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segunda-feira, 22 de julho de 2013

As asas do desejo – Parte 1/5


 
Pedro atravessava agora a ombreira da porta na incerteza de se encontrar com a sua sombra, mais uma noite de ressaca de emoções mal curadas, mal amadas e desvanecidas no nevoeiro que imergia a cidade, todo o ano, todas as noites, sempre com alguma pena de si próprio!
O telefone, como que por instinto, tocou!
- Boa noite! – Quem seria a esta hora?
- Como estás? – Uma voz levemente trocista mas sem dúvida feminina – É mesmo contigo que quero falar. Mas dado que acabaste de chegar, é melhor sentares-te, eu espero!
Não, não podia ser o reflexo dos torpores do álcool barato, engolido entre duas baladas e uma competição quase obscena de olhares insinuantes, rostos envelhecidos de mulheres solitárias, transformadas em restos de uma revolução tardia, um jogo tão lúgubre quanto os trapos que as cobriam. Era assim a noite na cidade, no pequeno bar escondido entre ruelas e trepadeiras, pátios cercados de vedações e um portão que insistia em ranger, degraus esgotados pela erosão dos séculos, retorcidos como o corrimão de ferro que empurrava os sonhadores para as luzes e para o fumo, um balcão corrido até ao fundo, mesas cheias de gente e histórias que se contavam em voz de tambor, o acompanhamento sincopado das baladas do jogral, viola no colo e notas bem puxadas ao sentimento e à atmosfera que Pedro jurava em voz alta já ter visto num filme qualquer, com muitos anos, sempre num qualquer antes da guerra, Paris no seu auge, como uma premonição de euforia antes que o mundo se consuma numa carnificina qualquer!
A voz era uma assombração mesmo real pós meia-noite com timbre de Cristina, definitivamente não Maria, talvez Paula ou Isabel, mas bolas como é que se podia ter uma voz daquelas àquela hora, simultaneamente tão rouca e profundamente (profusamente?) límpida?
- Devo pressupor que é engano, ou foi um Anjo que regressou à terra? – Respondeu Pedro, arrependendo-se antes de acabar, com este som estridente que ele não tinha conseguido controlar (pluf, saiu!), tão pretensiosa e desastrada.
Mas a voz não se sentiu incomodada e riu sem pressas, longamente, deixando transparecer de uma forma clara de quem era a iniciativa e que ela já havia decidido os seus atuais e próximos passos e portanto tudo era permitido a esta jovem, não lhe competia a ele agradar!
- Como sabes que acabei de chegar?
- Sente-se o teu respirar ofegante de quem entrou a correr em casa!
Sem perceber qual o grau impreciso em que estava a ser gozado, Pedro decidiu enfim sentar-se (deixar-se cair) na cadeira de lona vermelha comprada num bazar de bairro, um estuário de quinquilharias no seu preferido refúgio magrebino de Sebastopol!
- Tem nome, a voz? – Atreveu-se, inquieto com esta intromissão na sua concha desconcertante, (e nos últimos tempos, também desinteressante) no seu exílio urbano, independente mas deprimente, apesar de já ter aprendido a viver os tristes, gelados e nublados fins-de-semana do Norte longínquo. E a intensidade do incómodo inicial era tão evidente que nem lhe ocorreu a ele que podia ser um interessante engate nem a ela lhe soou ao alarme da rejeição, uma espécie de sensação “ que tipo de gajo será este que nem curiosidade aparenta? Ou será que lhe cheira a mãe solteira de um filho problema assim só pelo som da voz…ou pelo cheiro! Bolas não há cheiros por telefone…julgo eu!”
- A voz tem obviamente nome…para quem merece! – O ataque frontal e impiedoso parecia-lhe a terapia de choque ideal para um empedernido e solitário macho, ainda sem história, sequer!
O aturdimento desconcertante em que Pedro tombara, deixara-o sem fôlego no preâmbulo de uma fábula intemporal, em que todos os animais se entendem numa espécie de esperanto da natureza, seja qual for a selva, o tempo ou a história!
- Como é possível uma voz cristalina e em português no centro deste mundo tão gaulês? – A sua súbita e idiota perceção do improvável não deixava de ser cómica, não fosse a hora absurdamente tardia e a falta de discernimento alcoólico que envolvia a sua mente – Pressuponho que não é o acaso…
- A teoria das probabilidades joga a meu e a teu favor. Somos muitos milhares de mentes exiladas…
- O exílio não é uma escolha, e vivemos numa década de escolhas múltiplas. Parece-me uma palavra levemente desajustada…ou demasiado sugestiva! Talvez seres emigrados seja mais real, porque já não existem causas assim tão nobres que justifiquem o exílio…
- …só quando não é um estado de desajustamento permanente, ou simplesmente um estado de espírito!
Pedro não entendia esta provocadora insolência, uma familiaridade tão óbvia que só podia ser um sonho, e por isso mesmo hesitou e remeteu-se a um silêncio defensivo e comprometedor.
- Acreditas mesmo que não existem causas suficientemente nobres, que justifiquem o exílio, mesmo que aparentemente voluntário? – A insistência da voz estimulou a imaginação de Pedro, que definitivamente não lhe apetecia expor o seu íntimo, tão tarde, tão noite, tão cedo e tão-somente a uma voz.
- Para mim tens voz de Cristina!
- Cristina seja!

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