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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

SILK ROAD #15 – Não há cavalos voadores no vale de fergana






É uma alegria atravessar fronteiras a pé.
Infantil, mesmo!
Apesar das fronteiras longínquas do século vinte e um terem menos regras e mais intérpretes.
Porque nos recorda os tempos de infância em que havia fronteiras no nosso espaço de conforto, filas para o passaporte, tempos de espera para a revista das malas, lojas de câmbios e um comércio efervescente de troca de vantagens circunstanciais entre os dois lados da mesma fronteira, um balde de plástico pelo qual um deslize fiscal ou cambial do lado mais frágil da fronteira, passou a justificar a travessia a salto do inócuo contrabandista e permite aos zelosos funcionários manter a exigência dentro dos limites de uma força que equilibra os mercados e  impede que ocorra uma escassez crónica de baldes de plástico no lado da fronteira mais instantaneamente competitivo.
E, ao mesmo tempo, justificar a existência de uma grande fronteira aberta e, consequentemente os seus postos de trabalho.
E nesta azáfama, que um estrangeiro que desconheça as misteriosas forças do mercado, não entende, ninguém se preocupa com a momentânea desorientação de quem necessita de trocar notas de uma moeda  presunçosa por um milhão de duzentos mil soms uzbeques, o que significa cento e vinte notas de dez mil somes que, cada uma não vale um euro sequer e, depois, não há espaço nos diversos compartimentos preparados para a viagem, para arquivar tantas notas, nem sequer segmentar o arquivo das notas por ordem de importância, porque quantos somes precisaremos para meio dia de Uzbequistão?
Atarefados com os baldes de plástico e outras minudências, os habitantes de um país único que se chama fronteira, atravessam para cá e para lá, sempre através do mesmo corredor forrado de madeira e de roupas coloridas 
É uma fronteira forrada de materiais pré-fabricados, corredores que disciplinam as filas, casotas apertadas, guichets desconfortáveis, adjetivos e mais adjetivos que não apaziguam a algazarra de povos que se habituaram a interpretar as regras com retórica tribal e a enfrentar a rigidez dos processos, há muitos séculos, sempre com um sorriso nos lábios e algo de valioso para trocar.
Eles sabem que a esquizofrenia de José baralhou os espaços naturais dos uzbeques e dos quirguizes por gerações e os guardas preferem não despender tempo e recursos em construções duradouras enquanto os povos não encontrarem os limites das suas próprias fronteiras.
E abrem alas para nos deixarem passar, sempre com uma palmada nas costas e uma compreensão sincera, porque eles sabem que a nossa resiliência se esgota depressa e que, ao contrário deles, estamos apenas de passagem e só precisamos de um carimbo no passaporte.
E de táxi improvisado, sempre em excesso de velocidade, atravessámos a uma da tarde e percebemos que era sexta feira e que, depois de atravessada a fronteira, os fiéis ajoelhavam-se, cobertos de branco, à porta da mesquita que transbordava de fé à berma da estrada e o espírito dos crentes vivia a sudoeste.
Em Adijan, parecia termos mergulhado no Islão, sem aviso nem preparação.
Até porque nem os ventos do oriente nem a apertada vigilância pagã dos donos da terra e dos senhores da guerra e da paz, nos tinham avisado que podia existir uma fé tão intensa nas fronteiras do Uzbequistão.
Há dias que procurávamos o local de junção das placas tectónicas da religião, para onde é que séculos de invasões pacificadoras, de peregrinações evangelizadoras e de negociações mitológicas tinham empurrado a fronteira do dragão e das visões dos cavalos voadores.
E, assim de repente, não fossem as ambições imperiais russas, tudo até parecia encaixar na lógica,  porque já não existem fronteiras naturais que os afastem dos grandes impérios dos desertos da Arábia.
Mas em Adijan, vive-se apenas no síndroma do enclave em que ninguém quer parar, a  desilusão dos autóctones por não a querermos visitar, uma alma ferida pelo massacre de muçulmanos, perpetrado por um aprendiz de tirano de mão desastrada e bolsos profundos.
Entre a curiosidade, os olhares desconfiados e  o vale de fergana, há um território de pertença do Imã, uma corte de homens que absorvem todas as palavras do sábio de barba rígida e olhar que perfura quem ousa olhar de frente, à volta de uma mesa farta e de muita intensidade dramática.
 Um território que se desvanece quando atravessamos a entrada da gare ferroviária, um edifício construtivista fora de época, um símbolo da nova nação com memórias antigas, depois de um prelúdio intimidante, nada fazia antever que o trem do vale, era um símbolo da vontade deles em aspirar à tecnologia dos homens do norte.
Quando nos deixámos cair no conforto das poltronas, percebemos que Adijan era um enclave e qual era a direção do estado uzbeque.
Mas, através da janela do comboio do futuro, não vislumbrámos nem a mitologia do dragão nem a visão dos cavalos voadores de fergana.
Apenas campos de algodão e pomares de fruta que esgotam o horizonte do  grande oásis e uma densidade populacional que se acotovela na devida dimensão das riquezas da terra e, para lá do ocidente, as primeiras manchas de areia que, de forma efémera, nos provocam flashbacks do passado glorioso dos cavaleiros nómadas e dos indómitos aventureiros.
Pequenas imagens de negativos a preto e branco que se revelam, para logo se eclipsarem, com os raios de sol que correm em sentido contrário das janelas obscuras do comboio rápido para Tachkent.
Que se desvanecem por completo com o cair da noite e com o aproximar da pérola soviética do Uzbequistão.

sábado, 1 de fevereiro de 2020

SILK ROAD #14 – Os equívocos de José




No jardim por detrás do pedestal do fundador da pátria soviética, agita-se a noiva, os convidados da boda, os fotógrafos e o staff de organização do evento, nos preparativos para o grande dia, não fosse a indústria dos casamentos uma coisa muito séria no país quirguiz, que obriga a um ensaio geral detalhado, encenado de forma adequada e sem vestes alternativas, aproveitando a magia da luz do fim de tarde.
Antes, ainda o Sol queimava as folhas do jardim central, as mulheres juntavam-se nos bancos de madeira debaixo das sombras e sorriam muito para a posteridade com os forasteiros, porque os dentes de ouro equilibravam as cores da fotografia de família, as jovens de olhos vivos e curiosidade acrescida interpelavam as mulheres do ocidente, desafiando a língua universal lançando-se na moda e na tecnologia, trocando projetos de vida enquanto os velhos jogavam xadrez, trocavam olhares tranquilos e partilhavam o seu perfil com a comunidade internacional, como os últimos baluartes da geração de campeões soviéticos.
Para cá das montanhas, em Osh, os humanos comuns despejam curiosidade e afetos pelo jardim e pelo parque de diversões e descem dos três mil metros para a civilização urbana, mesclada entre as suas raízes nómadas de tez carregada, influências da ásia interior e profunda, absorvendo as sucessivas vagas de imigração do Norte, patrocinadas pelo império russo e pelos sovietes.
Privada de uma mão protetora, a cidade reanima-se em torno do grande bazar, o único espaço da cidade que não perdeu a traça labiríntica, que não sucumbiu ao grande incêndio e que parece querer perpetuar a herança dos povos mercadores, do período em que eram o pêndulo entre os grandes impérios do ocidente e do oriente.
Segundo a lenda, um dos maiores mercados da Ásia Central, impossível de se definir dentro dos seus limites, tamanha é a sua dispersão e a sua expansão para além do conceito de um edifício de dimensões humanas.
Atafulhado entre todas as bugigangas ou artigos de primeira necessidade que qualquer um pode imaginar precisar, espalhado entre edifícios de cimento, barracas cobertas de zinco ou apenas ao longo das ruas circundantes, é o único local da cidade onde se acotovelam vontades e se revelam ambições.
Saindo do mercado, Osh revela-se uma província distante das metrópoles, longas avenidas ladeadas de casas térreas e árvores de folha antiga e raízes profundas, mantendo a sua herança rural e periférica que não se atreve na construção em altura, prova o único prédio que podia ambicionar o estatuto de torre e que permanece embargado, após anos de esquecimento.
E enquanto nos refugiávamos no único internet café da cidade, a nova referência da globalização vista por um prisma ocidental, sentíamo-nos certos de que tínhamos, pela primeira vez em duas semanas de uma caminhada ininterrupta para ocidente, encontrado um povo de raízes diferentes, todavia muito temperado pelas influências da potência dominante do século passado.
Tão entusiasmados pelas nossas próprias certezas, que não demos importância ao facto de o café internacional estar alojado num bloco de apartamentos na melhor tradição soviética, que até se poderia assemelhar a uma pequena torre de três andares coçados pelo tempo e pela fragilidade da sua construção, tal era o seu grau de descontextualização relativamente ao seu meio envolvente.
E as centenas de famílias que, por ali rondavam, não procuravam o único expresso da cidade a preços proibitivos, mas antes preparavam-se, na porta ao lado, para o primeiro dos diversos passos obrigatórios para cumprir o complexo e dispendioso roteiro do casamento: o registo civil.
Sem grande interesse pela faceta folclórica quirguiz, espelhada nas montras das lojas térreas, cobertas de branco e de véus, procurávamos entender o esforço demonstrado pelas novas autoridades em reavivar o culto dos novos heróis autóctones, com os quais se pretende legitimar a origem dos novos estados, localizando a sua criação exatamente após a ocupação dos grandes impérios da antiguidade e as disputas imperiais do final do primeiro milénio.
Uma forma conveniente – e de antiguidade respeitável – de manter vivo o dogma, até porque não é fundamental clarificar devidamente o seu passado, apenas criar a certeza de que este existiu.
Afinal de contas não é uma tarefa fácil, agregar as varias faces de muitos povos que foram obrigados, pelas contingências da história e pela brusca desagregação do último dos impérios, a ser independentes quando, há muito, estavam habituados a ser tratados como os donos do fim do império, esquecidos e pobres, um escudo contra o rival do Sul, protegidos por belas e elevadas montanhas mas governados pelos novos mestres sem muito terem de agir, senão cumprirem as metas do plano quinquenal.
Talvez por isso mesmo Osh tenha sido a única cidade a manter, nostálgica,  a imagem de Lenine no seu pedestal, rara sorte do fundador dos sovietes na grande nação estilhaçada.
Já a recordação de José, não parece granjear memórias afetivas na população.
Porque Osh é o centro de um enclave Quirguiz na coerência do território Uzbeque, a uma meia dúzia de quilómetros da fronteira desenhada a régua e esquadro por Estaline, seguro de que a pátria soviética duraria mil anos, e que o novo Homem seria um ser superior aos detalhes étnicos. 
Na última vez que os factos desmentiram os equívocos de Estaline, nem o bazar sobreviveu à fúria das etnias, e aparentemente o que os dividia nem sequer era a religião e o que mais os aproximava era o comércio.
Vista de cima do cume, do monte saleem, património imaterial da UNESCO  e santuário do Islão que abençoa a fecundidade,  a cidade parece ainda mais provinciana, baixa nos seus prédios rasos de telhados de zinco, uma arquitetura discreta de subúrbio do mundo, do império e agora do país.
Entre as raízes nómadas dedicadas à pastorícias, sem rotas comerciais para incomodar,  e a diversidade étnica sem referências geográficas precisas, do cimo do trono de Suleiman, o Islão vive um clima temperado pelas barreiras naturais,  procurando sobreviver entre um poder intrusivo e uma vontade de aderir ao mundo, segundo os melhores padrões de igualdade do género.