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terça-feira, 25 de abril de 2017

3 Mann


Um escritor americano chega a Viena, após a segunda guerra mundial e descobre que o seu amigo Harry Lime foi morto em circunstâncias misteriosas.
3 Mann é um filme e Harry Lime é Orson Wells e ao longo do filme percebemos que o amigo do escritor não era afinal um homem inocente, fazia contrabando de penicilina adulterada e havia provocado a morte a dezenas de crianças.
E afinal Harry não estava morto e movimentava-se clandestino entre as várias zonas ocupadas de Viena, beneficiando da falta de confiança entre as polícias ocupantes.



Mas 3 Mann é sobretudo um filme negro numa época negra em que a cidade não tinha recuperado das suas ruínas, sequer, e procurava sobreviver a uma ausência de futuro, enquanto as potências ocupantes hesitavam sobre o que fazer com os austríacos.
O cinzento predominante do filme realça a decadência dos edifícios imperiais, as luzes trémulas da noite do após guerra, um povo amedrontado com a sua própria sombra e com a ambiguidade da sua história recente.
Predominam os ambientes de contrastes de sombras, de luzes turvadas pelo fumo dos cigarros e os locais míticos das épocas ambíguas, onde reinavam as mentes conspiradoras e os locais procuravam ressuscitar a honra perdida.
O café Mozart e o vizinho Hotel Sacher.
No final o Harry Lime morre mesmo e o que fica verdadeiramente para a história é a importância decisiva dos esgotos da cidade na sua sobrevivência para além do seu tempo e na sua morte anunciada porque até nos filmes negros dos anos quarenta o vilão, mesmo que Orson Wells, e ainda por cima amigo dos russos, não era suposto viver.
A cena final é a do segundo funeral de Harry e da namorada  e atriz checa caminhando ao longo da alameda do cemitério com uma altivez eslava e uma pose de diva, rodeada de árvores sem folhas, símbolo de um Outono que se prolongara demais.
As árvores sem folhas, os edifícios austeros impregnados de fuligem da guerra e as imagens de um cinzento inquieto seriam, afinal, os negativos ainda não revelados da Europa Central das décadas seguintes.

Em Kundera, por exemplo.








Huber’s – Essen & Trinken



Há lugares assim. Discretos como Audrey Hepburn
Sim, havia um retrato de Hepburn na parede.
Provavelmente a homenagem do homem atrás do bar à morena que servia às mesas.
Mais tarde, algumas semanas depois, desfizeram-se as dúvidas, era o espelho da mulher que servia às mesas, imaginada pelo marido de barba grisalha que se movia silencioso entre a cozinha, o bar e a máquina registadora.
Lugares que se vão entranhando à medida que o puto vai saltando de lugar, ele e a sua máquina de jogos, à medida que a mesa do lado – e as outras - se vão enchendo de francesas de idade média alta que se acotovelam entre pequenas tijelas de sopa e canapés e que falam alto e francês entre elas e um alemão sussurrado para a morena que serve às mesas e sorri, em todas as línguas.
E o espaço de esquina na Rennveg 11 vai absorvendo a chuva copiosa que grassa na rua do elétrico, secando os cabelos revoltos e as roupas fustigadas pela água que anunciava neve para os próximos dias.
Há lugares assim, que só reconhecem a genialidade depois de dias de digestão tão suave quanto a música que absorve o ruído intrusivo das mulheres que não param de entrar e sair, empurrando o puto para o balcão, hoje que ele estava introspetivo, a semana passada jogava à bola por detrás do balcão, de certeza com as mesmas cores de amarelo e preto com que enfrentava hoje, a máquina de jogos.
Semanas depois as dúvidas eram desfeitas. Ele tinha nome mas nós não descobrimos, oito anos bem medidos e era filho do casal, do barman e cozinheiro de barba grisalha e da distinta morena que servia às mesas e que, aos olhos do marido, parecia uma estrela dos anos dourados do cinema americano.
Não me lembro bem o que comi, mas era bom, ainda se sente o sabor cuidado de uma cozinha que não deslumbra mas entranha, das torres gémeas que espumavam cerveja forte, e que serviam de moldura ao nu esbelto em fundo de verdes, resguardado atrás da porta de entrada de frente para a cara sorridente da atriz.


E hoje apostaria ter ouvido bossa nova.
Com seria capaz de jurar que o cozinheiro, barman e marido era afinal também pintor e a morena que servia às mesas era a mulher, sorria em todas as línguas e era modelo.
Lá fora, o 71 corria sobre os carris molhados e furava, muito esporadicamente, as nuvens escuras de uma planície que não se poupa ao inverno, hesitando entre a imponência barroca do palácio de Belvedere e o construtivismo soviético do monumento aos soldados mortos na grande guerra.
Ambos donos do restaurante, uma certeza adquirida pela curiosidade de quem renasceu naquele dia de inverno de ossos encharcados, com o Sol anunciado das quatro da tarde.
Há interiores assim, mesmo na Viena imperial.

Lugares onde os seus habitantes se aconchegam do passado altivo e da fria pedra trabalhada pela história. 

segunda-feira, 24 de abril de 2017

A capital adiada da Europa




Regressar ao centro da Europa é sempre um regresso (muitas vezes involuntário) à história do século vinte, convulsivo, violento, disruptivo e avassalador.
O século que desfez em cinzas as grandes dinastias europeias e construiu, sobre cinzas e ruínas, uma qualquer nova ordem, uma sociedade de cidadãos.
Pensamos hoje que este seria o preço a pagar por uma nova ordem.
Explicam-me os livros que o século vinte também foi o fim da linha para a opulência da dinastia dos Habsburgos.
Setecentos anos de um paternalismo que se confundiu com uma nação, um império de homens comuns.
Não resistiu a Bismarck, ao suicídio do filho primogénito, à desastrada aventura mexicana do irmão Maximiniano, ao assassinato do arquiduque, sobrinho e sucessor ao trono, em Sarajevo
As grandes obras do regime macrocéfalo do último século não foram suficientes para convencer as fronteiras do império que este não era uma ambição legítima de um poder que se esvaia para lá das fronteiras de Viena.
A grande obra da exposição mundial de 1876, a grande rotunda que era maior que todas as estruturas de ferro que os franceses jamais tinham visto, já se desfazia sobre os terrenos alagados, ainda a exposição não tinha terminado, não resistindo ao passar do século.
Francisco José morre em 1916, encerrado no seu próprio palácio, porque se recusou a assistir ao fim do império que, com o tratado de 1920 se transformou num estado inviável, refém da sua própria capital.
Mas sobretudo porque a vida passou a acontecer muito para lá das paredes dos palácios dos Habsburgos.
E quando no século vinte e um, a Viena republicana mantém o esplendor imperial e se voltou a revelar a capital de um estado viável, quando revela nas suas entranhas uma herança romana, quando foi a última fronteira das ambições turcas na defesa dos impérios cristãos e convive na história e no presente com o leste e a península balcânica, é um espelho de centralidade da nova europa a vinte e seis, fala alemão mas não é alemã e até se exprime em outras línguas com uma indisfarçável felicidade…
A Europa poderia perguntar porque Viena não é a sua nova capital.
Sem certezas, eu diria que, existe um insustentável sentimento de orfandade que transparece no olhar dos seus vizinhos, agora aliados e, no passado, partes integrantes do império.
E provavelmente uma certa inabilidade em escolher os seus aliados, nos séculos que nos precederam.
Não deixo todavia de pensar que Viena é uma capital subestimada



sexta-feira, 21 de abril de 2017

Dissecando Sigmund Freud



Nychos é um artista de rua.
Famoso, ao que consta, até na América ou nos museus, uma coisa tão estranha quanto a outra.
Nycho é um dissecador e estuda Freud, mais propriamente estripa a mente dos pacientes, mas também aprecia dinossauros e coisas assim.
Dizem os críticos, que converteu a anatomia animal em beleza.
Passeia- se de manhã pela casa do psicanalista ou pelo museu de todos os bichos, desenha muito no seu livro de esboços, almoça no tradicional Landtmann e, pelas tardes fora, lança-se nas paredes sobrantes do canal com um spray e revela-nos as visões de um filho de caçador que desenhava ossos, crânios e músculos e que, mais tarde, iniciou-se na arte de desventrar animais com sprays de tinta
Pelo menos assim parece naquele espécie de documentário e filme descoberta.
Nychos, the weird, pretende sintetizar a ideia da destruição criativa e da desintegração da sociedade.
Uma espécie de Schumpeter da arte urbana.
Desinteressado da componente imaterial da psique humana que, segundo o planeta solitário, pode ser uma forma de descobrir a cidade pelos olhos de Freud.
Ou talvez um génio que representa o intangível através de vísceras em movimento e cores sugestivas
(Sabem, apesar de polémico e morto, o Sigmund será sempre um bom tema, apimentado, complexo)
E vivemos uma época muito temática.






Juro que procurei o Nychos pelas ruas mais esconsas do Naaschmarkt, pelas paredes do DonauKanal, mas só encontrei os seus insípidos e furtivos discípulos borrados nas paredes.
Esta cena da arte urbana precisa de tempo e tradição para que os marginais graffiters aprendam a desenhar e a colorir e se tornem em artistas de arte urbana.
Na Viena de tradição monumental, revivemos os tempos gloriosos das máquinas a vapor (obviamente uma metáfora adaptável ao estado primitivo da arte urbana)
“Todos nascemos graffiters” – lembro-me bem do prodigioso Ben Sloan, em roteiro informal pelos bairros orientais de Londres e “foi com estes riscos experimentais e a fugir da polícia que nos tornámos os artistas da cor, da irreverência e dotados de uma técnica extraordinária”.
Neste entardecer de cores tímidas e céu temperado de cinzento, as margens do canal estavam pejadas de tipos forrados de compridos casacos pretos, boinas de lã ordinária, grandes bolsos e sprays escondidos e as aparições de uma polícia vigilante que não se conforma ainda com o lado sujo e de estética primitiva da imponência arquitetónica dos mestres dos séculos XVIII e XIX.
E do Nychos, the weird, nem sinal.
Alguém nos informou que estava a dissecar a mente de Freud três quilómetros a Sul, nas paredes do canal do Danúbio
E pareceu-me ouvir, lá de cima do sky bar do moderníssimo Sofitel, uma numerosa orquestra a ensaiar os primeiros acordes do Danúbio Azul

(numa versão mais moderna em que a cor predominante é o castanho)


terça-feira, 4 de abril de 2017

Faraó - o insustentável peso do vazio


O faraó era um adolescente apenas, e não ficaria na História, se o seu sarcófago não tivesse sido descoberto.
Impressiona a ideia dos Reis criança, a quem lhes era atribuída a proximidade dos Deuses.
Imaginamos um reino governado por crianças em absoluta paridade com os seus iguais adultos.
O culto do faraó.
Mas Tutancamon não é a história de um homem adolescente, um faraó precoce ou de uma vida breve.
É um culto de preparação para a jornada da vida após a morte para assegurar a sua viagem até junto dos deuses.
Para garantir que a vida não acabaria, que o Sol não deixava de nascer e de se pôr e que os mortais sobreviveriam por influência do faraó nas forças do além.
Mais importante que a própria vida era assim a sua morte.
Um sacrifício necessário
A preparação do corpo e a construção do sarcófago, como de se uma cápsula se tratasse, assegura que a crença dos caminhos para o outro mundo nasce da resistência e do fulgor com que se encara os confins do centro da terra, uma massa finita mas inexpugnável que se confunde na mente humana com o infinito do céu e das estrelas.
Um mundo infantil de dourados e da riqueza das profundezas da terra.
Uma forma pueril de festejar a perenidade da vida.
Afinal, uma forma reconfortante de simplificar o inexplicável, num mundo em que a felicidade não se mede de interrogações.
E é o detalhe do ritual, dos símbolos, das crenças e do ouro que sossegam as multidões.