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quinta-feira, 29 de setembro de 2022

O Christo de Praga

 

Para os locais mais distraídos o bairro de Praga é apenas um antro de gangsters. Uma distração de quem nasceu e viveu na margem restaurada do Vístula, pobre a fama dos que sobreviveram ao extermínio de uma cidade, provocada pela revolta dos ingénuos diante a máquina de destruição nazi.
E, durante décadas, os habitantes da margem ocidental do grande rio da Polónia, olharam com o mesmo ressentimento para os que, do lado oriental, esperaram pacientemente pelo massacre da inteligência ocidental polaca, antes de atravessarem o rio e instaurarem, sobre as ruínas, uma nova democracia popular.
O bairro de Praga, na margem oriental do rio Vístula, ainda é o repositório da Varsóvia antes da última grande guerra, pátios encarcerados em cores de tijolo, enegrecido pela fuligem do tempo e do esquecimento, mesclados pelos blocos de apartamentos, construídos para uma antiga classe de formigas obreiras do novo regime que, entretanto, também passou à história.
Mas, na mesma medida em que os grupos sociais condenados à extinção, se extinguiam, as memórias do pré-guerra do bairro de Praga eram emparedadas entre os guetos do abandono, cada vez mais circunscritos pela dialética construtivista, plantada de blocos de cimento com olhos pequenos sem espaço para lágrimas e lençóis, que invadiram os espaços livres, para quê preservarem a memória dos que não tinham percebido que os novos ventos da História sopravam de leste.
Por isso, nas ruas do bairro de Praga vagueiam todos os que ficaram para trás nas sucessivas vagas de História do resto do seculo vinte pós guerra, os que não eram elegíveis para fazer parte das novas massas da democracia popular, os que viveram toda a sua vida para a democracia popular e que não perceberam que ela implodiu, juntamente com as promessas de proteção eterna do estado, baseada nos serviços mínimos e numa doutrina que os fazia acreditar que quanto mais pobres fossem,  mais estaria garantida o espirito igualitário de uma sociedades sem classes. E, agora, que as industrias do seculo vinte se extinguiram nos  fumos da segunda revolução industrial, juntamente com a democracia popular e os ventos de leste, emergem  esporadicamente, nas ruas de Praga, os novos hipsters , a nova classe triunfal do capitalismo dos serviços e dos novos ventos da História, que se cansou das limitações de uma cidade reconstruída a ocidente, ao longo dos últimos oitenta anos, de acordo com as regras cronológicas  do passado, do presente e do futuro e que procura, em Praga, as emoções de um processo de destruição criativa que se adivinha em cada bloco de tijolo vermelho que ameaça desmoronar-se,  em cada fabrica abandonada que se transforma em museu, em criatividade e em lazer, e uma promessa, qual adrenalina das mais radicais atrações de um novo parque de diversões, de transformação definitiva de uma sociedade sem classes numa cidade de classes múltiplas, a derradeira possibilidade de viver os confortos das janelas amplas e do aquecimento central, olhando através do vidro  em direto para as chagas da História e para os seus sobreviventes.
E, neste estado de purgatório, Praga já não resistirá muito mais às últimas vagas da História, porque a estética das novas gerações não se esgota nas memórias trágicas do passado nem nas ruinas do esquecimento.
Para os visitantes mais distraídos, o bairro de Praga é apenas um bairro feio, atravessado por uma linha férrea de cinco vias, sem cancelas nem vigilância automática com demasiados prédios sem estética e os restos da estética em cacos enquanto os novos bastiões de vidro e de conforto demoram a devolver uma nova coerência estética ao bairro.
Os antigos residentes do bairro, os que espreitam por detrás das minúsculas janelas das torres de cimento, pejadas de roupa que já não enxuga lágrimas nem lava sonhos, aguardam um realojamento que, muito provavelmente, não chegará, e hesitam entre fazer a trouxa e partir para novos subúrbios ou servir de inspiração e modelo aos novos artistas que espreitam para o bairro,  como um expoente do realismo vinte e um, quem sabe senão a única forma de evitar a sua extinção.
Primeiro os artistas, depois os investidores em arte e os mecenas e, depois,  certamente apenas os novos ricos. É  assim que se processa a nova ordem, diz nos o sul de praga onde já não mora a alma velha
Mas hoje havia alma velha que habitava nos residentes que passeavam os cães que espelhavam nos seus olhos os maus tratos de uma vida anterior, nos transeuntes que preferiam esperar pelos elétricos, longe das paragens, encostados na diagonal das paredes do prédios como se pretendessem segurar os alicerces da memória e, especialmente, à porta de um centro comercial que antecipa, na sua cápsula de vidro, o futuro do bairro, na banda que cantava a glória de Cristo na berma do passeio e distribuía balões, com um som que lembrava o Salvador superestrela, uma fé que irradiava da tenda e um respeito que nunca dispersou antes de terminada a cerimónia.
Indiferente ao progresso iminente revestido de materiais leves, sim, um futuro em que o vidro derruba o cimento e o tijolo e desconfiada das fotografias de circunstância e da fúria renovadora da nova exuberância urbana , a alma velha ainda acredita que Cristo ressuscitara ao sétimo dia para a salvar dos pecados dos homens
As memórias cinéfilas da historia do Zoo de Varsóvia no dia da invasão alemã, recordam me a essência da alma velha, os valores clássicos do humanismo e a urgência de redenção que animava a esquina Aleja Solidarnorzki  no inicio da semana pascal.
A única analogia reside no facto do zoo de Varsóvia ser uma das principais memórias de Praga mas a emergência de preservar a essência protetora do cativeiro não parece ser a mesma.
Trata se certamente apenas do regresso dos novos inconformistas, os que redescobriram que os novos ventos da História que sopram de ocidente, deviam voltar a atravessar o rio.
Até porque, embalados na urgência do elétrico que sulcava a avenida do solidariedade, ainda tivemos tempo de perceber que a principal avenida do bairro tem um nome sugestivo e preserva, com orgulho, em cada uma das suas margens, dois magníficos e bem preservados templos de uma religião plural, à nossa direita a igreja ortodoxa e à nossa esquerda a igreja católica, as únicas que coexistem à distancia de uma rua chamada solidariedade, em toda a cidade de Varsóvia