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terça-feira, 27 de novembro de 2018

Art Play





Os subúrbios de Moscovo estão para lá dos anéis dourados da cidade e, por aqui, não existem lobbies onde a corpulência da segurança é proporcional à opulência dos lugares
As avenidas permanecem largas, afinal são as mesmas, mas esta nova amplitude lamenta-se com a solidão dos passos apressados, dos pavimentos desleixados e dos prédios pouco cuidados que desfilam em mais de sessenta anos de construção em massa e de migrações inesperadas.
Alguns lançam-nos olhares desconfiados, mas poucos, a maior parte dos transeuntes apenas tratam da sua própria vida, há mais gente que circula de cabeça baixa e olhos pregados no chão.
Longe do anel dourado.
Como em todos os subúrbios, afinal de contas, em torno das nove estações de comboio da capital, todas elas com os nomes soviéticos dos seus principais destinos finais, muito tempo depois de terem derrubado estes símbolos da nomenclatura geográfica oficial.
Nos bairros para lá dos anéis há os procuram ascender na pirâmide da ambição e há os que se seguram à cidade e ao que resta das suas memórias.
São estes lugares que constituem o purgatório das cidades imensas.
Mas em Moscovo a proporção sofre de uma intensidade que é refém da história recente, em que a capital foi o refúgio menos do que provável de uma imensidão de povos, de deslocados de expatriados, antigos irmãos, depois inimigos.
Nos arrabaldes das linhas de comboio, alternam as visões entre a anarquia pós-império (sem que alguém tivesse distribuído previamente qualquer manual de instruções) e as reminiscências operárias de uma vaga de deslocados da ruralidade russa.


E, escondidos entre as traseiras de uma indústria extinta, nasce a Moscovo pós-industrial, em ilhas de um novo capitalismo exuberante e sem pudor, imersas nas carcaças velhas dos antigos armazéns revestidas de cores, cheiros e sons diferentes.
As antecâmaras dos túneis outrora sombrios, povoam-se de uma nova geração sem memória, que se move com a agilidade felina, roupas justas e de cores escuras onde a arte, a estética e o negócio, chegam de elétrico rápido e não trocam saudações com a vizinhança
O terceiro pilar da nova autocracia russa tem um novo olhar sedutor e uma convicção inabalável no destino.
A loura do Porsche Cayenne que sai velozmente do túnel obscurecido pela fuligem e pelo tempo é a prova de que restaram sobreviventes da lei seca e do processo de construção do capitalismo de fim de século.










domingo, 25 de novembro de 2018

Diálogos do século




A vida intelectual da Rússia de Nicolau I era condicionada na sua expressão pública por uma censura estatal dura, ainda que flexível.

Um conceito tão russo quão presente, reflexo das suas vocações orientalistas, uma forma estranha de lidar com a ambiguidade, pelo menos para os visitantes estrangeiros que descreviam a Rússia de Nicolau como um período noturno de repressão
Para a grande nação continental, esta foi uma época dourada nas letras russas em que a alta cultura russa se libertou da anterior imitação das artes ocidentais e produziram obras que alteraram os contornos da cultura mundial.
Nos romances e poemas de Puchkine apareceu o “homem supérfluo” o herói transformado em anti-herói, nas obras de Gogol ressaltaram as sátiras mordazes sobre as deficiências humanas do seu próprio tempo, personagens fantásticas e reviravoltas de enredos que anteciparam os escritos pós-modernos da nossa época, escritores que apresentaram, pela primeira vez, os servos enquanto personagens totalmente humanas.
E apesar das disputas entre os defensores do passado e do futuro, cujas únicos pontos comuns eram a oposição ao presente russo e o apoio à abolição da servidão, a maioria dos russos instruídos concordavam com a necessidade de censura e tinham orgulho em saber que a Rússia era a maior potência terrestre do mundo.
E, apesar de desconcertante aos olhos de um visitante ocidental, é fascinante ver a história pintada com os olhos da originalidade russa, aquela que se revelou na sua versão mais épica sempre que surgiu como reação a longos períodos de fascínio pelo esplendor ocidental.
Uma herança que povoou as memórias / tragédias do século vinte, uma sequência de pinceladas que confronta os exilados e as suas influências ocidentais temperadas pela nostalgia das estepes geladas e os que ficaram e conviveram com a história da maneira que quiserem ou puderam.
Visual, muito visual, como conhecer Lenine sem descontextualizar o conceito de guerra total, como reconstruir um regime através de símbolos, mas sobretudo retratos pungentes da vida quotidiana de um povo que insiste um sobreviver à imensidão do seu espaço exterior e, nas últimas salas, os retratos instrospetivos dos sentimentos de perda e desilusão e o desmoronamento da simbologia do século passado.
O novo Tretaykov revela-nos múltiplas visões da essência da história e de um povo, com tanta nitidez que custa a crer que, neste país, os instruídos professam, por defeito, o culto da censura.
Censura dura, mas flexível
Só os russos entendem, mas o resultado é épico, estes diálogos do século podem ser mesmo empolgantes















segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Glasnost





Glasnost não é uma expressão nova, na vida russa.

Publicidade, ou seja, com a participação da sociedade no planeamento e na execução da reforma.

É uma expressão tão voluntariosa quanto incapaz de impor uma vontade, original dos governantes dos séculos dezoito e dezanove que exigiam reformas profundas e ansiavam em impor a sua visão (ou uma visão inspirada na cultura europeia) mas eram incapazes de construir, financiar e dotar de meios o Estado para que ele se transformasse num instrumento de governo.
Glasnost é, pois, apenas uma ideologia tentativa, um estado de espírito de consequências imprevisíveis.
Na segunda metade do século dezanove, um terramoto com réplicas centenárias.
Mas a margem sul do rio moscovo respira um espírito de promessa,  como um fantasma que se revela em cada nuvem que se dissipa.
Atravessam-se as pontes e afastamo-nos do núcleo duro dos símbolos do poder central, das medidas de segurança e dos símbolos do turismo organizado em torno dos mitos do domínio imperial.
“I follow the Moskva down to Gorky Park”
Espaços amplos, locais que convidam ao diálogo e ao intercâmbio de ideias, não fosse uma manifestação de tolerância a plantação do parque das estátuas de um passado não reconhecido, bem no centro do jardim, com a bênção de Pedro e como uma extensão exterior ao novo Treytkov onde todo o século vinte da Rússia dos quatro momentos, insiste em confrontar as linhas austeras da sua arquitetura, com retalhos da vida de uma nação.
Reconhecendo que o tempo retira toda a urgência e quase toda a carga ideológica às noções de vanguarda e que, o que mantém a intemporalidade, é apenas arte. 
“Listening to the wind of change”
E, quando espreitamos pela janela, reconhecemos no desfilar pelos quatro momentos da história da Rússia, no sonho desvanecido de um estado moderno governado por czares, no exílio dos brancos nas metrópoles ocidentais, na vanguarda vermelha e no retorno às emoções do final do século, as crianças que jogam à bola por entre os personagens que moldaram o seu passado
 “Where the children of tomorrow dream away” 


E existe uma harmonia que engrandece Pedro, o navegador, do alto da sua armada, dominando o rio Moscovo como se fosse um mar, do alto dos seus noventa e oito metros, uma alegoria à sua estatura e ao seu cognome, o parque das estátuas perdidas, uma espécie de jardim momento que relativiza a importância passada
Independente da dominância de uma arquitetura austera 

I follow the Moskva, down to Gorky Park
Listening to the wind of change
An August summer night
Soldiers passing by
Listening to the wind of change

E nem o arco da vitória, que a todo o momento nos parece querer recordar que a história deste país nunca se fará de lugares comuns, consegue esconder os reflexos de uma simplicidade urbana que se vivia no fim da tarde do imenso verde chamado Gorki, repleto de pessoas comuns, movimentos e conversas numa língua que já nem nos parecia incompreensível, afinal de contas deslizar sobre patins é uma linguagem universal  


Walking down the street
Distant memories
Are buried in the past forever
The world is closing in
Did you ever think
That we could be so close, like brothers
The future's in the air
I can feel it everywhere

E quando o Sol se pôs sobre o lago, os sons da glasnost já não eram um fantasma, uma nova promessa de contornos épicos e resultados incertos, mas apenas uma promessa de normalidade contida

The wind of change
Blows straight into the face of time
Like a storm wind that will ring the freedom bell
For peace of mind
Let your balalaika sing
What my guitar wants to say

Glasnost, 
O que mudou desde o fim de século, não foi o sentido dos ventos de mudança, como uma ideologia tentativa.
Glasnost,  
O que mudou desde o fim de século foi mesmo a negação dos estados de espírito de consequências imprevisíveis.
Acho que nem os Escorpiões adivinhavam que, no princípio da noite do século vinte e um, nas sombras do parque Gorki, os transeuntes não marchariam a favor de um futuro no ar ou dos tempos de mudança, e que os restaurantes do parque manteriam o charme rural do imaginário da velha Rússia, e que as lanternas que crepitavam no seu anterior preferiam uma luz mortiça, quiçá romântica,  a uma promessa de fogo eterno.
Ou um par de cervejas russas e geladas, tagareladas entre meias doses de batatas fritas e uma banda experimental que tocava jazz ao fundo das escadas e que expandia o seu espaço exíguo na fluidez das imagens de fundo, que os ligavam ao mundo e às pequenas janelas que refletiam os passos de uma cidade.
No bairro medieval de Moscovo, apenas umas centenas de metros a sul da Lubianka

Afinal alguma coisa mudou nos ventos do tempo