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segunda-feira, 30 de março de 2015

Walking Distance II - Personagens

Também há personagens na rua. Os que primam pela presença ostensiva, que se intrometem entre a minha necessidade de espaço e uma oportunidade única de o alcançar e os que se impõem pela ausência, pela descrição e que completam a minha usurpação do espaço alheio, e ainda os que o completam e que lhe dão sentido. Também estes últimos são exibicionistas à sua maneira, porque sem eles não havia imagem.
Personagens porque são uma história em si, dentro da sua própria.


Letras entreabertas


O pequeno restaurante italiano no Bairro das Letras era demasiado acanhado para as nossas ideias sobre o assunto, demasiado pequeno para a nossa ambição. Desolado porque não podia tapear, desconfortável porque me esconderam de costas para a movida, aproveitei o intervalo para a conta, alcei as pernas sobre o banco de madeira comprido, esperei que abrissem a porta, e procurei as letras lá fora. O personagem abriu-me a porta e os horizontes

(Madrid, Bairro das Letras - Março 2014)


O arco de todos os sentidos


A vila estava congestionada pelos restos do Natal e refugiei-me na rua debaixo, longe das filas intermináveis de putos à procura da aldeia do Natal, 
Só na parte intima da vila seria possível descobrir os personagens involuntários que deram sentido às pedras antigas do castelo.

(Óbidos, Janeiro 2015)


Pernas


O meu fascínio pelo chão - quanto mais brilhante melhor - fez-me cruzar as pernas e esperar que o movimento fosse suficientemente rápido para desfazer os personagens e transformá-los em sombras, realçando a paisagem do palácio ducal, a mais esplendorosa republica do mediterrâneo renascentista,  mas o vinho glorioso da Croácia, que me reduziu a velocidade, a luz predominante da cidade museu e o espanto que se instalava nos transeuntes petrificou as imagens da direita que seguravam as abóbadas do palácio  e compôs um quadro humano, emoldurado pelos arcos luminosos
O melhor ficou para o fim. Vinda da direita sem avisar, e atrasada para a festa, atravessou-se a morena de cabelos compridos que só travou perante a câmara,  as suas pernas olharam para as minhas e ainda hoje estou convencido de que ela me sorriu!

( Dubrovnik - Julho 2014)


A estátua


Dentro da capela , o som da multidão lá fora misturava-se, como as folhas de chá de tília, no eco das abóbadas frias, das paredes espaçadas de retratos de guerra, cenas após batalha, portanto tudo silêncio
A imagem, tal como o som, irai certamente sair misturada em forma de redemoinho, como se se tivesse levantado um súbito e inesperado vendaval na quente noite do Adriático.
Como um reflexo do fim da batalha!
Numa cidade de estátuas nenhuma outra sobressaiu tanto como a do rapaz da camisola escura

(Dubrovnik - Julho 2014)


O demónio


Para além do óbvio enquadramento da jovem na porta da igreja e dos transeuntes que olham de frente e se viram de costas de forma intervalada, o irrequieto miúdo atravessou-se entre mim e a paisagem e as regras do enquadramento, a simbologia de uma porta que se abre para o largo, para a natureza (e porque não, o lar de um Deus maior)
E ela, estaria ela a olhar para criança? Ou apenas estando? Como apareceu, a criança desapareceu, como se fosse uma assombração (de facto havia um olhar de demónio nos olhos e nos cabelos do puto)

( Kotor - Julho 2014)


Joana D'Arc


´
É a personagem que dá sentido à imagem. Indiferente ao que lhe era pedido - enquadrar-se na única moldura da paisagem - escolheu o recanto mais longínquo da imagem, propositadamente longe do palco, encolhida sobre o seu livro de história, absorvendo cada centímetro daquela cidade fortaleza, deixando a moldura desconsolada e inútil e empurrando o nosso olhar para além do último terço
É uma personagem exibicionista, pela ausência

(Kotor - Julho 2014)


Coffee Shop


Ele é indiscutivelmente o dono daquele espaço, da esquina, da mesa abandonada do café, das bicicletas que se amontoam na ponte, naquelas pontes de uma inclinação sempre curvada, as únicas elevações da cidade que se espalha abaixo do nível do mar
Como um guarda fronteiriço, um porteiro de dia ele parece esperar pela chegada dos outros transeuntes, uma espera indiferente, porque ele não se digna olhar, sabendo que eles vão chegar.
Mas aqui o personagem sou eu. Encavalitado num banco alto encostado a um balcão com vista para o canal, deixo a máquina a disparar sozinha, enquanto me entrego com lascívia a uma chávena de café expresso, da mais altíssima qualidade!

(Amesterdão - Abril 2014)


O homem quase invisível


...ou o turista acidental, e eu juro que esperei por ele antes de disparar, porque só assim fazia sentido o foco da luz da lanterna que não se vê e a luz no terço oposto que ilumina a janela como os únicos elementos que servem de contraponto ao homem invisível, o homem que quase não conseguia ser personagem.
Tudo o resto são ruínas habitadas do império romano

(Split - Julho 2014)

domingo, 29 de março de 2015

Walking distance I - passos perdidos

Quando caminhamos pelas ruas à procura de histórias temos sempre uma sensação de que estas não terão nunca um final coerente - seja ele qual for -  porque só conseguimos decifrar o que os transeuntes nos deixam ver, ficando sempre a imaginar que vidas eles transportam entre o nosso enquadramento e a paisagem que não se vê.
Por isso, muitas vezes procuramos apenas vultos e sombras, porque é mais fácil assim não nos envolvermos com o que as suas vidas escondem.
São os passos perdidos!

Azulejos


Chovia na cidade, e os chapéus abertos escondiam as expressões dos transeuntes que procuravam abrigar-se do temporal . A idosa acabara de atravessar a passadeira e encaminhou-se sozinha para o lado direito da objectiva, separando-se da multidão, protegida pelo sinal vermelho, e na companhia dos sinais da cidade. Em passo lento, mas firme, indiferente aos azulejos da igreja de S. Francisco

( Porto , Março de 2014 - Largo dos Leões)


Paragem de autocarro


Entre os prédios cinzentos da cidade sem graça, descobrimos um pedaço de muro quase em ruínas que sugeria que a vida já tinha passado por ali...foi só esperar que passassem os primeiros passageiros

( Porto, Março de 2014 - Rua José Falcão)

A luta na fábrica


A fábrica descobre-se ao anoitecer, quando as luzes se acendem, mas ela não quer ouvir e desaparece do ponto de focagem sem que eu lhe consiga perguntar o que pensa ela da luta.

(Lisboa, Novembro de 2014 - LX Factory)



Espera por mim!


Encostei-me à parede e deixei que tu te intrometesses entre os reflexos da chuva e a solidão da desconhecida. Assim, para além do paralelismo óbvio, procurei aliviar a solidão do vulto distante.

(Porto , Dezembro de 2014)


A travessia do milénio


Nove horas da manhã na cidade em constante construção e todos temos pressa para chegar a um qualquer lugar. Respirei a neblina da grande urbe e apontei na direcção do jovem que parecia querer fugir da paisagem se me aperceber que ele era o maestro da multidão de seres que atravessavam o milénio.

(Londres, Setembro de 2014 - Millennium Bridge)


Aldeia abaixo


Aquela luz por cima dela fazia toda a diferença  na escura noite do Alentejo, porque assinalava a presença humana numa calçada que insistia em se esquivar na direcção da planície

(Évora - Março de 2015)


Estrangeiros


O que me atraiu foi o brilho do mosaico, provocado pela luz do fim da tarde. Subitamente ouvi vozes nas minhas costas de um dialecto eslavo que se apressava na direcção do centro da cidade, e esperei que eles se atravessassem na minha frente, e imaginei quanto teriam andado para aqui chegar...onde o chão brilha e a luz enriquece!

( Málaga, Março de 2015 )


Passos perdidos


No Palácio do Imperador, as pedras polidas pelo andar de milhares de anos, sugerem tempos de glória, de tragédia, de reclusão, de abandono e de ressurreição entre os muros das muralhas.
Precisava apenas de pernas que furassem a luz mas não ofuscassem os reflexos na pedra irregular

( Split, Julho de 2014 - Palácio de Dioclesiano


Não há passadeiras no canal


Na cidade das bicicletas um peão só se faz respeitar se circular nas ruas pela faixa da direita, cruzando as passadeiras com se se tratassem de grafitti, na perpendicular...

( Amesterdão, Abril 2014)

segunda-feira, 23 de março de 2015

Torremejia, a meia hora do faroeste


Finalmente a planície, até que enfim que as nuvens se tornam naquele cinzento esbranquiçado que transparece inocência.

Finalmente as nuvens inofensivas que aceleram o rolar no asfalto e entorpecem os reflexos.

É plana, é rural, uma perspetiva sem fim, apenas levemente emoldurada por montanhas que se confundem com os reflexos de uma claridade que cega, e que vem do céu, dos campos de cereais, dos silos amarelos, como que a querer perpetuar o Verão.

Se não fosse a planície, o Sol e a súbita vontade de dormir uma sesta, nunca Torremejia se intrometeria no meu mapa, no meu ângulo reto que me preparava para desenhar, ali para os lados de Mérida.

E, sem vontade de parar, tal era o entorpecimento pela luz da planície, entrei no deserto da vila, Domingo à tarde fora.

Na rua, na estrada, na N 630 ou na rua da estremadura, conforme fosse a nossa distância do estatuto de forasteiro, predominava a vivalma, que não era um estado de alma, mas uma realidade terrena.

Triste a solidão da Extremadura província.

Numa espécie de esplanada que disputava a berma poeirenta da estrada ou da rua com meia dúzia de automóveis igualmente poeirentos, sentavam-se os exemplares do vanguardismo da terra, a sua juventude portanto.
Eram quatro, pareciam igualmente distribuídos entre sexos, cabelos compridos, algumas com madeixas espetadas, talvez piercing no nariz. Talvez, não tenho a certeza. E fumavam, disso tenho a certeza.
Levantaram as cabeças e só saíram olhares de desdenho.
Dentro do café, a penumbra estendia-se da janela até ao balcão e os residentes tornavam-se mais velhos, mais curiosos mas igualmente pouco interessados. Afinal de contas, estava de passagem, era apenas um inseto nervoso a fugir da chuva que vinha de sul.
Por detrás do balcão esperava-me um barrigudo de meia-idade, de camisa branca e gravata vermelha, apertada com rigor e sem suor. Limpou o balcão de madeira com um pano mais escuro que a camisa e agarrou-se freneticamente à máquina do café. Sem grandes palavras. Apenas o suficiente. Também é assim que se quer um barman. Uma solenidade de quem sabe que não tem outro lugar senão aquele.
Nas paredes por detrás do bar, estava pendurada a história de Torremejia; uma telefonia de válvulas arrumada numa prateleira do lado direito do balcão, que partilhava com uns quantos despertadores e umas jarras de porcelana florida e gasta,
Atrás da grande máquina de café, um modelo clássico merecedor da estrada 66, penduravam-se utensílios da terra, jurei ver um arado, que vinha do teto até às chávenas de verdadeiro expresso, molduras com fotos de homens barbudos, algures nos inícios do século passado, gente solene, molduras muito pretas, formato que me despertou para as touradas, em versão de festa brava espanhola. Estremadura, portanto.
Do lado esquerdo do balcão, mais escuro, mais longe, mais sombrio e mais só, uma enorme máquina de escrever preta, teclas pretas e um enorme cilindro, insistia em dar um toque de modernidade ao lugar, enfim mais trinta anos que as molduras e os arados, muito mais antiga que a cromada máquina do café
O homem não tinha bigode, a casa de banho estava inundava entre o cheiro de lixívia, a tampa partida e água do autoclismo que não parava de cair e o secador que despejava ar frio.
No corredor de saída um casal, sim um homem e uma mulher de feições orientais – definitivamente chineses – arfavam concentradíssimos para uma slot machine eletrónica que lhes comia as moedas ininterruptamente, cada vez mais concentrados e tensos, como se não houvesse amanhã, e pareciam personagens de banda desenhada introduzidas por um qualquer realizador alternativo no centro de um filme a preto e branco em que os atores principais, nem sequer davam pela sua presença
Lancei uma moeda para cima do balcão e virei as costas, pontapeando a porta com a biqueira da bota direita.
No meio do asfalto, de pernas abertas e arma fora do coldre, disparei, soprei para a objetiva e montei-me, sem olhar, no meu automóvel, com a certeza que tinha atingido o alvo, e arranquei velozmente, pradaria fora, cobrindo de pó os rufias de Torremejia

THE END


sábado, 14 de março de 2015

Gran Via



É inevitável.
Sempre que subo a Gran Via, vindo do Callao começam a desfilar na minha memória, lembranças adolescentes dos passeios em família a Madrid.
Inevitável porque era o acontecimento da nossa adolescência, o passeio de carnaval de automóveis em fila (eram pelo menos dois automóveis), saída de madrugada, o pequeno-almoço em Montemor que servia de reunião de família, os primos todos, o tio que conduzia pelo meio da estrada, antes e depois da fronteira, a longa fila de fronteira, para cá de Badajoz, formulários à saída, algum desplante espanhol à entrada, as casinhas alentejanas, tão brancas quanto postos de fronteira do lado cá, edifícios de vidros espelhados na Espanha em busca da modernidade, o almoço na pousada de Oropesa, o cheiro a deserto europeu na longa planície, ou no inóspito planalto, antes da grande cidade, verdadeiramente a única grande cidade que conhecemos durante anos.
A chegada de noite fria (era sempre Carnaval) à praça de Espanha, a curva para entrar na Gran Via, rua acima o deslumbre dos saloios pelo néon espanhol dos edifícios da avenida (era uma luz especial, diferente da dos filmes americanos, mas o mais próximo que conhecíamos de uma grande urbe) nariz esborrachado nos vidros laterais das nossas cascas de noz mas que, apesar de tudo, se distinguiam entre um enorme rebanho de SEAT (Espanha, país de uma industria de mercado interno).


Depois a chegada desordenada ao hotel Gran Via, no coração da urbe, na esquina da Calle Montera, a difícil operação de estacionar os automóveis nos minúsculos parques de estacionamento das ruas que circundavam a grande rua, o jantar no self-service, o cheiro a metropolitano, e hoje, dei por mim outra vez a olhar para dentro do Hotel Trypp (que é como ele se chama hoje) à procura do self-service, que agora se chama Berska, ou do café de esquina que hoje se chama Mc´Donalds e estava lá tudo, a recolha dos talheres, as mesas embutidas com uma cobertura de um plástico que parecia madeira, mas não era, porque em Espanha tudo tinha de ser massificado, funcional e pouco refinado, e uma tremenda excitação de todos nós, os putos, porque estávamos no estrangeiro, tínhamos feito uma grande viagem e cheirava a cidade.


Pronto, e acabei por me lembrar que já passou quase uma geração, e que já não somos os mesmos, os que chegaram e os que partiram e que nós próprios, já vivemos uma vida sempre a voar, sempre cheios de pressa para qualquer lugar, tão esquecida que estava aquela época dos rituais em que os momento eram espaçados e vividos com memória.
Em poucos lugares vejo o meu passado de puto de forma tão cristalina, tão real, tão como se fosse ontem.
Mas acontece sempre que subo a Gran Via do Callao para a Calle Montera.
Quarenta anos depois, o meu puto liga-me (passeava eu na Gran Via outra vez) a dizer-me que vai emigrar, para Madrid talvez, para Londres se calhar e achei “força puto” mas com a súbita consciência de o quarto do puto está cada vez mais vazio.


A subir do Callao para a Montera.
Hoje, sexta-feira dia 13, e enganei-me na reserva do dia do voo de regresso a casa, fiquei com o cartão de débito sequestrado na caixa automática de um Banco Espanhol, e confrontei-me, cheio de vergonha e horror, com as mãos impolutas de uma guarda de raio X a vasculhar as minhas meias e cuecas sujas, espalhadas à vista de todo o aeroporto, à procura de uma tesoura que a menina da máquina jurou que estava dentro da mala (até virou a máquina para mim) e eu, horrorizado e inocente jurava que não, e afinal não havia tesoura nenhuma, ela fixou a imagem errada e alguém passou com uma tesoura das unhas para um outro lado qualquer!

A caminho da porta de embarque dei de caras com o D.Quixote e pensei “Cruzes”

domingo, 8 de março de 2015

Mudanças (ou a ultima visão de futuro da semana)

As previsões do futuro representam  autos de fé recorrentes, uma visão feliz do que gostaríamos de poder mudar, mas não muda assim tanto.
E quando é proclamada mais uma religiosa profecia de futuro, sempre inspirada nos dez mandamentos, jamais deixo de pensar no senhor Spock
Mesmo hoje, para aí trinta anos depois e quando finalmente me começo a convencer que, nesse futuro, já estaremos todos mortos, e portanto o futuro está a deixar progressivamente de nos pertencer
Vejo-me a contar os anos que teria  em 2075, o ano em que desaparecerá por completo o buraco do ozono (dizem eles) e desanimo.
E lembro-me do filme Jonas que terá vinte e cinco anos no ano 2000, que hoje já terá quarenta.
Conformo-me com as minhas pequenas mudanças diárias, rejeito a nostalgia dos espaços abandonados (apesar do preto e branco) e encaro de frente os símbolos da última visão do futuro, conhecida esta semana!

Visão 1 - As mudanças serão cada vez mais rápidas


Visão 2 -Vamos viver mais tempo (alguns e não o suficiente)


Visão 3 -O trabalho será mais independente e global


Visão 4 - As impressoras 3D que nos vão simplificar a vida


Visão 5 - Todos os habitantes do mundo tenderão a ficar interligados, criando um mercado global


Visão 6 - Aumentará a vigilância dos cidadãos sobre governos e empresas


Visão 7 -As ameaças terroristas passarão para o mundo cibernético


Visão 8 - O dinheiro digital vai ser a norma no comércio internacional


Visão 9 - O lucro vai deixar de ser o único objetivo das empresas-a sustentabilidade é um novo factor de competitividade 


Visão 10 - A adaptação às mudanças climáticas ditará o futuro das sociedades e das nações











terça-feira, 3 de março de 2015

Fotonovela "O Patrão"



- Pai, porque é que todos te chamam Patrão?
- O pai é um homem importante! – E o filho não percebeu nada.
Importante – repetia o puto, enquanto se mirava de cima do seu metro e vinte para os ténis todos rotos
Uma pedra que se tinha intrometido entre ele, a bola e uma nuvem de pó amarelado por onde se esfumou uma grande oportunidade de golo, frustração porque as miúdas sorriam apenas para os heróis.
Isso sim. Era importante 


No topo das muralhas do castelo, este homem de meia-idade abria os braços para o horizonte da planície amarela, campos a perder de vista, ondas quase simétricas.
Cá de cima, o patrão quase parecia um homem alto, apesar de uma fita métrica bem esticada ser incapaz de lhe dar mais do que um metro e sessenta de altura.
A calvície e o seu terror pelas balanças, conferia-lhe uma forma demasiado redonda  para os seus trinta e oito anos de idade, um fato coçado de tantas cerimónias oficiais, que parecia querer rebentar-se a cada movimento mais energético do Patrão.
E falava de coisas sérias: revolução, povo… 
E ia crescendo.
E o puto, doze anos, mais ou menos, temeu o pior. 


Mas logo o patrão se levantou, apressou-se, vestiu novamente o ar de presidente, e lançou-se rua abaixo, acenando a toda a gente e gritando ao puto “ Conto-te ao jantar”.
- Calceteiro incompetente – pensou, quando quase tropeçava numa pedra da velha calçada que se havia desprendido da rua!
O puto tinha mesmo razão
O pai patrão não podia ter sido um desportista.


...imaginava-o agora a descer à vila, naquele passo miudinho e ligeiramente desengonçado, suando com a sua falta de ginásio, com uma ambição de quem não descansa enquanto o burgo não virar cidade sempre atrás de mais um compromisso autárquico, aquela pausa nas ombreiras da porta principal da Câmara, cumprimentando todos os que apareciam por lá, reunião de vereadores, grandes projetos para a vila, obras sociais e, importante, as piscinas olímpicas municipais, reunião com os projetistas e engenheiros e os munícipes, todos eles queriam falar com o presidente, afinal ele era o Patrão.


Eram quase onze da noite mas os olhos do filho do António quase saiam das órbitas de tão despertos por esta descoberta.
Pai salteador e pirata. Não havia melhor visão para um pai. Só não entendeu essa história da revolução dos cravos.
Devia ser uma outra aventura qualquer!
Mas, naquela noite, o patrão teve pesadelos com o desmoronamento do seu mundo ideológico, “ Aquele careca lixou tudo”!
Mas, com o tempo e o cansaço adormeceu de vez, embalado pela água tépida da piscina municipal, acabada hoje, novinha em folha.