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segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #5 - Última dinastia

 


Chegámos a Hue, no comboio da manhã, à última cidade imperial, a definitiva fronteira entre a teoria do dominó e a internacional revolucionária, mas também uma fronteira muito mais antiga entre as dinastias do norte e do sul do Vietname 
Tudo isto muito antes do franceses se intrometerem neste mundo de climas fortes e terras pantanosas e alagadiças. 
Mas respira-se a efémero no universo dinástico de Hue.
Eventualmente todas as causas resultaram da consequência de ser a última dinastia, que mesmo assim se prolongou por cerca de 150 anos.
Um imperador com mais de cem mulheres, mas infértil, uma dinastia que não sobrevivia sem as suas concubinas em pleno século vinte, outros imperadores fascinados por tudo o que representa esse esplendor europeu, imperadores que pareciam ter como principal razão de vida construir um mausoléu que os tornasse memoráveis e imortalizasse a sua fama, mesmo que pouco mais houvesse a acrescentar, a não ser uma submissão a todos os fortes que lhes brandem as armas e uma falta de compaixão pelo povo que governavam 
Uma dinastia feudal no século dezanove é uma dinastia fraca, muito permeável a movimentos revolucionários, a história assim o comprova 
Por isso em Hue vive-se o charme da decadência como se a cidade tivesse parado no tempo para nos poder melhor ilustrar como a dinastia Nguyen Ha muito se alheara dos princípios filosóficos de vida de Confúcio. 
Uma cidade museu que vive feliz com este estatuto dentro da sua magnífica, mas em reparação, cidadela, fora de portas junto aos contornos do rio nas escadarias que conduziram os últimos imperadores para o céu e para dentro das suas Stupas. 
Uma cidade que respira mais lento que as outras urbes do país, no mercado dos peixes vivos e de gente feliz, na pasteleira francesa, uma cooperativa de ensino de novos pasteleiros, um projeto social de elevada pegada ou no espaço de liberdade absoluta no restaurante Lac Thien onde se abrem simultaneamente sete garrafas de cerveja e onde te dão um marcador preto para que tu resolvas a tua equação de. vida nas paredes de azulejo, após um opíparo jantar de especialidades do Vietname.


domingo, 28 de janeiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #4 - Pagode do único pilar


 Os símbolos de um estado presente são engolidos pela anarquia do espaço limitado e pela necessidade de viver. 
É assim no bairro antigo, o bairro das trinta e seis ruas, das mais do que trinta e seis ofícios, um ofício uma rua, uma rua um ofício. 
É assim na única perturbação da normalidade que é a linha de comboio que atravessa a cidade, sem que as pessoas se tenham mudado porque elas já lá viviam, antes de haver comboio.
( Hoje, no centro do corredor da morte, que é uma linha de comboio que atravessa a vida das pessoas, como se fosse uma rua sem passeio, deparamo-nos com os únicos sinais de autoridade em ação, polícias que vedavam o acesso ao local porque os turistas e os seus smartphones e os filmes no tik-tok e as mensagens no Instagram tinham destruído o ecossistema que anteriormente existia entre os comboios e os habitantes locais, em que cada um sabia perfeitamente quais eram os seus horários e prioridades. Por isso, o estado presente aqui, não conta)
É assim no resto da cidade.
As estrelas amarelas sobre fundo vermelho cintilam em todos os quarteirões da cidade nova, como os pórticos civilizacionais da nova ordem, mas o quotidiano é sobretudo movimento que absorve as cores e abre os poros da cidade que libertam as pessoas das mensagens de contexto difuso. 
Mas em redor do museu Ho Chi Min, a ordem é, finalmente, restaurada, soldados fardados com bonés desproporcionados, movimentos bruscos e um autoritarismo que se exerce sem hesitações em frente ao scanner porque, apesar de morto, não são toleradas ameaças ao chefe da nação e os miúdos da escola, que não partilham de qualquer teoria do isolacionismo, e nos acenam com a vontade de um direito exercido, que são cuidadosamente perfilados na escadaria frontal do museu, também ele construtivista e brutalista, porque os miúdos são os filhos da nação e não lhes é permitido esquecer. 
Mas parece me que os futuros filhos na nação vão entender melhor o pai na visão pop star que emana das galerias de arte contemporânea do que da inspiração dos guardas bolorentos do regime e dos diligentes mestres de escola. 
Independentemente da visão redundante dos olhares fardados e da lógica inquisitiva do olhar dos derradeiros guardiões do museu
No templo de um pilar, junto ao museu da vida e da histórias do grande líder, o buda estende os seus sete braços, procurando a quase perfeição no lugar que o rodeia, a eterna memória do pai da nação. 
Também o Buda aceitará certamente que a memória coletiva é importante e todos os países têm direito a sobreviver a um inimigo comum. 
Também o Buda aceitará sem reservas a fusão entre o religioso e o pagão, entre uma filosofia de vida e uma religião, entre o culto solene e as oferendas mundanas aos antepassados, entre o Confúcio e uma nova ordem moral
Lá fora, a urbe engole toda a retórica, na mesma caixa em que queima notas de mil duangs em honra aos antepassados, nas bermas dos passeios, cuidadosamente acomodadas entre os passos dos transeuntes e a insanidade da vida na cidade. 
Suja, desleixada e caótica, mas nunca miserável.





WAY TO INDOCHINA #3 - Chuva em telhados de zinco

 


A cidade moderna mantém-se conservadora entre quarteirões de traça colonial e blocos de construtivismo socialista, uma modernidade que resiste ao império de vidro e dos céus que povoa o imaginário e as ambições das grandes metrópoles asiáticas.

Fora dos limites da cidade velha, as avenidas são largas, desenhadas a esquadro e régua, não identificamos de imediato um estilo ou uma época, poderia ter começado com os franceses, ou com o que sobrou das bombas e da humilhação dos franceses, ou mais tarde, resultado da construtivista amizade vietnamita- soviética. De todos eles, mais do que provável.

As alianças ou o exercício de poder esculpiram a fisionomia das cidades, sobretudo daquelas que a história se encarregou de destruir metódica e persistentemente, apagando definitivamente as suas origens. Especialmente por isso, não há muitos edifícios antigos em Hanói e a história conta-se através das poucas reconstituições, mas especialmente do apelo às memórias recentes em que nem sempre a forma corresponde ao conteúdo, abraços ao camarada Fidel nos jardins da embaixada de Cuba, uma magnífica mansão, herança dos colonialistas franceses, a fábrica do café e dos chocolates, interiores revestidos de cheiros e sabores adocicados e um invólucro de arquitetura brutalista que partilha o entroncamento com o edifício do Comité Central, em cores de um amarelo de República Popular, mas sem dúvida mais um vestígio arquitetónico da colonial França.
 No Templo da Literatura, provavelmente o único pedaço de história antiga de Hanói, em que o involucro corresponde ao conteúdo, respiramos uma pausa na vida frenética das ruas nos jardins que guardam a memória dos discípulos de Confúcio, mas dificilmente reconheceríamos neste local de culto e meditação a primeira universidade do Vietname, não fossem as estabulas protegidas nos alpendres forrados de uma madeira recente que nos garantiam ser o reconhecimento académico do quadro de honra dos alunos que a frequentaram durante quase oito séculos.
E enquanto vagueávamos ao longo dos três pátios do templo, universidade, filosofia e retiro, tomávamos uma consciência súbita que essa incapacidade de compartimentar a educação, a fé, a religião e os princípios de uma filosofia de vida nos iria acompanhar ao longo do nosso processo de aculturação do Vietname, primeiro estranho, quase irracional mesmo, porque afinal de contas o ocidente é laico, e tendemos a guardar a religião longe dos olhos académicos, depois afinal porque não rezar aos princípios e filosofia de vida de Confúcio, baseados no respeito por um conjunto de valores universais, afinal porque não deixar oferendas aos antepassados, objetos quotidianos que lhes agradariam enquanto vivos, como fruta, bebidas ou cigarros, a única forma possível de materializar um respeito e um amor humano, ou queimando notas de mil duangs em pequenas travessas de metal, um fumo espesso que liberta os espíritos antepassados e revela desprendimento material.
Mas o Templo é, antes de mais, um símbolo da independência do Vietname da tutela chinesa, no século nove, construído em 1070 por ordem de Lý Thánh Tông, o oitavo imperador vietnamita, com a ambição de construir um país a partir do conhecimento e do ensinamento dos princípios Confucianos de vida, uma universidade que formou os futuros imperadores, mas também os funcionários do reino, ao que consta, recrutados em todas as classes sociais, baseados exclusivamente na capacidade e no mérito.
Tão imbuídos estávamos neste súbito regresso ao passado longínquo, retiro da cidade frenética, um convite à cuidadosa revisão dos nossos princípios de vida à luz de Confúcio que mal reparámos nos cartazes cuidadosamente desenhados por cima dos urinóis das casas de banho do templo, onde o paternalismo do grande irmão nos ensinava como urinar de forma adequada neste local tão laico quanto democrático.
E, em Hanói, ninguém duvida da independência e do espírito revolucionário dos seus habitantes, o culto a Ho Chi Min nas fachadas do edifícios públicos, a abençoar as crianças na escola, os frágeis e os doentes, a vida vivida ao longo dos passeios e na berma das estradas, uma azáfama demasiado extrovertida e sem a distância social recomendada pelos espíritos cartesianos, uma realidade que tende a empurrar os turistas ocidentais para os terraços, de onde se pode dialogar com a cidade, mas a uma distância segura, longe dos becos sem saída em que frequentemente se transformam os passeios abertos onde tropeçamos em mesas e cadeiras de miniatura que servem cerveja artesanal ou café de ovos, ou bancas que expõem as vísceras da diversidade alimentar do Vietname.
Sim, ninguém duvida que os vietnamitas se libertaram do jugo colonial, ganharam a guerra ao Satã americano, que os traiu no pós-guerra, e tornaram-se amigos dos maiores experimentadores da revolução bolchevique, quando a opção era manter as distâncias do seu ódio de estimação (e da história), também comunista, mas, acima de tudo, chinês.
Mas apesar dos sinais, e das amizades celebradas pelo regime nas fachadas e na retórica, Hanói respira uma mestiçagem que procura congelar o momento, como se a atmosfera tivesse sido criada em laboratório, ao longo de décadas de investigação.
São as galerias de arte que, entre novas formas e cores, transformam o grande líder em ícone pop, é a cultura do café que invade todas as esquinas em espaços que se abrem para a rua como templos pagãos de cheiros intensos e fumos espessos, mas é sobretudo o ambiente errante, vagabundo, caminhante e observador que deambula pelas ruas da cidade.
Com condescendência, uma tolerância quase indolente, incompreensível na linguagem, universal no sorriso de quem absorveu os antigos colonizadores e os aperfeiçoou.
“Flaneur” é a palavra que melhor define o quotidiano da urbe, sem dúvida asiática, mas absolutamente distintiva de toda a Indochina, viríamos nós a perceber mais tarde, e suspeito, não repetível no continente.
No final da tarde, quando regressávamos do passado, misturámo-nos com a multidão que recolhia as crianças nas escolas e enchia as ruas no último fôlego do dia, apagavam-se os fornos e as fogueiras, recolhiam-se as bancas e as mobílias, a noite cai súbita nos trópicos e confirma-se a suspeita de que, em Hanói, se respira alma velha.
Adormecemos sem respeito pelo jet lag, convencidos em incorporar a meditação nas nossas rotinas, a única forma de apagar os ruídos da cidade acordada.
E sonhámos muito, com os movimentos repetidos e monótonos do espetáculo de marionetas aquáticas, uma música metálica que salpicava o palco e incomodava a meditação de Buda, mas sobretudo com os ruídos dos trópicos, as ventoinhas a cortar o ar quente e a chuva que cai apressada nos telhados de zinco que espreitavam para o nosso sono agitado de um recém-chegado ao outro lado do mundo.

Não há formas melhores nem piores de regressar ao presente.


segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #2 - Bún Chà Hu´o`ng Liên para a paz

 


“O progresso não é linear e, em cada momento, haverá sempre locais onde as coisas estarão terríveis, mas sim, acredito que as coisas vão correr bem no futuro”
No centro da cidade moderna, não muito longe do bairro francês, a experiência gastronómica no Bún Chà Hu´o`ng Liên, não foi especialmente inesquecível, o Bún Chà, um caldo de peixe onde carne de porco grelhada jaz afundada entre noodles, vegetais e outros sabores intensos e uma persistente gordura não se deixam vencer pela cerveja de Hanói.
Mas partilhar o restaurante com a vontade de Obama, de cerveja na garrafa e de paus na mão que pescavam os noodles do caldo, de fazer as pazes com os seus inimigos, marcou a nossa memória futura, muito mais a lembrança das fotografias do presidente, a única referência humana nas enormes paredes de azulejo branco de cantina, um espelho da frugalidade socialista ou do verdadeiramente essencial, a comida, até a visita de Obama.
Para além da promoção gratuita do maior influenciador possível (um influencer que não dança no TikTok em vestes reduzidas ou outras histórias) para a família proprietária desta cadeia de restaurantes de Hanói, especializada em caldo de carne de porco assada - para simplificar - almoçar na mesa do Obama ( ou no mesmo andar de Obama, porque o restaurante é composto por seis salas em seis andares diferentes), provavelmente o último dos estadistas, numa das suas últimas viagens de estado em que reconhece sem pudores que provavelmente nenhuma divergência ideológica profunda justifica uma guerra, napalm, milhares de mortos um país destruído e uma geração de traumas e, sem subterfúgios. que não assistia qualquer razão a eles para considerar os vietnamitas seus inimigos.
Longe dos palácios oficiais do mesmo regime que combateu, o príncipe americano encontrou a melhor forma de pedir desculpa pelos excessos de imperialismo, diretamente ao povo, sem os intermediários do partido.
Na esquina oposta ao Bún Chà de Obama, Ho Chi Min desenhado na parede do prédio afaga a cabeça de uma criança e aprova condescendente a manifestação de afeto do novo amigo americano, a sua origem afro americana também ajuda à compreensão do grande líder, que desde sessenta e nove paira no imaginário ressuscitado do povo vietnamita. O primeiro grande herói americano da Indochina, é preciso não esquecer que ambos tinham um inimigo comum assumido, os japoneses, e outro menos assumido pelos americanos, os franceses.
No Bún Chà Hu´o`ng Liên, e olhando para as memórias de parede, entendi que o tempo é o maior elixir da paz.
Senti a falta de um amigo americano como este, internacional, defensor de um passaporte para cada americano para que eles percebam que o ser humano anseia basicamente pelas mesmas coisas, em todo o mundo.
E no fim do almoço, pagámos na caixa, à porta da rua, sem talão nem necessidade de tradução.


WAY TO INDOCHINA #1 - A Espada Mágica

 


Conta a lenda que o Céu enviou ao imperador Le Loi uma espada mágica que ele usou para expulsar os chineses do Vietname.
No século quinze.
Depois da guerra, uma gigante tartaruga dourada agarrou na espada e desapareceu nas profundezas para devolver a espada aos divinos donos.
Ao longo das margens do lago da espada recuperada não há vestígios nem da lenda nem da revolta contra os chineses, porque afinal de contas deixou de haver opções para os regimes de partido único, mas de forte apetência pelo capital.
Não há vestígios da espada mágica na manhã precoce, mas os relvados que bordejam a água estão repletos de tartarugas ninjas, uma terceira idade que se agita em grupo antes do sol nascer.
Há um sentimento de urgência no ar abafado dos trópicos, mas, antes que a cidade acorde, sentimos Confúcio a pairar sobre Hoan Kiem.
E a ideia de que um funcionário do grande reino do meio, criou uma extensa lista de princípios de vida de uma forma tão metódica, como só um zeloso funcionário que privilegia a filosofia dos homens à fé nos deuses, poderia fazer, é-nos particularmente sedutora.
Enquanto eles meditam para recuperar as forças e enfrentar o grande dragão da realidade na metrópole, nós procuramos sistematizar e elencar os princípios do príncipe laico, chamado Confúcio.
Mas, subitamente a cidade acorda e o tráfego entope a nossa mobilidade, hesitamos sobre qual o melhor ângulo para enfrentar um rio de gente motorizada que escorre pelas avenidas em dia de chuvas de monção, apesar de estarmos na estação seca, mas a mobilidade deles revela uma notável capacidade de meditação do povo de Hanói, porque meditar é não pensar sobre o que os tolhe, o tempo suficiente para realizar as tarefas essenciais à sobrevivência na grande urbe e lidar, de forma infalível, com a nossa insegurança, primeiro receio, depois incapacidade e finalmente uma confiança de que, traçando uma diagonal tranquila, sem sobressaltos nem sustos, os habitantes motorizados da cidade nos manterão vivos e seguros, na travessia de uma entre as trinta e seis ruas do bairro, pelo menos. Sem interromperem o significado das suas vidas, nos mercados de rua, nas lojas especializadas, à beira do passeio ou no meio da rua, onde comer caracóis do mar é tão natural como vender roupas, quinquilharia diversa ou elogios fúnebres gravados em placas reluzentes, que vão iluminar as memórias dos ausentes, porque a honra aos antepassados convive muito bem com a realidade do povo vietnamita.
Sem que lhes seja necessário alterar o sentido da sua vida, Hanói acolhe-nos no seu seio, sem manifestações efusivas, desnecessárias porque distraem, mas apenas com um imperceptível acenar de cabeça, dentro do capacete e por detrás do lenço que lhes cobre a boca, porque se não cobrisse, juro que poderíamos ter surpreendido um discreto sorriso nos milhões de lábios que se atravessavam na nossa frente ou nos contornavam com uma confiança sem altivez de que nós, estrangeiros, não os iriamos desiludir.
Atravessámos por isso, sem medo, a Cầu Long Biên, em sentido contrário ao que seria esperado o trânsito circular na ponte do Eiffel, como se o socialismo tivesse trocado o sentido do trânsito na arquitetura do francês, para que nenhum símbolo do colonialismo pudesse permanecer imutável.
Mas afinal de contas, apenas trocaram o sentido do trânsito na ponte do Eiffel para evitar entroncamentos desnecessários e reduzir os acidentes, não há diferenças conceptuais, apenas uma adaptação prática aos novos tempos, não é apenas o regime que muda, mas aparentemente também a vida das pessoas.