Pesquisar neste blogue

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

SILK ROAD #11 – Cheiros de fronteira




Uma nuvem de poeira vinda do deserto cobriu hoje a cidade de Kashgar, como uma mensagem da cidade que obriga os visitantes a regressar ao universo das verdades viscerais e a renunciar ao paraíso da paz interior que habita no silêncio dos lagos espelhados
E quando nos embrenhamos nos cheiros e nos sabores do mercado noturno, os fumos que sobrevoam as ruas da cidade dispersam as memórias da estrada dos Himalaias, as narrativas das aventuras de Alexandre o Grande, da fé do santo que introduziu o budismo na China, da curiosidade  de Marco Pólo na visita as cortes da India, do oportunismo do reino de Tashkurgen e da sua habilidade na gestão dos direitos de passagem, na derivação Sul da rota da seda, em direção ao leste.
A silhueta dos homens e mulheres que envergam braçadeiras vermelhas revela as mesmas influências, a mesma nacionalidade segundo a linguagem oficial, que os  habitantes das montanhas, uns encardidos pela poeira do deserto e pelos fumos da civilização, outros pelos ventos gélidos que percorrem os desfiladeiros, mas não há semelhanças entre as expressões duras de uns e uma ingenuidade que se alimenta do ar puro das montanhas dos outros, numa irreconciliável diferença de cidadanias.
 O nosso astuto, alinhado, e poliglota guia não tinha dúvidas que a cidadania chinesa era o denominador comum da nacionalidade uigure.
Responde sem hesitar a todas as perguntas referentes à sua família ao seu trabalho e à nação na qual vive e para a qual trabalha, explica-nos detalhadamente o conceito de propriedade e usufruto, as religiões, a vida em família e os filhos, tudo respondido com a mesma objetividade que as perguntas pediam.
Sobre política, subjetividade e outros valores nunca haveria respostas e ironizava com a vigilância e o controlo policial e sim estava a ganhar uns cobres extra para nos vigiar (risos)
Mas nesta transição entre as montanhas e o deserto, o poliglota seguidor da ordem demonstrou dificuldades em enquadrar o papel dos nómadas na pirâmide social do regime.
Por isso, enquanto devoramos caldos com massa flutuante, cuspimos espinhas de peixe frito, tão seco como seria de esperar a milhares de quilómetros do mar, e olhamos com uma desconfiança indisfarçável para a banca dos mariscos e outros insetos, suspiramos pelas sopas fervidas nas tendas plantadas na margem dos lagos de um azul, que nos forçam a respirar a altitude e a absorver todas as alucinações que se inalam dos cumes gelados do império dos sentidos.
Ao longo da estrada que destruía a altitude com a voracidade do regresso às origens, conformávamo-nos com o facto de que o paraíso é um estado temporário, e que o regresso à civilização tem algumas recompensas, normalmente associadas à higiene pessoal.
Apesar dos fumos que a civilização emana, não há maior descida aos infernos que sentir-se um humano preso às necessidades fisiológicas básicas, diante da rede de fossas que ligava os desfiladeiros da rota dos Himalaias.
Regressados à urbe mais carismática da porta oriental da rota da seda, percebemos que a envolvente só ganha relevância porque as passagens em desfiladeiros separam (ou juntam conforme as épocas) mundos e civilizações e são, por isso mesmo, ainda mais inspiradoras que as paisagens alucinantes que nos rodeiam e, mais do que altitude dos seus picos, é o significado de superação que representou para todos os que procuraram juntar mundos ao longo dos séculos.
E a única motivação que uniu os inimigos e os infiéis ao longo dos séculos foi a necessidade de trocar, desmentindo que a globalização é uma infame modernice.
E nos mercados de Kashgar ainda se negoceia em língua franca.
E quando entramos no mercado do gado, desfez-se o feitiço dos cumes gelados, aliás bem visíveis no horizonte, e as primeiras cabeças de carneiro decepadas lembram-nos que o destino do gado é fazer sangue.
E no recinto do mercado a única linguagem é a qualidade e o preço dos bichos, e não há olhar estrangeiro que lhes retire o foco.
E, quando deixámos os bichos entregues ao destino dos homens, deixámo-nos finalmente envolver pelo regresso ao oeste que acentua o carácter distintivo dos novos locais, que cresce na mesma proporção da mistura de culturas e da anarquia dos mercados.
E, apesar dos efeitos da globalização, o mercado de domingo – que ocorre todos os dias – é pertença dos locais, não fosse a nossa indiferença perante a sua cor, o seu cheiro e a sua diversidade, a prova definitiva de que este é um local para quem precisa e, muito pouco, para quem coleciona.
Kashgar tem uma história reconhecida de que há memória (sim, Kashgar não viveu sete séculos sem História e esta é uma das poucas vantagens de se viver numa encruzilhada geográfica) e por isso conserva os sinais do passado e não necessita de construir tão furiosamente o presente, como as margens orientais do grande deserto porque quanto menos profundas e longínquas são as  memórias, maior a resiliência do seu passado.
Kashgar é, por isso, uma cidade com uma cronologia que nos conduz diretamente do auge da rota da seda até à disputa predadora  dos antigos impérios pelos novos senhores da diplomacia e da manipulação, sem que se notem demasiadas peças em falta, em que mesmo o seu recorte de avenidas largas e compridas, essa visão que prefere reconstruir que reabilitar, tem tempo, não nasceu do ritmo alucinante de planificação urbanística das últimas décadas.
E por isso, em Kashgar, pressentem-se os cheiros da fronteira, fechada apenas por conveniências que não chegam a fazer História, mas também as novas imagens de uma modernidade que se se constrói através de uma meticulosa recolha das influências externas, devidamente temperadas pelo espírito milenar e pela ambição das novas asas do dragão.
Escoltados pelas crianças que continuam a nascer, e que se espalham pelas ruas sem medo nem memórias, abençoados pela figura de Mao que abraça uma praça inteira, e envoltos na indolência de uma tarde de fim de semana, espreitando uma classe média que vive longe dos mercados, descobrimos uma nova cidade que procura os espaços abertos e reclama a individualidade no interior do parque de diversões e até em Kashgar, tão longe do centro do império como das influências ocidentais, o passeio de domingo à tarde no grande jardim é um desfile de classes e de modas em torno das crianças e das diversões populares.
O reboliço e as fotografias de família junto aos corações de papel e flores, devidamente emoldurados por uma fonte artificial de água pura, é a revelação de que afinal o mundo até é capaz de ser plano, tão semelhantes são as expressões dos adultos e das crianças, podia afinal de contas tratar-se de um fim de tarde de domingo em qualquer província alegre do, aqui desconhecido, extremo ocidental do mundo chinês.

E o regresso de autocarro é uma revelação de cheiros e mestiçagem onde o velho uigure não se esqueceu de mandar levantar o jovem chinês para o mais idoso dos ocidentais se sentar.

 



terça-feira, 24 de dezembro de 2019

SILK ROAD #10 – A mulher do Deus Sol



Na avenida principal de Tashkurgen rareavam os transeuntes no fim da tarde que se iria eternizar porque a noite chega sempre muito tarde, não porque se viva a 3,800 m de altitude, nem por ser Verão junto do Pólo Norte, mas simplesmente porque, nas fronteiras ocidentais da China, o tempo vive sempre adiantado em relação à luz, esteja o dia a nascer ou a morrer.
Entre lojas e oficinas de ofícios tão variados como é esperado em qualquer loja chinesa de pequena localidade de fronteira, sobressaia a falta de luz e a insuficiência de modernidade, garantiam-se as necessidades básicas, gente metida consigo mesmo e, a laivos, até parecia que por ali tinha passado uma feira, mas era difícil imaginar de onde viriam as pessoas, do planalto deserto ou das montanhas que fechavam a cidade em direção a um corredor que nos impele a partir, se as fronteiras estiverem abertas.
A aparição da menina Tang, uma nacionalidade e uma soberania indiscutíveis, ela não pertencia a este lugar, provinha da mãe china, falava inglês na perfeição e a sua loja de bolos era luminosa, moderna e resplandecente, a única luz artificial que iluminava para além do essencial, havia mesmo uma auréola de luxo que envolvia os movimentos, os gestos, a vivacidade e os bolos de creme coloridos, cuidadosamente expostos em vitrines com luz e frio.
Rodeada de locais obscuros, ela construiu as pontes para a compreensão do nosso jantar, que nem o cheiro a couves cozidas esmoreceu.
E a menina Tang despediu-se sem tempo para lhe perguntar qual seria o seu verdadeiro destino nem reunir consenso sobre qual a sua verdadeira origem, com a certeza, porém, de que aquele povo não iria jamais comprar os seus bolos.
Neste lugar em que o tempo bem poderia ter a essência de um universo paralelo, em que a cronologia se confunde com a relevância dos personagens e a ousadia das lendas, a menina Tang bem podia ser uma reencarnação contemporânea da mãe do Rei de Qiepantuo, um homem superior e honesto, com uma aparência grandiosa e serena, uma mente vigorosa e um apetite pelo conhecimento, que se dizia ser filho de uma princesa Han e do Deus Sol.
Ou, na capital do Reino Pamir, a menina Tang bem podia ser a própria princesa Han que o Rei da Pérsia tinha tomado como noiva que, a meio caminho entre a China e o Ocidente, tinha ficado retida na Torre de Pedra e que, apesar de encarcerada numa montanha isolada guardada dia e noite, haveria de carregar um filho nos braços.
Um filho do Deus Sol, que a tinha visitado todos os dias ao meio-dia, assegurava um dos criados que a tinha guardado meses em cativeiro.
Verdade que a História nunca mais referiu a princesa Han, mas apenas os feitos do Rei.
Envolto pelas entranhas do mundo, não há lugar mais central que Tashkurgent no encontro entre os dois mundos, e por isso faz parte dos lugares inóspitos cuja função principal é dar luz às civilizações antípodas, uma espécie de lugar mãe, fecundada por crentes, deuses, aventureiros e renegados e cuja única função é espalhar o esplendor das civilizações através da miscigenação das raças e culturas.
E, depois, morrer!
Um daqueles lugares que é fecundado e logo morre, para permitir que os outros vivam e prosperem, mas que volta a renascer sempre que a natureza humana se agita e sai da letargia.
É um lugar sempre efémero, mas de natureza eterna
Por isso todos acreditámos que era a princesa Han que emergia na rua escura e solitária entre uma população que o militar chinês Xuanzang descrevia como não tendo regras nem propriedade, com uma aparência vulgar e revoltante.
De novo renascida, agora que a natureza humana se agita de novo, ou talvez apenas um fantasma, que vagueia entre os descendentes esquecidos de seu filho, porque os vivos nunca a deixaram partir.
Mas não tivemos tempo de lhe perguntar porque ela se desvaneceu na escuridão e a única prova de que provavelmente ela teria mesmo existido é a loja de bolos, que permanecia iluminada e reluzente, mas, da princesa, nem mais um vislumbre.
Verdade que a História nunca mais referiu a princesa Han, mas apenas os feitos do Rei.
E o Rei permanece vivo, no esplendor da grande praça redonda, centrada por um obelisco, sobrevoado por uma águia real que transportava os cumes brancos das montanhas para o novo centro, e jorrava cor e som de dentro do novo palácio real, construído na nova modernidade de vidro e de bandeiras vermelhas pintalgadas de estrelas douradas e o crepúsculo eternizava-se com uma eloquência de quem acredita dominar o universo.
A praça estava vazia mas, como acreditaria Ptolomeu, nos primórdios da rota da seda um local tão relevante como Tashkurgen não será relembrado pelos seus habitantes mas sim por quem aqui passa, reina, professa e exerce o saque como a forma mais convencional de distribuição de riqueza e de afirmação a quem passa de  que as altas planícies dos Pamir não são uma terra de ninguém.
Um ventre ao dispor do mundo, mas que, de tempos a tempos, reclama os seus filhos e massacra os seus usurpadores.
No centro da praça reinava a ordem, o híper realismo e o silêncio, apenas interrompido pelas mensagens, pelas músicas gravadas e a omnipresença da lei.
A trinta quilómetros de todas as fronteiras, bem nos confortes dos Himalaias, as avenidas largas eram varridas por correntes de ar gélido, seria apenas frio ou um calafrio que nos percorria a espinha, não era afinal este um daqueles momentos em que não era pressuposto haver testemunhos?
Agora mais distante, e no planalto imerso numa imensa nuvem de ventos e chuva sobrepõem-se os sons dos cascos dos exércitos mongóis, o caminhar pesado dos monges budistas, os passos leves dos bandidos, dos espiões, dos aventureiros e dos comerciantes de longas distâncias e histórias
Do alto do castelo em ruínas que desafia a imensidão do planalto, predominam as sombras da longa dinastia dos Senhores do desfiladeiro e dos viajantes que procuravam proteção.
E sempre que se dissipava a nuvem de ventos e chuva, uma luz intensa iluminava as ruínas do castelo  e as sombras do Rei de aparência grandiosa.
A princesa Tang e o Deus Sol fecundavam o Rei da nova ordem!



sábado, 7 de dezembro de 2019

SILK ROAD #9 – O torneio das sombras






No território uigure o tempo começa sempre duas horas mais tarde e este condicionalismo geopolítico altera todas as perceções na chegada, porque o Sol respeita o regime e apaga as sombras, inunda de cor o depósito de água e de luz os montes brancos que marcam o fim do deserto, mas a cidade entrega-se aos elementos.
E, por isso,  a chegada a Kashgar faz-se ao ritmo da cidade adormecida, os viajantes arrastam-se na plataforma, ninguém parecia querer deixar o sono preso nas carruagens do longo curso, e o sono arrasta-se com as sombras oblíquas que constroem novas geometrias, propaga-se pelos tapumes da gare encerrada para obras, pela destruição criativa que povoa os espaços e até os guardas reservam gentileza e complacência no último portão antes da saída para a rua.
Moderada e certamente perdoada por terem saído do seu espaço de conforto, sinais de que o progresso é tão sôfrego que se torna descuidado, neutraliza os guichets eletrónicos e os balcões de atendimento dos guardiões do templo e da ordem pública e, esporadicamente, até lhes sonega a  soberba.
E a sonolência do tempo adiantado em relação às pessoas é inundada, sem aviso, por uma onda de ásia central, descendentes do império otomano reincarnados numa horda de taxistas, e alguém notou que não havia fronteiras na planície, homens de outra estirpe pareciam ter cruzado a fronteira pelo lado das montanhas, aproveitando as indefinições de fuso horário e o amanhecer tardio.
Agitam-se como se não houvesse dualidade no tempo, um não reconhecido pelo regime e outro pela nação que não altera o biorritmo, em prol do conforto da diversidade religiosa.
Indiferentes à manhã que amanhece tarde porque são oito da manhã, mas parecem seis e, de facto, para a maioria da população são mesmo seis, porque as ruas estão desertas e a luz é oblíqua e por isso, associação retardada, o depósito de água parecia em chamas.
Exceto no parque de estacionamento da gare em ruínas onde se ouvem os sons do bazar e a nacionalidade uigure se apodera da cidadania chinesa, na convicção do argumento, no fervor da sobrevivência e na insanidade da condução, uma fúria que se confunde com o folclore do regateio e com as imagens e os sons das mil e uma noites que jorram do ecrã do veículo , exatamente no local onde esperávamos vislumbrar o taxímetro.
Mas este exército de filhos de Muhammad, montado em camelos amarelos de onde jorram odaliscas dançantes, avança sobre as avenidas sem margens como se ainda houvesse memória da última rebelião  e houvesse um destino traçado, o de cortar o acesso dos oásis uigure dos confortes da mãe china.
Mas a falta de resistência e de interesse dos esparsos transeuntes, engolidos pelo espaço, colocava a insanidade da sua condução dentro da perspetiva da sua própria faixa de rodagem, não há salvação para os filhos do Emir de Kashgaria, porque Kashgar não vive mais numa dinastia enfraquecida nem no vértice do triângulo de três impérios, sedentos do controlo dos mares do sul.
Cedo pela manhã se entendeu que aqui ainda havia finalmente um país uigure, mas não havia espaço para equívocos na cidadania, agora que os russos e os ingleses não estão apenas separados por algumas centenas de quilómetros de montanhas e desertos, nem tempo para o exercício de competências negociais dos aventureiros nómadas
No Hotel Semeon, às nove da manhã, dormitava-se encostado ao balcão da receção, uma trincheira de madeira maciça repleta de escalas de serviço, papéis por arquivar que disputam o espaço com o pó, e que se escondem por detrás do quadro dourado dos câmbios de moeda forte , com os arabescos das prateleiras que expõem peças do imaginário orientalista nas cornijas arredondadas, lembranças abandonadas por um ideal do oriente concebido pela mente dos diplomatas ocidentais.
Ao fundo da receção, uma parede verde cobria-se de camelos esculpidos em prata que caminhavam em caravana ao longo de um cenário de encantar em que a coerência arquitetónica cedia ao romantismo dos lugares exóticos, onde os minaretes despontam das montanhas e o deserto invade a mesquita em socalcos.
Apenas os seis relógios suspensos sobre a montanha, os minaretes, a mesquita e o deserto nos poderiam colocar no centro da intriga mundial.
Em jeito de moldura, da esquerda para a direita, Moscovo, Paris, Tóquio, Pequim, Londres e Novo York, em língua chinesa e tradução ocidental, todas as horas do mundo moderno.
O primeiro impacto com o átrio do Seman Binguan, imerso na obscuridade e nas sombras profundas, é de um reencontro com a familiaridade livresca da mãe de todos os romances de espionagem, vividos  em locais exóticos em estado de guerra latente.
E, por isso, o átrio vazio e pouco iluminado era tão familiar quanto fora do contexto da Kashgar real, exatamente como imaginávamos que fossem as reminiscências do grande jogo, a envolvente mais exótica das tramas diplomáticas da mudança de século, onde os diplomatas viviam e competiam neste remoto oásis, sonhando com aventuras que nunca iriam viver porque consta que o torneio das sombras nunca foi uma ameaça real, conspirando e planeando a queda do adversário, enquanto partilhavam a mesa de jantar e as bebidas no bar, acompanhados de Porto, cristais e guardanapos de linho.
E quando olhavam para a paisagem redentora, entre a receção e as horas do mundo, despertava-lhes a vontade de agitar os nómadas indómitos.
No antigo consulado russo reina a paz do santo sepulcro e os empregados professam os princípios da não ingerência, como se lhes tivesse sido incumbida a tarefa de preservação das reminiscências de um passado de verdades dúbias e de teorias da conspiração que ainda ressoam das suas paredes, nos corredores decorados de cor e de exotismo, nos pátios despidos de árvores e de verde, tudo submerso em frascos de clorofórmio.
Perturbadora esta visão estrangeira do oásis, que não resiste a cada nova imersão da cidade real.

E saímos de novo para o país uigure onde perdura uma visão colorida e cosmopolita da rota da seda, porque, no sangue de Kashgar circulam a ânsia de trocar e, ao contrário do que temíamos, as competências negociais dos aventureiros nómadas.



sábado, 19 de outubro de 2019

SILK ROAD #8 – O longo rio da História





Elas receberam-nos de braços abertos junto ao portal dos detetores de metal e apesar do seu ar jovial, as seguranças apenas pretendiam exemplificar o que tínhamos de fazer se o portal apitasse – e este apitava sempre – e era um prelúdio para o que seguiria.
A igualdade sexual como uma conquista do socialismo, mas sem preconceitos ideológicos.
E não se trata de igualdade de oportunidades mas de igualdade de poder, de exercer o poder, de dar ordens, de nos fazer frente num controlo de segurança, de nos apalpar sem diferenças de género, sem falsas cortesias nem desnecessários abusos de autoridade, apenas os gestos necessários, levanta os braços, as mãos plásticas percorrem a silhueta em movimentos que denotam uma leitura atenta dos manuais de segurança, sem distinção das especificidades de género, agora volta-te, com um gesto brusco e fechado da china central e com um impercetível sorriso da província da mestiçagem.
A despedida faz-se em grande, muito diferente da chegada na penumbra, numa gare ainda percorrida pela obscuridade do antigo, certamente em lista de espera para a demolição.
A gare ferroviária da nossa despedida é central, nova, reluzente de vidro e cúpulas bem desenhadas e de silhuetas futuristas.
Adivinha-se futuro nos milhares de metros quadrados de quarteirões terraplanados que separam a nova gare da cidade, mas os guindastes não dão descanso porque nesta terra árida, precisam-se de sombras e os blocos de apartamentos fazem sombra e irão albergar os novos colonos destes espaços.
E as seguranças da gare são o rosto e o corpo da nação pragmática que não confisca os líquidos mas também não nos concede o direito de escolha, bebes e pronto, fica resolvida a dúvida se é água ou se é um elemento ácido ou explosivo, e nós ficamos a perguntar-nos o que aconteceria se sugeríssemos a alternativa de deitar a água no lixo. 
Com um fardamento impecável que realça a juventude da cidadania dominante.
Há episódios tão gráficos que dispensam considerações ideológicas, mas realçam a diferença de perspetivas que nos separam, e quase nos enternecemos com o esforço dela em me ajudar a fechar a mochila repleta de roupa suja e outras superficialidades sem nunca deixar de pensar que é mesma miúda que insistiu que eu bebesse a água, atitude impensável nos nossos padrões, certamente  entendido como uma intromissão na liberdade individual de escolha e, como se não tolerássemos a ideia de apanhar alguém em flagrante delito e que o politicamente correto prefere que se eliminem as provas à possibilidade de provarmos a nossa inocência.
Perdemo-nos nas nossas inseguranças e eles nem se questionam sobre os direitos individuais, simplesmente porque não faz sentido, se trazes a água, é certamente para beber e não para a deitares fora, portanto beber a tua água que trazes contigo é, de facto, a atitude correta, enquanto os nossos caixotes do lixo continuam atulhados de plástico, apenas porque a nossa herança humanista nos impede de duvidar das pessoas mas não nos impede de lhes confiscar os recipientes.
Usamos os mesmos padrões de consumo, mas entendemos todos os detalhes da vida em comum de forma diferente, antagónica mesmo, é a forma diferente como combinamos os fatores que torna a linguagem gestual quase surda. 
Haja vontade ou não. 
Por isso tudo nos parece familiar, antes e tudo soa a novo, depois, há uma sinalética abundante, um recurso hiperbólico às animações e às cores, uma ansiedade de sobrepor ruídos sobre a multidão, fazer a diferença entre milhões de mensagens não subliminares e esta recusa dos padrões da doce subtileza ocidental faz com que, no fim do dia, sejamos sempre incapazes de entender o cerne do dragão.
Apesar da semelhança dos códigos de barras, das bicicletas alinhadas nos dispensadores dos passeios, da tecnologia digital das redes sociais, das modas da juventude (inquieta?)
No museu da cidade de Turpan a história da região é contada na primeira pessoa, não deixando equívocos quanto à origem da ocupação civilizada da região, a partir do seculo II BC, retirando o necessário relevo aos longos períodos de ausência, aos quatro seculos de ocupação uigur, à invasão mongol, até porque tudo acabou bem e as dinastias da china imperial voltaram a impor o poder no século 18.
Um museu do antigo regime, gasto na aparência, mas sofisticado na substância e na justificação  antropológica para a convivência multicultural , segundo um prisma dominante.
Para que não restem dúvidas de qual a mensagem oficial, a conclusão é mesmo o último expositor do museu com uma legenda bilingue, para que não possamos evocar a falta de compreensão: 
“No longo rio da história, numerosos grupos étnicos e raças habitaram a bacia de Turpan, ( e a lista é longa e repetida sem o esquecimento de ninguém) , todos deixaram o seu legado em locais únicos na cultura e nas criações e uma contribuição decisiva para o desenvolvimento da História.
As religiões que prevaleceram ao longo dos séculos influenciaram e continuam a alimentar a mente das pessoas desta terra.
Turpan tem sido um local onde diferentes povos e religiões coexiste e se misturam de forma a alcançar o progresso comum, desde os tempos antigos…
Que absorvamos a grande herança dos nossos antepassados, tomemos a história com um espelho para nos guiar no crescimento do futuro, para estabelecer a unidade e as relações harmoniosas entre diferentes grupos étnicos, e fazer progressos em conjunto para alcançar um futuro ainda mais belo.”
A nossa ironia é desbragada porque, apesar da mensagem ser revisionista, a nossa sensibilidade ocidental soa a fracasso, pelo menos no que a unidade e futuro mais belo diz respeito.
Apesar da nossa falência em contrariar o destino do oriente e do mundo, continuamos a insistir, no íntimo, que a última afirmação do regime parecia um espelho invertido da realidade vivida no bairro uigur.
Mas o prisma oriental da realidade desfaz as nossas expetativas de tragédia, uma vez mais, no último troço do expresso do ocidente, em direção a Kashgar.
No compartimento 7 vive-se no esplendor da irmandade uigur um casal 81 51 que casou por amor, que transborda farnel e cheiro a bedum de cordeiro, o velho fala com as mãos e procura negociar a jovialidade com um banquete.
No compartimento 6, o nosso vizinho chinês comporta-se como um distinto guerreiro que mantem a postura, mesmo depois de C. lhe ter arrastado a mala dos seus pertences mais queridos, para longe do seu espaço de conforto e a  sua barba fina lembra-nos as grandes epopeias das dinastias do início de milénio, em que a honra se lava com sangue e com espadas afiadas.
Esta imagem romântica da antiguidade chinesa deixou uma boa impressão sobre o rapaz, apesar da troca de opiniões ter sido infrutífera.
Acabámos a trocar cigarros no corredor de fumo, olhámos um para o outro, acenamos e continuamos a fumar olhando expressivamente para o horizonte, que agora se chama Korla.
Na carruagem 7, trocamos postais de lisboa com os amigos uigur, o ancião colocou o punho junto ao peito e fez uma vénia, olhou para o panteão fez o sinal da cruz ao contrário, revelador de uma inesgotável tolerância religiosa.
E chegámos a Kashgar no expresso da harmonia multicultural, aos nossos olhos, rústica e estranha, porque contradiz a nossa visão orientalista, cheia de véus, túnicas, poeira e pinceladas difusas a pastel.
Mas, aos olhos deles, navega-se no longo rio da história, em cores vivas de um híper realismo contemporâneo.
Mais uma vez, fomos incapazes de chegar a uma conclusão sensata.
E um calafrio de euforia, começou a percorrer-nos a espinha.




domingo, 13 de outubro de 2019

SILK ROAD #7 – O rafeiro branco na Terra incógnita




O rafeiro branco é o único que não revela inquietação pela acutilância do estado policial, na chegada a Xinjiang, uma nacionalidade diferente pela raiz histórica e uma mesma cidadania por oportunidade geopolítica.
Rebola-se no alcatrão da via rápida de seis faixas que, das suas sete e meia da manhã de movimento reduzido, ainda exala uma temperatura suportável da brasa que se espera hoje na segunda maior depressão do mundo: Turpan.
Na segunda barreira policial de um dia em que entra uma nova língua no estacionário chinês, o árabe.
Apenas o rafeiro branco se rebola no alcatrão morno, mesmo em frente à mesa do polícia cheia de passaportes e vazia de instruções, como que a relativizar a nossa relevância e a nossa mania de complicarmos o que desconhecemos.
E, aos olhos do rafeiro branco, não há diferenças substanciais entre os nós e os eles porque para ele, falamos todos a mesma linguagem, afinal de contas também nós não distinguimos um ladrar chinês, uigure ou ocidental e para ele, não passamos de um bando de humanos, de raças e roupas diferentes, rebolando-se à volta de uma mesa de madeira cheia de entulho, provavelmente e, segundo ele, para passar o tempo no meio da autoestrada que ainda não tem movimento, não porque seja cedo  mas porque o futuro ainda não chegou.
Achamos nós, não ele, porque estes espaços de quase futuro exalam um forte odor de presságio, mas para o rafeiro branco cheira apenas a alcatrão fresco e a poeira do deserto.
E, no silêncio da manhã na via rápida do futuro, os humanos continuaram a rebolar-se à volta de uma mesa de madeira, muito depois do rafeiro Han se ter fartado e ter desaparecido por entre as bermas cobertas de vegetação, seca e rastejante, daquela que rebola com o vento e transporta recordações pelo deserto adentro, e pelo seu à vontade e forma discreta de retirada, talvez fosse mesmo um cão local.
E era a nossa vez de interiorizarmos as crenças chinesas nos demónios que, para lá das portas para as regiões ocidentais, esperavam os viajantes que por ali se atrevessem a passar, os monstros da terra incógnita.
Mas, ao contrário dos tempos da antiguidade, alguns de nós (pelo menos um de nós) adivinhávamos o que existe para além, somos ou não provenientes das terras do ocidente, e nunca deixámos de nos convencer que os monstros da terra incógnita não passavam de um mito de Adamastor, devidamente fardado, destinado a testar a nossa perseverança e avaliar a nossa fibra, agora que tínhamos abandonado as terras introspetivas da mãe china e nos iríamos embrenhar nas terras das novas multiculturalidades.
Bem, talvez alguns de nós tenhamos acreditado mesmo nos monstros da terra incógnita quando desembarcámos na luz fria do amanhecer, nós e a idosa uigur, conduzidos através dos corredores da gare escurecida pelo tempo em direção a uma sala de espera que se assemelhava a um monumento do antigo regime, e tivemos uma visão que só conhecíamos do cinema, caras fechadas, detetores de mentiras e metais, um guichet e uma eternidade de espera por um destino incerto para os viajantes do expresso da meia-noite, mas eles tinham um ar tão familiar, para quem vinha da China.
Mas ainda bem que havia quem acreditasse que, quando sol nascesse e dissipasse as sombras da madrugada, iria submergir das areias do deserto um cidade repleta de memórias nómadas, um povo que não conhecia de forma precisa os contornos das suas fronteiras e gentes que reconheceriam os estranhos porque o seu desapego às raízes os tornava cidadãos de todo o mundo e de qualquer lugar.
E o cão rafeiro a rebolar-se era um bom presságio.
E a cidade devolveu-nos a agitação e o ruído das crianças que pululavam na poeira que cobria o pátio do restaurante, a mesma matriz de uma alimentação comunitária pela manhã, mas a sala estava forrada de sons e reinava uma anarquia de pão, gorduras e carne e uma partilha de vidas em redor das mesas do pequeno almoço, a primeira refeição do dia era como se o bairro celebrasse a boda dos filhos pródigos, todos os dias, e não havia rostos enfiados na sopa de noodles e olhares desafiando o infinito em silêncio, sem espelho.
A entrada nas portas de Turpan foi quase triunfal, afinal havia razões para que ela fosse impenetrável à intromissão de estranhos, “é o princípio de uma china diferente, menos uniforme, menos imperial” porque prevaleceu durante séculos nesta zona de fronteira a audácia e a inquietação dos povos nómadas.
As primeiras impressões são, por convicção, as que prevalecem no subconsciente quando se alargam os fossos da memória.
Mas em Turpan, a aculturação ao poder dominante é tão galopante que afoga as primeiras impressões, ao longo de um só dia e, o valor histórico das ruínas, como o primeiro local que disfrutámos sem limitações e que datava mesmo do período da rota da seda, apenas prolongou a miragem que crescia com a sede que apenas um magnifico café gelado de origem chinesa ,acalmou.
A sede e as miragens.
A água será sempre o primeiro e o último dos milagres do deserto e, quem a domina, estabelece as regras e os equilíbrios na rede de entrepostos que liga os mercados e as civilizações e o milagre da água em Turpan, explica-se pela engenharia e pelo cálculo exato dos desníveis, uma ciência milenar sem dono preciso porque o mundo já foi global e, nem sempre, as heranças externas se construíram sobre tragédias e cadáveres.
Mas à chegada ao vale, os túneis azul e púrpura irradiavam um sentimento de pertença dos novos donos do deserto e de todas as fronteiras do ocidente.
Uma afirmação folclórica de poder, com chão de vidro sobre a água gelada das montanhas, uma afirmação de superioridade do presente sobre o passado, dos conquistadores sobre os inventores.
E o frio dos subterrâneos de Turpan diluiu o que restava das primeiras impressões, antes ou depois do nascer o sol na planície.
A mesquita de Turpan  é um templo sóbrio, singelo que chora sozinho a poeira dos tapetes que não voam e a fé que não se professa.
Não há fiéis como havia em Xian, também é verdade que ninguém se preocupa em fingir e a mesquita de Xian vivia enclausurada entre jardins orientais e pagodes chineses, e somos obrigados a conceder que talvez a profissão de fé exija algumas cedências formais, (especialmente) aqui ou em qualquer outro lugar.
Mas às portas do deserto as vozes do profeta soam fracas e as mensagens difusas.
As vinhas de Turpan são o ultimo refúgio da comunidade uigur, crianças que brincam nas ruas, velhotes sentados à porta das casas, das oficinas e da pequena mesquita da rua, famílias que dormem e comem no pátio interior, as camas que se veem do exterior e pressente-se que a comunidade professa dentro de portas, as crianças acenam com curiosidade, puxam os adultos para a curiosidade e transportam os seus sonhos, em cima das suas motas de caixa aberta.
Enquanto aguardam, há tinta vermelha que omite alguns símbolos da fé, desenhados em azulejos colados sobre as portadas da rua sem asfalto, que transporta pelo ar os tons de laranja do fim de tarde de verão.
No final da rua acaba o bairro, atravessado por uma avenida de quatro faixas, arranha céus de pequena largura a ameaçar invadir o bairro e um carro de patrulha circula a avenida em baixa velocidade e sirenes de luz ligada.

Não obstante, a velhota sentada numa cadeira no passeio insistiu em virar se para a luz, compor o vestido e posar para uma fotografia de família.



segunda-feira, 30 de setembro de 2019

SILK ROAD #6 – As relíquias de Mogao


Espiritualidade não é a associação mais óbvia com Luan (um nome oficialmente não confirmado, porque por aqui ninguém se identifica na lapela) que se exprimia em inglês com um experimentado sotaque americano e que, afinal nunca tinha saído de Dunhuang “estudo, estudo e estudo”, enfatizava a professora, espalhando a boa nova de que a sociedade cientifica dos séculos presentes, sempre havia patrocinado as caves, uma garantia de que herança dos budistas haveria de sobreviver aos píncaros da infantilidade, momentos a que a história preferiu dar o enfoque de revolução cultural, 
Dunhuang era longe, pouco relevante na geopolítica de fronteiras cerradas e os cientistas protegeram Mogao. 
Pelo menos, no seu passado recente, mas o despertar foi tardio para os orientalistas ocidentais que pulularam em todos os locais exóticos do mundo, nos primórdios do século vinte, à procura de tesouros que sustentavam a sua visão exótica e romanesca do oriente profundo.
Por isso, há sempre no íntimo chinês contemporâneo um reconhecimento de quem lhes rouba os tesouros.
Por isso, foram ensinados a desconfiar das expressões faciais joviais e descontraídas.
Mesmo no metro e meio de erudição da pequena Luan e do seu molho de chaves.
Mas o seu metro e meio de erudição revela-se desastroso no que à procura da espiritualidade budista nos dizia respeito, porque nunca nos conseguiu transportar para as origens das grutas dos mil budas, para as lendas que sustentaram a fé durante, pelo menos, treze séculos, até ao abandono pelos poderes terrenos, da visão do monge Luo Zun que terá vislumbrado mil budas flutuando sobre o monte dos três perigos,  e por isso desistiu da sua viagem para a India, ou para os momentos de fé em que Buda sacrifica o seu corpo ao tigre esfomeado como se fosse um estado temporário de transição em direção à reencarnação.
Por cada porta de alumínio que a nossa Luan abria, entre as dezenas de outras que se mantinham fechadas por pudor, precaução ou apenas para ganhar tempo, desdobrava-se em factos, explicava a simbologia, as cenas pintadas que são maioritariamente cenas do dia a dia, desenhadas com uma simplicidade evangelizadora em que os símbolos mitológicos chineses são a representação dos novos territórios de inspiração divina e não se esquecia de nos alertar para os detalhes que revelavam as influências das civilizações distantes e quase se desculpava pelas imprecisões provocadas pela erosão do tempo e do abandono de sete séculos, que procedeu a restauração da soberania chinesa e da dinastia introspetiva Ming.
E até pela pilhagem dos aventureiros ocidentais do século vinte, que se apelidavam de arqueólogos.
De facto, os treze séculos de florescimento das grutas de Mogao contam a história dos encontros de culturas, a das viagens para lá do inóspito, quando Shao Han abriu a rota da seda em direção ao ocidente eliminando a oposição das tribos nómadas, mas também da vertigem das conquistas que encontravam no interior das montanhas o conforto espiritual dedicado aos aventureiros mas também aos inúmeros senhores da guerra que procuraram perpetuar, na sua efémera existência, as suas criações salvaguardando, por isso e sempre, a tolerância religiosa e, claro, o comércio.
Mas, como em quase tudo na China, precisamos das lendas para absorver o espírito e respirar a história e, por isso, enquanto a nossa mãe Luan procurava as chaves que deviam abrir as caves e as portas de cor prateada, de material gasto e de uma modernidade decadente, nós tentávamos pisar as flores de lótus tal como o menino Buda teria feito quando deu os primeiros passos, esperando que qualquer chão que pisássemos, as flores desabrochassem e conseguíssemos atingir a pureza espiritual.
Mas quando entrámos, percebemos, diante a serenidade do buda deitado, um estado apenas atingível com muita meditação, a nossa incapacidade de atingir o Nirvana e de nos libertar das águas lodosas dos pântanos terrenos, e perdemos a noção da cronologia da história na seletividade de Luan pela escolha da amostra de entre centenas de grutas, a dinastia do auge, seguidos de cem anos de caos e temor, trezentos anos de reunificação e paz relativa, construída sobre frágeis alianças e casamentos, antes do grande vendaval de Ghengis Khan e do regresso às origens da China profunda e solitária.
E enquanto trazíamos a nossa Luang para a nossa fotografia de família junto ao arco do triunfo do novo, não deixávamos de sentir que os missing links eram muito relevantes na herança de Mogao e que foi o longo período de paz, de introspeção ( e de abandono) que maiores estragos provocaram na herança budista da China porque, apesar das lendas de Luo Zun, o budismo nunca foi uma crença interna e, por aqui ,alimentava-se da globalização.
Também é verdade que a relação da China com as relíquias e com o budismo sempre foi  predominantemente de conveniência e, sem a procura da reencarnação, da inspiração de Buda, da sensibilidade e da crença nos milagres dos elementos, sobra a curiosidade histórica.
E o folclore dos novos ricos criados pelo regime.
Mas deixámos a Luan acreditar que tínhamos visto a luz, em Mogao
E enquanto devorávamos a sopa de noodles com carne, comentávamos a relevância histórica das heranças budistas, observávamos com uma descrição impossível os miúdos fardados que saiam das escolas em bando e nos acenavam pela nossa raridade e os velhos que jogavam dominó na praça das festas, por detrás da mesquita, e nos olhavam fixamente, mas incapazes de acenar ou de sorrir.
E enquanto nos procurávamos relacionar com uma sopa de noodles instantânea na gare ferroviária de Lyuan, começámos a entender que, quanto mais procurávamos a relevância histórica das heranças da rota da seda mais nos deixávamos seduzir pelas referências recentes do ocidental fim de mundo, das inevitáveis terras de fronteira, para lá da grande muralha.
23:41 destino da noite, Turpan




domingo, 22 de setembro de 2019

SILK ROAD #5 – Areias movediças no ocidente longínquo



Desde a dinastia Han que a História da China nos coloca, neste local, no fim da grande muralha,  para lá das terras de fronteira.
E, nas portas das fortalezas, reinaria o espírito do exílio e jaziam as pedras lançadas pelos expulsos, na esperança de que estas alcançassem a muralha e este bom presságio lhes permitisse  voltar a ver a terra da pátria mãe.
E, à chegada a Dunhuang, encontrámos os primeiros sinais de que há heróis com vontade própria, assaltados pelo espírito de iniciativa, que desprezam os perigos, as convenções e os interesses de estado 
E apesar de não termos qualquer evidência de termos encontrarmos a porta de Jade, não obstante alguns jurarem que a viram para lá das miragens do deserto, rapidamente nos convencemos que para lá das portas do deserto, vivem os aventureiros e os renegados. 
E a malta procurava tão intensamente os vestígios da grande muralha como o momento decisivo , embalados pelo romantismo dos criadores da história, que nunca cheiraram a poeira do presente do passado que narram, nem se enterraram na lama das guerras fratricidas, que nem nos apercebemos que tínhamos entrado na nova porta de jade por comboio, logo pela linha principal, uma porta de vidro que realçava as manhãs e relativizava as cores do deserto 
Ao fim do quarto dia, ainda nos prendíamos à ideia de que a História, por aqui, se faz de pedras e de caruncho, esquecendo-nos que o que importa é o conceito e a utilidade, face aos desígnios do presente e â necessidade prática de fazer viver mais de mil milhões de seres.
E quando empurrámos a porta da rua, não entendemos que essa era a porta do deserto porque lá fora não havia renegados a tentar adivinhar a sorte pela trajetória das pedras rolantes atiradas à muralha mas havia lagos artificiais dos quais, um dia, jorrariam água, e pululavam os aventureiros entre as fontes imaginárias, as árvores plantadas em fila que, um dia, se haveriam tornar frondosas, aventureiros do ocidente longínquo que desafiavam o mercado e as regras estabelecidas porque, ao planearem no longo prazo, os guardiões do templo criaram novas distâncias entre os lugares e incubaram uma nova geração de empreendedores sem limites nem lei.
Um dia os espaços serão preenchidos e, de entre os sem lei de hoje, serão rebatizados alguns para construtores da nova era enquanto outros entrarão em desgraça e, esses sim, desterrados para lá das novas fronteiras, e não haverá pedras rolantes que os salvem.
Essa será a expetativa, mas junto às portas do deserto a nossa primeira impressão é que tínhamos chegado a uma terra de areias movediças, ou de oportunidades, onde a nova ordem se constrói, por vezes através de atalhos que são tolerados como desígnios inesperados de um futuro que já foi escrito.
E subitamente, P escolheu um entre todos porque, ele a sua agente, pareciam entender um pouco mais  de números e de preços e parecia dono da mais moderna van que se encontrava no parque de estacionamento.
O fascínio dos humanos pelos desígnios da sorte, e a superficialidade dos ocidentais na avaliação das subtilezas culturais do oriente e a nossa ignorância desta nossa fraqueza, levou-nos ao júbilo.
Este motorista e a sua linda van bem podiam ser os símbolos do novo capitalismo de marca chinesa, onde, finalmente, se tinha encontrado a solução para a frágil (e passada) equação entre a qualidade e do preço.
Mas o defeito é o da natureza humana e, ao motorista clandestino, faltava-lhe provavelmente a licença para nos conduzir e esta terceira variável da equação deixou-nos a nós, sozinhos no meio da mata, enquanto o homem, assaltado pelo receio da sua própria ousadia, atirava pedras contra a muralha com a mesma impetuosidade com que tentava explicar a P num chinês tão convincente como impossível de traduzir, que era preciso que voltássemos a pé para a porta e que fingíssemos não o conhecer.
Ou isso, ou outra coisa qualquer, porque nem P nos explicou, nem nós nos aventurámos, sós, para lá da mata selvagem porque, afinal de contas somos ocidentais, mas não tínhamos camelos de duas bossas.
E tal como tudo começou, logo terminou porque, entre ser apanhado ou ser denunciado, preferiu enfrentar o controlo policial que, ou distraído ou compensado pelo gangster, não bloqueou a estrada nem nos dirigiu um olhar, sequer.
E, ainda hoje, nos questionamos se o insolente não nos queria apenas provocar a angústia ou renegociar o preço.
Como, à chegada ao hotel surpresa, inspirado no estilo dragão dourado, onde proliferavam os mármores, o vermelho, os balões e as imagens redentoras, não nos questionámos, sequer, por que razão nos tinham reservado umas instalações tão modernas que até refletiam a luz exterior no chão de mármore e nos espelhos que bem podiam forrar os tetos da entrada principal.
Para o P, sobrou um enorme veado na cabeceira da cama, com um olhar decidido, no seu tamanho natural e no híper realismo revolucionário de quem o criou.
Para nós, outras criações menores.
Nesta cidade (re)criada a régua e esquadro, numa modernidade simplória, estes chineses do interior já olhavam para os pouco ocidentais que os visitam e as muitas crianças que pululavam na urbe faziam-nos especular que este talvez fosse um dos destinos internos de colonização prioritária, um posto de retaguarda da grande fronteira do noroeste, onde os colonos descansam e mantém as famílias no seu espaço de conforto, enquanto constroem com fervor – e certamente algum prazer – o exército do futuro.
Pelo menos, essa era a imagem que nos esforçávamos por desenhar, na nossa ignorância, enquanto nos lambuzávamos de refeições picantes a baixo preço e entornávamos cerveja com o mesmo compasso com que prevíamos o futuro da ditadura esclarecida.
Enquanto os empreendedores esfregavam as mãos, libertavam mesas de chineses solitários e desfaziam-se em disponibilidade e em sorrisos com a nossa fome, mas sobretudo com a nossa determinação em confinar as nossas dúvidas, com a vontade de comer.
A quem paga (quase) tudo é permitido
Quando, tarde adentro, iniciámos a nossa incursão nas dunas (mais altas do mundo) do princípio do deserto que nos transporta para o início da rota sul, em direção aos territórios da Ásia Central, já nos considerávamos especialistas em areias movediças e, especialmente conformados com a persistência (e método) com que os chineses transformam os caprichos geográficos em parques de diversão para consumo interno.
Mas, cento e tal metros acima, a visão das areias sem fim imaginado, colocou-nos nos trilhos da rota sul e, mesmo sem camelos de duas bossas disponíveis (havia camelos, mas estavam ocupados a passear turistas chineses calçados de pantufas laranja até ao joelho – as pantufas eram para proteger das areias, mas o laranja era basicamente um esforço de domar o veado que não abandonava a cabeceira do P.), sentimo-nos predestinados a grandes feitos.
Mas decidimos antes, voltar as costas a muitos meses de areias e tormentas, e correr dunas abaixo na direção do oásis, porque sabíamos que a fome iria voltar e que, se perdêssemos demasiado tempo em terras desabitadas, iríamos perder a essência do que distingue esta rota das outras.
Na praça principal preparava-se a festa, instalara-se um palco construído para permitir vistas largas, demasiado largo para a dimensão da praça, porque a cidade é pequena, mas o tamanho do palco assegura-nos que, um dia, a cidade vai ser grande.
As danças são chinesas, mas festeja-se o fim do Ramadão, as dançarinas são muçulmanas,  mas os fatos são rosa garrido com bordados dourados e a música, os gestos e movimentos, refletem a graciosidade contida que nós, ocidentais, nos habituámos a associar à China de outros tempos.
Por detrás do palco emergia a mesquita local, com a mesma solenidade da sede do partido, porque é relevante que o enquadramento seja adequado, enquanto o âmago da praça se enchia de mestiçagem e de famílias e, até os mais céticos, passaram a acreditar na versão oficial de que há sempre a possibilidade de que a mistura se transforme numa raça única e que assistamos a um período histórico de aproximação com base no aproveitamento do melhor que cada raça, religião ou cultura pode acrescentar ao denominador comum do relacionamento futuro entre povos.
Obviamente que estávamos todos à mesa, na esplanada e rodeados de cerveja e comida picante.
As dançarinas eram jovens e muçulmanas e tiravam muitas fotografias connosco enquanto se riam de curiosidade, perante a indiferença da autoridade local e o olhar reprovador de uma transeunte Huan, que abanava a cabeça e murmurava uma elaborada conjura verbal.
Sem razão nem justificação, o fim de festa coincidiu com a entrada na praça de uma brigada swat, muitos soldados de camuflado, não se anteviam distúrbios à ordem pública, mas também não era necessário porque os miúdos que se escondiam por detrás das viseiras de plástico, não revelavam quaisquer sinais de mestiçagem e os seus olhos espelhavam as instruções de que a ordem pública é uma especialidade de medicina preventiva, assim foram treinados, essa era a missão de um exército e de uma polícia, que garante um território uno e coeso.
E, para quem ousava olhar os miúdos nos olhos, havia vestígios de pânico contido, espelhados nos escudos que os protegiam, porque a sua idade não lhes permitiria saber como agir se o Ramadão, por aqui, não fosse apenas uma cerimónia protocolar.


Perante a indiferença do panda kung fu, dos personagens do mercado noturno, das peças de jade, dos balcões forrados de frutas secas e especiarias desconhecidas, do artesanato local ou dos produtos de consumo de massas e  de uma cidade que volta a acordar com o pôr do sol, porque, com a noite, as poeiras do deserto dissipavam-se e os habitantes locais voltavam a respirar sem máscaras e a sorrir com as luzes.  
O A e o J sorriam também, e bebericavam chá gelado com sabor a fruta, enquanto as jovens explicavam a origem dos bules, do chá e das frutas, sorriam coradas quando eles elogiavam este oásis de bom gosto, treinavam sem receios os primeiros passos desta nova dança chamada inglês e, com uma curiosidade que se refletia nas montras iluminadas da loja, aventuravam-se nas técnicas de qualificação previa dos clientes com vista à maximização das vendas.
Sem entender bem se estas jovens, sofisticadas no vestir, e simples no olhar, no rir e no corar, seriam um produto do regime ou dos ventos de mudança que sopravam das montanhas das areias cantantes.
Com o sabor de chá de frutas, a proteção do veado, embalados pela música das dunas e no conforto das areias movediças, poderíamos ter sonhado toda a noite com a importância estratégica de Dunhuang no cruzamento do corredor Sul da rota da seda com o caminho principal que ligava a India à Sibéria, a Sul através do Tibete, para Norte através da Mongólia.
Sem certezas, nem nenhuma ordem de importância definida.



domingo, 8 de setembro de 2019

SILK ROAD #4 – Os heróis mais do que improváveis



O revisor foi afirmativo, perentório.
Afinal de contas o beliche de cima não é o do meio, e a ninguém é permitido provocar o destino, a aleatoriedade da procura e os registos da sua magnífica pasta onde os nossos bilhetes ficam reféns, por troca de um cartão de liberdade condicional.

E o funcionário certifica-se que cada um dorme no local certo e que ninguém muda de cama mesmo que seja inevitável que os melhores lugares não vão lotar, afinal não é a época alta para os chineses.
É a sua magnífica pasta que lhe orienta o quotidiano e nos tolhe os movimentos
Tudo meticulosamente registado.
O expresso da noite e do dia inteiro não é apenas um meio de transporte em que todos devem, por razões de ordem pública e de obsessão pelo detalhe, ser cuidadosamente arrumados por camadas, mas o grande veículo para que, na órbita da previsibilidade e da resiliência, se realizem os grandes desígnios da nação.
E o grande desígnio da nação é, ao que é possível pressentir, do interior do tubo de ensaio de vidro sem legendas e com proteção acústica dentro do qual viajam todos os estrangeiros, transportar o desenvolvimento económico do litoral sobrelotado para o interior profundo e para as novas fronteiras, uma fórmula de harmonizar o acesso das populações ao progresso, apaziguar sentimentos de exclusão e deslocar chineses para os caminhos da fronteira oeste.
Afinal de contas a mesma ambição que persegue o imaginário chinês dos últimos dois mil e quinhentos anos.
Pelo menos.
Às 3,54h da manhã ninguém dormia nesta horda de soldados que percorriam os corredores sempre que se aproximavam novas chegadas e, afinal, a pasta também servia para acordar os passageiros, que não têm um horário definido para dormir, porque a nação é grande, o tempo é curto, a obra é grande e não existem fusos horários suficientes para garantir um sono noturno a todos os chineses.
Sem uma palavra, sem um sorriso, sem um olhar
Os guardiões do corredor de Hensi apenas pretendiam assegurar que a viagem entre os oásis que deram proveito ao extremo oriental da rota da seda decorreria sem sobressaltos
Oásis, fortalezas e cidades, diferentes perspetivas, ambições e, especialmente, épocas, mas exatamente nos mesmos lugares, porque este caminho foi a única escolha com que a natureza presenteou a ambição dos humanos na história, cercado por montanhas, rios e desertos, à escala de um continente.
Tinha amanhecido quente e seco nos confortes da porta ocidental de Xian, onde os locais ofereciam tostas aos viajantes, para aqueles que partiam na direção do sol poente e que, em breve, se tornariam passado.
Na praça Ximen, ou simplesmente na porta ocidental, já não existem caravanas de mercadores que partiam em grupo com os seus cavalos de Fergan, mulas e de camelos bactrianos de duas bossas em direção ao corredor de Hensi.
O calor do interior profundo refletia as nossas sombras quase na vertical enquanto atravessávamos a praça preventivamente liberta de multidões, forrada de pedra branca e rasgada pela modernidade.
Na praça Ximen já não existem caravanas, mas a porta ocidental é ainda um ponto de partida para o ocidente, de onde partem os comboios  que interligam as cidades fortaleza, os oásis e as cidades do Noroeste.
Mas na porta ocidental de Xian, cuidadosamente recortada na muralha que circunda a cidade histórica habita a contenção, os homens das braçadeiras vermelhas que coordenam o tráfego, os primeiros olhares que perscrutam as nossas sombras que ocupam de forma generosa os espaços vazios, sem que nos seja permitida qualquer reciprocidade e nunca entenderemos se nos olham com curiosidade, desprezo ou indiferença.
Paira no ar uma desconfiança oficial pelos bazares sem controlo, pela euforia das partidas, pelos heróis que desprezam os perigos, as convenções e os interesses de estado e que acreditam que o comércio é o único sobrevivente às utopias dos grandes impérios que, normalmente a história se encarrega de tornar efémeros.
Dentro da gare, respira-se um esforço de modernidade asséptica, sem classes nem ajuntamentos, sem ruídos de fundo e de expressões contidas, mas a caminho do ocidente ainda se distinguem os conectados  em rede e os que olham o vazio enquanto devoram o concentrado de noodles em água a ferver e seguram os seus pertences com as cordas que os agarram às inevitabilidades resultantes do progresso.
Dentro da gare, apenas os locais sagrados permaneciam vazios e suspensos no tempo : a sala de espera dos militares, um monumento ao passado e o salão restaurante que parecia concebido para o futuro que vai chegar, onde somos surpreendidos pela modernidade dos olhares e dos sorrisos, uma juventude que se esforça em agradar e serve cafés expresso a três euros com o mesmo detalhe com que artesãos desenham os papiros no bairro de Shuyuanmen.
Enquanto a nova China desfilava sob os nossos olhos a um ritmo de comboio expresso e se confirmavam todas as promessas de uma natureza de elementos que não se conformam e das realizações humanas que não param de desafiar a natureza, enquanto comemorávamos com circunstância e com uma pontinha de soberba a travessia do rio amarelo que, naquele local e com aquela chuva, até nem parecia grande coisa, mas ninguém reconheceu a desilusão, não nos saía da cabeça uma voz que nos repetia sem cessar que os camelos são animais domésticos invulgares, carregam enormes cargas no seu dorso, correm rapidamente sobre as areias movediças do deserto, demonstram coragem nos lugares perigosos e tem um secreto e subtil  conhecimento das molas, como amortecedores dos caminhos difíceis.
Entre os cavalos de fergan, mercadores sem nome, distintos empreendedores, dinastias guerreiras e os invasores das estepes ocidentais, estes eram os verdadeiros heróis da rota oeste
Os camelos de duas bossas bactrianos

Sem chapas na lapela, porque o que interessa é o resultado do trabalho comum.