado pôr-do-sol, que corria atrás das crianças ou para o comboio que vinha de Tomar ou simplesmente corria  e, sem surpresa, reparei que os idiomas são, cada vez mais, tão diferentes quanto as fisionomias
Sem dúvidas sobre o predomínio do conteúdo sobre a forma, mas sem qualquer ambição de fazer renascer o neorrealismo ou qualquer outra forma de arte dedicada aos problemas reais da sociedade.

O comboio apitou com destino ao Oriente e um casal de chineses reencontrou-se sobre a passagem aérea da linha com um longo abraço, esfuziantes e indecifráveis saudações. 


segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Amanhã também é dia


Tomo I - Uma enorme vontade

Um vulto desce a rampa, cambaleante, e descobre-se para o mar sem proteção
Julga-se impune, por estar de costas, apesar dos esforços iniciáticos da municipalidade


Duas jovens parecem adivinhar a anomalia e comentam, sem aspas,
Há gajos que não têm mesmo a noção da cena.
E o rio corre para o mar em trote acelerado


Tomo II - Buraco negro

Embalados pelos espaços abertos, uma assembleia de blusões negros conferenciava sobre os limites de velocidade.


Desfasados da existência de uma força centrífuga que os empurra para o inevitável da mortalidade
Céu ou Inferno?


As sombras que pairam em espaços circulares receiam pelos homens à solta.
Ainda com alguma fé na raça humana.