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domingo, 9 de novembro de 2014

A fuga - 29 anos



Apesar de ser Agosto, estava frio.
N. sentia frio, talvez porque sabia que estava em fuga e, nesta espécie de cidade, fugir, mesmo que fosse uma mera retórica, era sempre um risco.
Às três da manhã, como a qualquer hora, acotovelavam-se os seres apressados que caminhavam em círculos, porque só havia gente naquela grande rua e, de repente, as pessoas desapareciam, depois a humidade dos parques invadia o resto da urbe e, no fim, restava a terra para onde ninguém ia, uma espécie de floresta assombrada por espíritos mortos vivos.
Na gare de luz insuficiente, passavam os comboios que paravam e os que andavam sempre, todos na mesma linha e nos diversos sentidos.
Havia sombras em todos os intervalos de luz, que se alongavam como num pôr-do-sol que se recusa a ceder à noite, porque é importante que o dia continue a rolar, a noite é silêncio e a escuridão torna-nos transparentes.
E os mesmos viajantes que à chegada, sempre carregados de pertences, história e objetos de culto, hesitam sobre que carruagem escolher, apenas um desejo de que, depois de atravessar a noite escura, acordassem em terra firme, com o fresco dos ventos do mar e do norte a aliviar a claustrofobia da cidade dividida.
Vindo das sombras, de leste e do fundo da gare aproxima-se um comboio de cores carregadas, tão diferente dos comboios normais, puro ferro e uma locomotiva que trazia o peso da neve e do gelo, os milhares de quilómetros percorridos na estepe e uma foice vermelha que resplandecia na frente como um farol do mundo.
N. abriu a boca e o expresso de Moscovo passou sem parar com destino a Paris.
Quando finalmente pode partir no seu comboio, refugiou-se no canto mais longe da janela e, rodeado de uma multidão de gente, adormeceu de imediato, procurando recuperar depressa o sonho que estava a viver.

A campainha da porta tocou.
- Sim, conheço as Asas do Desejo de Wim Wenders – A inacessível Cristina, aparecia do outro lado da ombreira de telefone na mão direita, dois bilhetes de um qualquer comboio sem destino impresso, igual ao deslumbramento inicial, sedutora de tão distante, igual aos sonhos destruídos de um poeta inseguro.
- Um anjo não argumenta!
Quatro anos depois! Acaso ou destino? N. não sabia e Cristina não lho explicou.
- Hoje os céus de Berlim estão cheios de asas.
-?
- A partir de hoje sim! O muro está a cair!
E sem que Pedro pudesse ou soubesse argumentar que não devemos provocar o destino, que a verdadeira liberdade é partir, que a conversa do Wenders era apenas retórica existencialista, e que sem muro deixava de haver inacessível, e tudo era …., Cristina, pousou os bilhetes sob os seus olhos e sussurrou-lhe ao ouvido:
 - Carruagem 21! Amanhã de manhã. Partirmos é sinónimo de chegar, como dois sinais menos que se anulam…
- Berlim não é uma cidade de amor e encontros
- A revolução é o laboratório de amores épicos…
-…e impossíveis!
- Não, se o mundo hoje mudar para sempre, estaremos definitivamente ligados como siameses à centralidade…passada e futura!
Incapaz de fugir, de evocar a timidez genética, a solidão criativa, a indecisão perante os maus momentos que inevitavelmente se seguem aos bons, Pedro limitou-se a suspirar:
- As asas do desejo!

A manhã começava a nascer quando N. acordou, abraçado a uma companheira do lado, que falava uma língua incompreensível e parecia tão surpreendida e assustada como ele com aquele enlace, mas ninguém mais no compartimento parecia importar-se ou reparar com o insólito de dois seres a separar-se com brusquidão.
N. saltou do compartimento em fuga, era uma sombra apenas que se agarrava a ele, ou ele a ela?

Cá fora, os transeuntes voltavam a entrar e sair do comboio, o vento norte entrava na carruagem 21 e o Expresso aproximava-se rapidamente do porto de Hamburgo. 

sábado, 8 de novembro de 2014

Baldios, 29 anos

Por mais que se pretenda esquecer, Berlim é o fogo cruzado sobre a sensibilidade de quem detesta sentir-se preso ao transitório, apenas mais uma face do definitivo, temperado de esporádicos complexos de culpa.
Mas, junto àquele gélido muro, a inspiração esvai-se por entre complicados projetos de fuga que se enlaçam nos arames farpados, apenas disfarçados pela arte subterrânea, sinistro doping de sentimentos sem horizonte.
Ali tudo perde a racionalidade suprema do bom europeu intimamente marginal; o inexplicável estende-se pelos longos baldios sem sentido, que se esforçam por alargar os horizontes por cima do muro, de onde o romance desapareceu há muito e apenas as imagens soltas dos postais a preto e branco nos fazem sentir as trovoadas de esperança, sobretudo de desespero e frustração!
E naquela tarde de Agosto, a trovoada e a chuva foram as únicas manifestações possíveis de semelhança entre os dois mundos, separados por alguns metros, suficientes para impedir a reconstrução de ruas bloqueadas a meio, cujas linhas de elétrico comprovam que Berlim já foi Berlim.
Por isso parto e fujo atrás da minha terra, do meu mundo, porque aqui os baldios são tudo o que resta da vontade de acreditar num mundo livre. E nem as violas solitárias à beira do tráfego intenso, músicas das quais apenas ficou a melodia, me fazem esquecer a indiferença mal simulada dos rostos que me rodeiam, sobretudo porque aquela cruz, submersa por muitas outras, me garantia que mais um homem sem rosto ali morrera em Dezembro.
Aqui, todos já deixaram de se sentir ameaçados, de tão ameaçados que estão; é decididamente o princípio do fim de um sonho, inundado de palavras e atos bem aceites, como o ser revolucionário na Europa é incrivelmente vulgar, e cultivar a solidariedade apenas um mito nas mentes de uma terceira vaga esclarecida, confortável entre muros baldios ou apenas numa cabana refúgio montanhoso do Bom Selvagem.
Como diria o poeta, a liberdade não se inventa, descobre-se!







Berlin, Jardim Zoológico, 29 anos

Anoitecia nos subúrbios da cidade, seja ela qual for afinal, porque tinham alertado N. que havia duas cidades, algo que ele entendia, mas tinha dificuldade em verbalizar, em palmilhar em cima de um mapa.
Muros e mais muros outra vez, depois da estepe e, para lá das silhuetas do arame farpado, despontava um clarão de luz branca, que parecia nascido do chão, cada vez mais forte com o aproximar da noite e sempre que atravessava mais uma fronteira, mais uma troca de polícia, mais uma linha truncada, um trocar de olhares, e cães que farejam tudo.
Uma luz que absorvia a escuridão circundante e um destino que deixava N. intrigado: nunca tinha entrado numa cidade pelo Jardim Zoológico.
Mas em Berlim, uma das duas cidades, um novo país depois de atravessar outros, com a mesma língua, mas outro hemisfério, Zoological Gartens é a estação ferroviária do centro de uma das cidades.
Depois do silêncio e da solidão, uma babilónia de gente atordoou N.
Era gente na plataforma que quase trepava pela cobertura de ferro fundido e vidraças de arte nova, e ninguém parecia estar aqui de passagem, gente de latitudes tão contraditórias, embrulhos e bagagens que se abraçavam à multidão que se movia sempre muito apressada, mas como formigas num quintal, afinal de contas porque é têm tanta pressa se o quintal é pequeno e os muros são altos?
E logo entendeu que não havia regras conhecidas neste epicentro de sensibilidades exacerbadas.
Refugiados que pela latitude e cor da pele era pressuposto serem hóspedes da outra cidade, atapetavam os subterrâneos desta cidade, como uma sala de espera de quem, vindo de tão longe, se equivocou na fronteira.
E quando ainda se procurava libertar destes equívocos, N. foi projetado para a rua, que o recebeu com um frenesim que não tinha nação, tal era a confusão de sons que a língua resultante, já não era alemão.
Afinal tinham construído três cidades e N. perdia de vez a perceção de tempo e espaço.
No chuveiro do Hotel Flórida, um longo corredor de chão amarelo brilhante , de portas de castanho fechadas e uma fila de chuveiros comuns, com torneiras de um metal envelhecido que lembravam que já tinha havido uma só cidade, N. lavava-se cuidadosamente deste banho de multidão e procurava acertar o passo com esta multidão tão furiosa.
Da janela do quarto, lençóis encardidos, cortina de renda amarelada e uma cadeira encarnada sem braços, espraiava-se um mar de luzes e néon.

Na Ku’ Dam, fosse dia ou fosse noite, havia três quilómetros e meio de mundo que se atropelava, sabe-se lá para onde eles iam, num quintal tão pequeno, com muros tão altos.


Berlin Express, 29 anos

N. soprou uma baforada de fumo reciclado pelo pulmão com uma força de rajada, janela fora.
Se era aqui que se estendia a cortina, então o fumo voltaria para trás.
Mas não! Voou por cima do arame farpado e extinguiu-se para lá da fronteira de ferro ferrugento.
Apesar de ser Verão, N. só vislumbrava planície cinzenta, onde devia haver campos castanhos em pousio, porque a fronteira não é povoada por agricultores ou outros seres sedentários
Então era ali, o lugar
A imagem de um corredor desolado trespassava da estreita linha que apontava a leste, lá fora da janela entreaberta, para dentro da composição, um corredor vazio, cercado de cores amareladas pelo tempo, compartimentos fechados, gente de rostos fechados.
Um polícia, uma carruagem, uma placa numa plataforma de cidade insignificante, que nunca teria acesso a algum mapa, não fosse a fronteira.
Helmsted.
E N. sentiu um arrepio, porque aquela placa de letras negras sobre um fundo branco, naquela língua e com uma caligrafia tão bem definida, quando o destino é leste, é símbolo de diabo.
N. lançou a beata para a linha, porque descobrira que o esforço de emitir sinais de fumo para o horizonte era insano. Não havia ninguém que lhe respondesse nesta, ou noutra linguagem qualquer.
Olhando para baixo, era evidente que milhares doutros tinham desistido antes dele, por tédio da longa espera ou por falta de incentivo. A linha estava pejada de beatas, conclusão óbvia de que este lugar não era a fachada da frente, para ninguém.
Mas a beata de N. incendiou os guardas, porque devia ser diferente, ninguém se pode atrever a querer fundir o ferro, a desprezar este espaço de não terra, a sinalizar uma presença, a enrolar um cigarro, tudo muito suspeito vindo de um jovem sujo, barbudo e de cabelo desgrenhado.
Solene, enfadonho e infame
N. enfiou-se no seu assento, rodeado de alemães incomodados, circunspectos e de cara fechada, e desistiu de ser irreverente.
Afinal de contas, o comboio já estava a andar e o destino, em 1985, era DDR.

E N. nem reparou que, à medida que penetrava nas profundezas do corredor, os campos tornavam-se castanhos – imaginação dele que a leste só havia estepe – e que as centenas de pequeninos pioneiros bordejavam as passagens de nível, e que havia carroças e tratores, tudo muito desfocado pela velocidade deste comboio sem paragens até Berlim.


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Maria Luísa


Maria Luísa, o parque está silencioso porque é noite profunda, e a Maria Luísa, a égua que puxa a carroça não relincha, apenas obedece a trote às instruções do andaluz e desdentado comandante, que não troca os locais históricos e nos recorda que a égua nos agradeceria o nosso reconhecimento.
O som martelado dos cascos na pedra é fantasmagórico, e dá uma vida imaginária às sombras, ao recanto do romântico, ao do poeta, do soldado, tudo isto a Maria Luísa abarca.


E no território da Expo de 1929, há lembranças de Portugal, vestígios da epopeia ibérica, conquistas mais do que descobrimentos.
Em Sevilha à meia-noite, só mesmo a Praça de Espanha dorme!