Pesquisar neste blogue

sábado, 21 de março de 2020

SILK ROAD #17 - Samarcanda




“Deixemos que ele, que dúvida do nosso poder, olhe para os nossos edifícios.”
E nós olhámos, sem dúvidas do poder de Timur, para os troféus das suas conquistas, construídos pelos melhores artistas e artífices de todo o seu Império, de Damasco a Deli. 
Um homem sem empatias especiais que era iletrado, mas protegia os homens cultos, os cientistas e os artistas, mas destruía as cidades que lhe resistiam e empilhava os mortos ao lado dos destroços das maravilhas da arquitetura dos seus inimigos.
A recriação romântica do mito de Timur tem como figura principal a esposa a quem dedicou a Bibi Khanum Mosque, construída num tempo recorde de cinco anos, com recurso intensivo a elefantes e escravos vindos das primeiras conquistas da Índia. 
O grande senhor da guerra e do mundo que se estendia de damasco até à índia escolhia a mulher que amava, filha de um rei mongol por si derrotado, como a primeira entre todas as outras, apesar de não lhe ter dado filhos e a quem entregou o cuidado de todos os filhos das suas outras mulheres. 
E, em Samarcanda, perante as suas criações e imbuídos por uma versão orientalista da história, tornamo-nos menos exigente relativamente ao novo fundador da pátria porque olhando para as fachadas da monumentalidade Timur, ganhamos um novo discernimento, aquele que relativiza as barbaridades com o tempo e com as condicionantes de uma época longínqua, até porque o homem falava fluentemente  duas línguas e era um fanático jogador de xadrez.
E, apesar das suas origens longínquas, Samarcanda já não é a cidade dos Sogdianos, de Alexandre o Grande nem de Marco Polo, enterrada nas ruínas do Nordeste da cidade atual.
Samarcanda é hoje, de facto, a cidade de Timur, feita renascer pelo fascínio soviético pela arquitetura do esplendor, sem qualquer intenção de exaltar os feitos deste Muçulmano com descendências turcas e mongóis, sujeito que desprezavam porque lhes fazia recordar os mongóis, mal adivinhavam eles que estavam a reconstruir o legado de um dos futuros fragmentos do império, e o mito que iria substituir o camarada Lenine nos pedestais das praças da nova utopia Uzbeque.
Bastaram cinco horas de viagem pelas estradas do Uzbequistão para regressarmos aos tempos de esplendor da Rota da Seda, cinco horas de uma alucinação provocada pela inexistência de amortecedores que duplicavam a velocidade aparente, os acidentes nas bermas da estrada, os postos de abastecimento a cheirar a gás, o tipo a ser algemado no capot de um Lada novinho em folha, atalhos para fugir a atalhos e obras, uma anarquia vivida no esplendor do asfalto, sempre na dúvida se estas eram as reminiscências nómadas do povo Uzbeque ou antes a desorientação natural de quem procura o sentido para uma nova nação.
A estrada para Samarcanda era a única forma de entrarmos na máquina do tempo em modo acelerado e recuperar o exotismo ao pôr do sol projetado no Rajastão, que chegou a confundir-se com o alívio de chegar, afinal de contas não é possível experimentar a emoção das caravanas de cavalos e camelos carregados de mercadoria e ambições, em direção a oeste, a bordo da cabine climatizada de um comboio moderno.
P tinha razão, a chegada foi quase eufórica, enquanto a temperatura abrandava ao mesmo ritmo dos baldes de cerveja e das espetadas de borrego, as fontes de água intrometiam-se entre os brindes e o espetáculo de luzes que fustigava as paredes das madraças, dos mausoléus e das mesquitas.
E, pela primeira vez em semanas, sentimo-nos turistas e usurpadores de memórias.
Sem remorsos, sequer! 
A luz do dia revelou-nos o contraste do azul do céu na infinidade de tons de dourado e uma lassidão própria dos lugares de culto, sem excessos de fé, uma romaria de gente de vestes coloridas e sorrisos dourados das famílias numerosas que visitavam com critério e com uma alegria cerimoniosa a mesquita de Bibi, o bazar de Siab, a avenida dos mausoléus da aristocracia Timurida e o mausoléu de Bibi.
Não como autos de fé, mas apenas como cultos de personalidade, de homenagem ao improvável herói da modernidade uzbeque 
Na avenida monumental não havia sessões de culto, homens prostrados a Meca, mesquitas interditas, circulava apenas uma enorme comunidade de povos do mundo, recebidos de forma amistosa pelos locais que partilhavam as calçadas e mostravam os dentes de ouro em fotografias de grupo, numa república em que as mulheres não se escondem por detrás de véus e, dentro da cor das suas vestes, revelam-se as protagonistas do seu destino, e dos homens que as seguem.
E, inebriados pelos contrastes de cores, vamos imergindo nas lendas que se sobrepõem às provas do poder efémero, a do mausoléu individual dedicado ao amor de Timur por Bibi, envenenada pela nora, três anos após a morte do conquistador do mundo ou a do roubo pelos persas do túmulo de Timur,  transformado em mau olhado ao filho do imperador, a atabalhoada devolução da pedra que se partiu em dois no caminho, e as melhoras do filho depois de desfeita a maldição.
Ou a abertura do túmulo pelos soviéticos que descobriram, nos ossos, os efeitos das lutas entre bandidos que precederam a sua conquista de fama e de proveito e a crença, qual faraó egípcio, de que a usurpação do seu túmulo teria sempre consequências para quem se atrevesse, uma maldição inscrita na pedra e que precedeu a invasão alemã da Rússia.
Uma maldição que os séculos não desfizeram e que parecem confirmar a sua profecia de que o mundo é demasiado pequeno para mais de que um Rei.
Depois da visita a Gur-i-Mir, não havia mais histórias a contar, porque depois da sua morte, a cidade mergulhou no esquecimento até os russos chegarem, quinhentos anos depois.
Por isso partimos para o bairro dos vencedores, um bairro discreto e sem presunção imperial, onde se refugiam as classes dominantes do novo século.
O jantar dançado ao som do vodka revelou uma festa de graduação em que se dançou até tarde numa intrincada confraternização Luso Uzbeque onde as civilizações e as gerações não esgrimiam divergências e dançavam sons latinos, em roupas e gestos ousados, com a benevolência coberta de lenços de seda e muitos anos de condescendência dos avós.
Na esplanada do restaurante, uma família muito tradicional sentava-se para um jantar tardio, elas com olhares tímidos, lenços que lhe cobriam a cabeça, eles empinados para trás de rostos autoritários e semblantes prepotentes, elas sorriam diante os copos de vodka que se içavam na mesa do lado, eles incomodavam-se com este mundo de transgressões e descontrolo.
Sobre o túmulo de Timur, pairava a lua cheia, mas os únicos lobos da noite destilavam álcool e faziam apostas sobre qual a maldição que se lançaria sobre quem afrontasse, de novo,  a memória do imperador.



sábado, 14 de março de 2020

SILK ROAD #16 – E, de repente, (re)nasceu Timur


Sentados nas escadarias do Hotel Uzbequistão, encostamo-nos à última pérola da utopia, construída com um realismo exacerbado pelo desejo de afirmação de uma verdade absoluta, forrada por milhares de quadrados esculpidos na fachada, todos iguais, como se uma nação, um sonho e uma hipérbole ganhassem força pela repetição, pelas ilusões de ótica, pelo número de andares e pela forma de abraço com a qual o arranha céus envolve a praça, a história recente, os pavilhões de verão da aristocracia russa, as avenidas e os prédios austeros construídos pelos que, através de uma revolução, herdaram um império na Ásia Central.
Do alto das escadarias do Hotel Uzbequistão, posamos para os padrões de beleza uzbeque e,  enquanto elas se adaptam aos mecanismos e ao telemóvel eleito pela posteridade, nos segundos de momento suspenso, nós passámos a acreditar no antropólogo famoso que afirmou um dia que a chave estaria na mestiçagem, afinal de contas se os povos não conseguem viver em paz na diferença, então a solução pode ser misturá-los, e criar uma raça mestiça nova, com novos valores comuns.
Diante nós, no fundo das escadas, as três jovens transeuntes de sorrisos transparentes, espalham alegria e beleza exótica pelas escadas acima, alheias ao movimento motorizado dos jovens de uma estirpe de mestiçagem desconfiada que as rondavam.
Elas, também indiferentes a Amir Timur, o último dos residentes da praça, imponente e de dimensões generosas, de cima do pedestal no geométrico centro da praça redonda, ou elevado a herói no novo bloco de vidro que preserva as memórias do novo fundador, provavelmente com os efeitos especiais da multimédia, o edifício que completa a história da arquitetura e a últimas das esquinas da praça de dimensões imperiais
Nós, pelo menos alguns, gastámos os segundos de espera ansiosa pela fotografia de grupo a pensar no diário de 1865, do ministro do interior do czar, Pyota Valuev, que escrevia que ninguém (entre os conquistadores) sabia bem qual teria sido o objetivo da conquista de Tasckent pelo exército russo, mas existia algo de erótico em “tudo o que estamos a fazer nas longínquas fronteiras do nosso império”  
Outros, os mais letrados, lembraram-se de Dostoievski que, em tempos, terá dito que a Rússia devia, não apenas comprometer-se com o Leste, mas abraçá-lo.
E rimo-nos todos muito, quando nos despedimos da nova e mestiça juventude uzbeque.
Na noite anterior, abafada pelo verão interior da maior cidade da Ásia Central, não havia referências de grandiosidade dos grandes imperadores tártaros e, por estranho que nos tenha parecido, sentimos o calor cosmopolita com uma excitação quase juvenil, que entrava pelas janelas abertas do táxi sem marca e sem idade que se desentorpecia, a alta velocidade, pelas largas avenidas da cidade, contornando as geometrias em forma de praças e enfrentando as formas construtivistas em sequência. 
As origens prosaicas desta antiga aldeia que cresceu na fronteira entre os mundos nómada e sedentário e que viveu na obscuridade durante oito séculos, até à chegada dos czares, não sobrevivem à falta de memória, porque a cidade viveu sempre na sombra de Samarcanda.
Com pena de que Babur, o neto de Timur, não tivesse emigrado precocemente para as criações de Dinastia Mughal, tão, tão longe, do seu vale de fergana.
Se Babur não tivesse sido expulso de Samarcanda pela descontrolada herança de Timur, poderíamos ter vindo a Tasckent para visitar o Taj Mahal.
Mas foi, e carregou com ele o esplendor dos grandes imperadores, deixando aos sucessores de Timur, o papel secundário de criador de cavalos destinados ao luxo dos grandes impérios do Oriente.
E, nas entranhas da maior cidade da Ásia Central, não ressoam os ecos de uma História longínqua.
As ambições desmedidas de Tasckent, tal como os seus feitos e desgraças, têm origem nas suas ambições imperiais, um local onde os russos  se sentiam senhores e os uzbeques, meros súbditos ou servos, conforme o seu grau de colaboracionismo.
Tasckent é, pois, uma criação dos czares quando descobriram que os seus distantes e inóspitos territórios de fronteira eram ricos em ouro, madeira, peles e imensos espaços de cultivo e quando a cidade foi escolhida pela expansão ferroviária que fez renascer as ambições da rota da seda, a partir de S. Petersburgo.
Uma herança muito apreciada pelos sovietes, apesar de muito criticada por Marx, em meados do século dezanove.
Mas a visão dominante da quarta maior cidade do império Soviético é composta por avenidas a rasgar os destroços do grande terramoto de 1966 e os horizontes, um metropolitano construído à imagem e com a grandeza da capital, e a sua herança de edifícios de arquitetura construtivista, porque a maior cidade da Ásia Central tinha de ser soviética.
Nos seus feitos, como nas suas desgraças, a cidade merecia um terramoto para ser devidamente perfilhada pelas grandes obras do regime e no metropolitano o tempo parece ter parado e o espaço transportado para Moscovo, e até as funcionárias fardadas eram de pele clara e porte eslavo, um mundo subterrâneo que destoava da mestiçagem da superfície, dos mercados com reminiscências nómadas e fé muçulmana, e eu juraria que as guardas da estação só falavam russo.
Mas, cercada pelas realizações imperiais e pelas obras de regime, ainda vive o bairro muçulmano de casas baixas e pátios interiores, miúdos que brincam nas ruas um povo de tez morena, vestes compridas e uma curiosidade por quem chega e donde nós chegamos.
O bairro muçulmano fecha às onze horas, mas as mulheres recolhem-se enquanto os homens veem na televisão o europeu de futebol, e nos perguntam, sem timidez, se gostamos do Uzbequistão, com a convicção absoluta de que só havia uma resposta possível.
No último reduto dos povos nativos, poucos se parecem importar com a forma como o novo poder parece lidar com a desorientação da queda recente do último dos impérios, que os levou a substituir os pais do socialismo, dos seus pedestais, por um novo pai e herói da nação uzbeque, muito antes de alguém ter imaginado que ela iria, um dia, existir.
Pois, a criação de um novo herói nacional para justificar a existência da nação Uzbeque foi tão precipitada que não tiveram o cuidado de verificar o seu passado
Timerlane para nós, Amir Timur para eles e os seus dezassete milhões de mortos não são, provavelmente, a melhor das referências para uma nova nação.
Pensámos nós, pelo menos antes de chegar a Samarcanda.