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quinta-feira, 16 de maio de 2024

A Arca de Noé

 


Atravessamos a fronteira e a perspetiva histórica muda, de um lado as raízes do império persa, doutro o poder e a pompa do império otomano.
Parece simples, mas não é, porque o império otomano surge de uma fração dos impérios persas árabes após o vendaval das invasões mongóis, resultando da cisão das dinastias Turcas. 
E, nesta encruzilhada histórica, geográfica e cultural de curdos, turcos, persas e arménios, não há fronteira que garanta a independência de fontes e de espectros culturais. 
E em Dogubayasit, a primeira cidade no Curdistão Turco, a fronteira era apenas uma mera formalidade na mesma fita de cinema mudo em que nos tornávamos figurantes, os homens no café "sempre os mesmos homens nas mesmas ruas" mulheres e homens sempre separados nas ruas, elas tão cobertas como no interior curdo do outro lado da fronteira e, naquele momento, as cidades do Irão pareceram-nos um oásis de liberalismo social e igualdade de género.
Atravessamos uma fronteira, mas não há álcool ao jantar e as diferenças só se revelam quando ligamos o som ao filme e há nova linguagem gestual em cada interação com este novo povo geográfico, os turcos não têm tempo para a bondade dos iranianos, contam muitas estórias e abominam o preço fixo, previamente acordado. 
Afinal, atravessamos uma fronteira, a do valor do tempo e a do valor do dinheiro. 
Há provavelmente um denominador comum num povo que é o mesmo, apenas siameses precocemente separados à nascença por países que eles nem reconhecem, um povo único dividido entre o apelo do Islão e o desprezo que o Islão lhes dispensa. 
E, para quem os olha com uma curiosidade de quem está de passagem, não há diferenças relevantes entre uma república islâmica e uma democracia musculada, porque as barreiras policiais e a presença militar diferem apenas no alfabeto e estes gémeos continuam a preservar as suas origens comuns através do contrabando que é uma fusão de conveniências, porque é uma forma rentável de combater a autoridade dos estados e de manter os laços clandestinos entre eles. 
Por isso, na única avenida pedonal de Dogubayasit, a manhã tardia está pejada de homens ao telefone, contrabandistas que trocam mensagens na avenida principal, mensagens subversivas ou apenas comerciais só eles sabem e a polícia de Erdogan gostaria de adivinhar, mas a necessidade de ser eleito obriga a manter uma autoridade menos intrusiva que se limita a passar de carro patrulha, sem se intrometer na avenida pedonal, avisando da sua presença com mensagens por altifalante, e não interferindo com as horas de chamamento de Alá. 
E também entre os homens comuns, seja de um país diferente, de um povo diferente ou de uma religião diferente, também por aqui, como também por todo o Irão, a perceção que eles têm dos vizinhos, dos rivais e dos propalados inimigos é tão diferente da propaganda oficial dos regimes, há uma suavidade respeitadora como falam dos méritos "The world is all the same the problem are the politicians" sem falsos pudores da lógica das sanções "se não usarmos esses medicamentos todos de Israel morremos" e com uma ironia mercantilista sobre os disparates Ideológicos "Thanks God Ayatolah “ pelos drones enviados para Israel" assim vocês vieram até nós, "se posso comprar bom, porque é que tenho de comprar imitações? " 
Também no palácio Ishak Pasha, o último dos três sultões que concluiu esta obra de noventa e nove anos, não há fronteira que garanta a independência de fontes e de espectros culturais. O palácio, agora candidato a património da UNESCO, tem várias caraterísticas distintivas, para além da sua localização com vista deslumbrante sobre o vale, a cidade e os montes de neves eternas, foi construído na confluência de todos os impérios do centro, de todas as rotas comerciais da então quase extinta rota da seda e, segundo os especialistas, com influências da Anatólia, Arménia e do Norte da Mesopotâmia. 
E, mais uma vez descalços, sob a abóbada florida da mesquita do palácio, um frio que nem o Sol exterior nem as alcatifas interiores nos conseguem fazer esquecer que estamos rodeados de neves eternas, sentimo-nos esmagados pela incredulidade que sempre nos assalta na Ásia central, como é possível que os locais de aparência mais remota do planeta inteiro tenham sido, e sejam também , as mais complexas e fascinantes encruzilhadas históricas, geográficas e culturais, instáveis placas tectónicas de um mundo em ebulição, um terramoto que se adivinha a qualquer momento, seja por causas naturais ou humanas. 
A fugir do dilúvio que provavelmente não vai acontecer, pelo menos hoje, saltamos para a arca de Noé, nós como os escolhidos para representar a natureza humana, entre um zoológico de seres que pretendem representar a diversidade do mundo animal, perante Deus. 
O local, no monte fronteiro, ou na base do bíblico monte Ararat, esse sim, vivo e repleto de neve, não é muito convincente quanto à verdadeira natureza da lenda, afinal de contas o livro sagrado fala de um homem que viveu novecentos anos e que foi pai aos seiscentos, mas um discreto investigador de nacionalidade duvidosa apresentou uma teoria sustentada pelo quase invisível centro de interpretação, sem visitantes e com um zelador quase desmotivado. 
Afinal de contas, tudo terá acontecido cinco mil anos antes de Cristo, muito antes da fé humana ser capaz de venerar um único Deus. 
Como diria mais tarde o Jorge, o viajante, a lenda completa o local, nada como um mito cientificamente provado, para acentuar a magia do extraordinário monte Ararat. 
A forma da encosta bem poderia ser a da arca de Noé petrificada pelo tempo, pelas neves eternas e pela fervorosa crença de que se pode salvar o mundo do holocausto, escolhendo criteriosamente dois exemplares de cada espécie e fazê-los flutuar sobre as águas revoltas do mundo, em acelerada rota de colisão com o extermínio. 
Mas, naquela tarde, diante do silêncio do vale e na sombra do magnifico monte Ararat, todos quisemos acreditar naquela visão da arca de Noé, talvez porque todos queiramos acreditar num final feliz. 
No vale, os cães que guardam rebanhos têm coleiras com pontas de ferros aguçadas no pescoço, para os proteger dos ataques dos lobos e, no local do nosso picnic, com vista privilegiada do monte Ararat, uma noiva chamada Cruela, posa com fastio para as fotografias da praxe com os noivos, as sua damas de honor e um bando de turistas infiéis, numa espécie de Resort que permanece inacabado há nove anos. 
Nada que se compare com o tempo que os três sultões demoraram a construir o seu palácio, nem com o tempo em que a arca terá petrificado na encosta do monte, nem com a origem do monte Ararat, no alto dos seus mais de cinco mil metros de altivez e orgulho.
Acho que ainda não é hoje que as placas tectónicas vão fazer tremer a terra outra vez! 



quarta-feira, 15 de maio de 2024

Bazargan e o fascínio pelas fronteiras da terra

 


Como manifestação da condescendência divina - provavelmente com intervenção humana de quem nos conduz para longe do dilúvio - chegamos a Tabriz à hora do bazar, do homem que fazia perfumes, do outro que nos dava a provar todo o género de doces de sabores conhecidos, do cheiro a chás e especiarias, o mais antigo bazar da rota da seda, mil anos completos a comprar e a vender tapetes e tudo o resto, uma agitação que já é intemporal e coabita condescendente com todas as dinastias da história e com as diferentes soberanias a que resistiu. 
Enquanto resistíamos à ideia de abandonar o bazar para voltar à estrada, direção fronteira, detivemo-nos junto ao jovem vendedor de sapatos, a primeira loja da rua dos sapatos, licenciado em engenharia mecânica por uma boa universidade iraniana convidado por uma universidade americana para efetuar doutoramento, mas que aguarda o visto que procura obter em viagens recorrentes ao consulado na Arménia, sim, porque o tio Sam não tem morada fixa por aqui. Levanta os braços para o ar e afirma que já não depende de mim e confessa quão triste a política pode ser, "deves ser muito bom para que os americanos te queiram pagar os estudos" e ele sorri tímido e agradecido por alguém lhe dizer o óbvio, do vendedor de sapatos da primeira loja do bazar de Tabriz. 
É curioso como as coisas importantes funcionam para além da retórica e todos os povos utilizam os mesmos critérios de seleção.
E, de alma cheia, regressámos à rota das fronteiras terrestres, uma fantasia juvenil que se alimenta de anarquia e de vontade de superação de barreiras artificiais, um desafio que nos conduz ao triunfo da irreverência sobre a obediência cega dos burocratas empedernidos e da planície de movimentos livres sobre as montanhas da incompreensão que separam os povos deles mesmos e dos seus irmãos, que digam os curdos na fronteira de Bazargan. 
Por tudo isso, e ainda mais a adrenalina pura sem ideologia, atravessar a fronteira de Bazargan a salto foi particularmente desafiante, uma rotunda que determinava o final do caminho com uma cancela que não era o fim do caminho, mas apenas uma porta para uma estrada de dois quilómetros até à fronteira a sério que, só na teoria, se podia fazer a pé e por isso havia um série de espécie de táxis, coordenados pelo único tipo que falava inglês na região, que levava a clientela estrada acima e trazia estrada abaixo. 
Os negócios sucediam-se porque Bazargan é uma fronteira viva, especialmente do lado iraniano, nota-se à distância que os irmãos turcos são tolerantes com a necessidade de comerciar dos vizinhos, provavelmente porque pertencem a um povo tendencialmente comum.
Depois, tudo se decide entre pavilhões prefabricados e corredores impermeáveis, primeiro o funcionário mal encarado do Irão que carimba o visto e não o passaporte, olha nos olhos e finge reconhecer a nossa cara sem digitalização ou qualquer tratamento informatizado, depois finalizado o primeiro corredor, dois polícias iranianos pedem novamente o passaporte e o visto, mas o visto já tinha ficado no anterior e portanto ele vai verificar, para depois confirmar, pede o passaporte e manda-nos avançar para o segundo polícia que, a cinco metros do primeiro, pede novamente o documento para confirmar, abana afirmativamente a cabeça e manda avançar fechando, em seguida, a porta de correr, encerrando impetuosamente a fronteira, resumida a um gradeamento titubeante.
Enquanto me afundo no corredor seguinte, olho de soslaio e confirmo que, nas minhas costas, permanece o retrato do Ayatolah na sua irritante pose sorridente de Estado. 
Duas curvas à frente, envolvemo-nos na bandeira vermelha e no quarto crescente e, para que não restassem dúvidas, enfrentamos de frente a pose solene de Estado e sem sorrisos do sultão Erdogan. 
Do lado ocidental da fronteira, tudo digitalizado, carimbos no passaporte vermelho que, perante o funcionário laico é garantia de que não contrabandeamos mercadorias nem a revolução, e por isso temos um corredor livre que não nos obriga à inspeção física das malas, tratamento exclusivo para os irmãos iranianos, portadores de inúmeros sacos pretos e de corações cheios de alma mercantil.
E enquanto caminhávamos entre poças de água de nacionalidade turca e de tradição curda à procura do nosso transporte para Ocidente, as filas de camiões cruzavam-se connosco em sentido contrário e apitavam generosamente, todos sem exceção, agitando-se dentro das suas cabines, acenando-nos com aquela alegria que só vimos nos olhos do Irão profundo. 
E naquela noite fria e húmida do Curdistão turco, eram os motoristas iranianos que se abanavam ao ritmo das poças e dos buracos, enquanto regressavam a casa, e nos agradeciam termos vindo e nos desejavam uma viagem segura de regresso a casa. 
Não vimos os olhos deles, mas os sorrisos deles brilhavam na escuridão da noite. 
Que Alá esteja convosco, magnifico povo do Irão 




terça-feira, 14 de maio de 2024

Road to the border

 


Água, fogo, terra e vento eram elementos sagrados pelos seguidores de Zaratustra e do Zoroastrismo e tudo faziam para evitar a sua poluição. 
Acreditavam que os espíritos malignos invadiam os corpos após a morte pelo que não era possível enterrá-los, queimá-los ou depositá-los na água. 
Nas torres do silêncio, os corpos eram entregues aos animais que os limpavam da carne e preservavam o ambiente. 
Em silêncio, longe das cidades e dos ritos funerários. 
Em Yazd, a capital Zaratustra do Irão, a nossa descoberta terminou e partimos para norte, empurrados pela geoestratégia e pelo belicismo, nada que as pessoas, na rua, entendam. 
Nem nós, enquanto discípulos de Zaratustra. 
E as torres do silêncio, hoje apenas um santuário antigo de meditação, tolerância e obediência aos sinais que a natureza emite, recorda-nos que nos encontramos num processo de retrocesso civilizacional, e olham-nos, incrédulas, pela nossa debandada obediente ou receosa dos novos donos do céu. 
Também nós, mas, mesmo assim partimos para norte, enquanto negociávamos os símbolos sagrados, preferimos a terra ao ar e a água ao fogo, tudo por uma questão de segurança, porque quem tem um bom passaporte, consegue sempre negociar com os deuses. 
Apenas nós temos opção de escolha, eles sabem que têm de ficar, prisioneiros das nuvens cinzentas que se abatem sobre a obrigação de recato, sobre as mentes, há décadas, aprisionadas, e sobre a expressão da palavra, em que todas as entoações incomuns e gesticulação excessiva são objeto de escuta persecutória. 
Contradição, foi a palavra do nosso amigo, a propósito do amado poeta Hafez - um poeta do amor e das Contradições terrenas - um código de palavras suspeitas que poderia ter feito tombar o céu baixo do Irão sobre a sua cabeça, apesar de ter apenas questionado sem se atrever a responder. 
Tão pouca é a opção deles, quer na guerra quer na paz, que os faz, muitas vezes, suspirar pela vitoria dos inimigos infiéis, enquanto lançam foguetes e cânticos de vitória por uns aviões de papel que conseguiram alcançar a fronteira do Satã (antes da sua destruição final) 
É fácil ser ativista eloquente e exigente quando o mais que nos pode acontecer é um insulto nas redes sociais.
Ao contrário deles.
E, com eles no coração, subimos direito a norte, contornamos o aeroporto de Teerão e prosseguimos com a caravana da rota da seda, sempre com objetivo de chegarmos, primeiro a Tabriz, o bazar mais antigo do mundo, e depois à Turquia, enquanto os nossos amigos de Teerão se abrigavam da retaliação dos infiéis, que provavelmente nunca chegará.
E só paramos em Zagdan. nas fronteiras de um país imaginário, mas de um povo vibrante, acolhedor e distintivo. 
Às portas do Curdistão iraniano, recebe-nos uma noite fria e uma cidade que não se passeia pela rua, mas acelera nas avenidas largas de uma cidade deserta, para cima e para baixo, viaturas que aceleram, emparelhadas, nas faixas centrais e se recolhem de vidros ao vento e coloridos sinais de luzes, como se fossem um piscar de olhos na escuridão dos afluentes laterais da grande avenida,
O sábio assegura-nos tratar-se de um ritual de sedução, com códigos persas, primeiro  a exibição do garbo, medidos em cavalos de potência e depois uma discreta troca de olhares, â procura de uma conivência de vontades, ou uma cor de faróis comum. 
Mas na noite de Zagdan nem todos lhe recolhem cedo. Ao jantar, festejam-se aniversários, há jovens miúdas que soltam gritos de desafio ao disc-jockey de música techno iraniana, elas e todos nós sentados em posição de lótus, todos em harmonia com a tradição árabe de comermos descalços sobre longos e felpudos tapetes persas zagdan. Não se ultrapassam os limites da lei e dos costumes mullahs, mas festejam-se os aniversários com bolo de sabores conhecidos, batemos todos palmas à jovem aniversariante, o bolo tem velas e fogo de artifício mas aqui não se festeja nada mais do que a adolescência da rapariga, a alegria do avô e da restante família do patriarca e provamos o bolo que nos oferecem com vontade e prazer. 
Aqui não há festejos dos ataques aos infiéis, porque para este povo não há infiéis., há apenas pessoas que falam outra língua com quem treinam a internacionalidade, para um dia que a possam usar. 
Para este povo, nós somos os viajantes que os visitamos e ninguém nos questionou a nossa posição geoestratégica antes de nos estender a mão e convidar-nos para a sua vida, que eles querem que seja tranquila, próspera e feliz. 
E durante a noite não ouvimos a voz do imã a chamar para a oração das quatro da manhã, estávamos a viajar e, portanto, dispensados das preces e, quiçá, da própria fé nos homens e no Deus que os criou, por aqui chamado de Alá



segunda-feira, 13 de maio de 2024

Last Train to Yazd

 


A Pérsia lidou bem na História com as autocracias esclarecidas, até permitiram a expansão do Império, aumentaram o bem-estar das populações e, há quem jure, que geraram felicidade nos povos conquistados. 
Bom, salvaguardando as devidas distâncias de índole moral que a história comporta. 
(E, bom, eu sempre preferi as democracias imperfeitas às autocracias esclarecidas, sempre, mas isso sou eu que tenho a felicidade de poder escolher, o que parece nunca ter sido o caso do povo persa)
E as revoltas aconteceram na história do Irão sempre que os autocratas perderam o discernimento, sempre sangrentas e disruptivas. 
E depois, nascem os mártires com a morte dos povos, muitas vezes por culpa própria de quem tem o poder, algumas pela conjugação desfavorável dos astros do universo exterior.
E, portanto, os mártires do irão têm estatutos diversos, os descendentes do profeta, os soldados celebres, os soldados incógnitos e as vítimas incógnitas.
Aos primeiros são construídos faustosos mausoléus, aos segundos são atribuídas todas as honras e manifestações públicas de apreço no aniversário da sua morte e Mausoléus mais modestos, aos terceiros é-lhes pendurado um cartaz vitalício numa das Avenidas principais do local em que nasceram.
Só as vítimas anónimas permanecem anónimas e vítimas para todo o sempre. 
Em Kerman, na primeira aproximação ao centro do império de Avenidas largas e bem infraestruturadas, periferias europeias e de um bazar da abundância, há alguns meses mais de uma centena de vítimas anónimas lembraram a memória de mais um mártir soldado que procurava apagar com lama as pegadas dos infiéis. 
Aparentemente morreram sem desejar ser mártires e, ao que tudo indica, apenas por serem obedientes discípulos xiitas da República Islâmica.
Há lugares e regimes em que nem é fácil ser obediente, quanto mais ativista pelas causas de igualdade.
Tudo isto a propósito das autocracias esclarecidas ou das outras, em perda irremediável de discernimento.
Ontem em Kerman, um dos maiores bazares do Irão fervilhava de indiferença geoestratégica, de espírito mercantil e de curiosidade estética, confiança na sua própria imagem e ansiosa vontade de partilhar, partilhar fotos, partilhar os parcos sujeitos na língua esperanto do mundo exterior e, também comprar e vender fruta e relógios, tecidos e especiarias em corredores sem zonas premium, um Caravansarai, uma mesquita e uma saída principal inundada de táxis amarelos em três filas de estacionamento sem grande fervor na procura de clientes nem na discussão sobre futebol, porque sobre política, os mais velhos não têm opinião. 
Na estação ferroviária de Kerman, o general Suleimani, vestido com farda de mártir soldado, mantém-se em guarda, mesmo depois de morto, do alto de um poste de iluminação, o mesmo morto por quem morreram vítimas incógnitas, enquanto nós nos entendemos com a deteção de metais, com o controlo de identidade e de legitimidade enquanto somente viajantes, e ninguém nos liga à bandeira do navio sequestrado em Ormuz e partimos na direção de Yazd, no que seria o último expresso das mil e uma noites. 
Yazd foi o fim abrupto da aventura persa, a nobre cidade de Yazd como descreveu Marco Polo, situada na interseção das rotas comerciais da Ásia central e da Índia. 
A cidade construída em adobe, tem opinião política e anseia por um futuro e, os telhados da cidade antiga, têm opinião e têm um diálogo esclarecido com os minaretes e as cúpulas das mesquitas, enquanto se fixam no horizonte das montanhas geladas que contrastam com os tons de adobe e deserto que rodeiam o presente deles. 
E voltei a sonhar  (sim, é verdade que sonhei abundantemente, não fossem os sonhos senão uma desconstrução absurda das realidades intensamente vividas no estado desperto)  com uma chuva intensa que tombava sobre os terraços de tijolo, com os gatos persas que se esgueiravam furtivos pelas torres de refrigeração e com a voz do Íman que voltou esta noite outra vez com o chamamento para a oração das cinco da manhã, tudo na mesma noite, no mesmo sonho e, para variar, deitado sobre um colchão macio.
O abraço sentido da gerente do hotel de Yazd já não coube no mesmo sonho porque o seu  choro compulsivo foi acariciado por um longo abraço coletivo que não foi suficiente para a consolar com o destino que Ala lhes impôs e sem a certeza de que o mundo lhes vai devolver a vida que elas merecem e que o regime lhes prometeu.





domingo, 12 de maio de 2024

Nos confortes da Rota da Seda

 

A fortaleza de Bam resistiu mais de 2500 anos até que, em 2003, um mortífero terramoto a destruiu a ela e a mais de 60,000 vidas. 
Foi um momento tão aterrador para os habitantes do oásis de Bam como para a memória do povo iraniano, porque a fortaleza de Bam, a maior fortaleza de adobe construída no mundo, testemunhara o nascimento da nação persa com os Aqueménidas, terá sido construído no formato hoje conhecido na última dinastia persa antes da invasão árabe e foi-se adaptando até ao século dezanove com a dinastia dos Qajgar, como um farol de segurança para os habitantes e viajantes ao longo dos caminhos iranianos da grande rota da seda. 
Por se tratar da memória de um povo, a República Islâmica tem feito, nos últimos vinte anos, um esforço intenso de reconstrução do forte, até porque as derradeiras memórias do lugar são definitivamente islâmicas, apesar da República nem sempre lidar bem com as memórias das diversas dinastias persas, mesmo islâmicas, mesmo xiitas. 
Por isso recuperou-se prioritariamente todos os vestígios da narrativa xiita e seus mártires, como o terceiro Íman Al-Hussein Ibn Ali, o Senhor de todos os Mártires, que terá sido assassinado pelas tropas do califado, um sempre intruso para todos os Persas
A visão da fortaleza de baixo é arrebatadora mas, como em todos os locais históricos da Asia central, a magia provêm muito mais do imaginário do que se passou (e do que passou por) nestes locais, as caravanas provenientes da China, os guerreiros da Mongólia, os árabes da península, uma sucessão de imagens históricas carregadas de epopeias, mitos e realizações notáveis que permitiram as populações lidar com a agressividade dos elementos, na regularização dos fluxos de água e na climatização, e que permitiram que as zonas mais inóspitas do mundo fossem permanentemente atravessadas por todos os povos que, ao longo dos séculos, abriram os horizontes do mundo.
Por isso, a visão de cima para baixo da fortaleza de Bam é ainda mais arrebatadora, porque é no palmeiral que nos revemos na História do que por ali passou. 
Quando percorremos os corredores, os pátios, as avenidas e as praças desta gigantesca construção de adobe, a fortaleza de Bam, entramos decididamente num novo capítulo da história da Ásia Central que começou no século IX, depois dos dois séculos de silêncio impostos pelo califado árabe aos descendentes dos Persas, mais do que um novo Capítulo, foi o renascimento do seu Império, uma força crente no Islão que imergiu dos destroços provocados pelos invasores, e que durou até emergirem as potências marítimas europeias. 
Por isso em Bam entramos diretamente nos confortes da rota da seda.
E na autoestrada para o norte, a mítica rota comercial principal da Pérsia milenar, proliferam os locais de descanso, de oração e de comércio, especiarias, frutos secos, e famílias inteiras a viajar para norte, à procura do que não há no Balochistão e, apesar da modernidade insonsa destes lugares, mantém-se a mesma curiosidade pela diferença, a mesma vontade de partilhar emoções e o lugar onde nascemos e, mesmo que não haja códigos de linguagem idênticos, há uma língua comum de sentimentos, sempre selada por muitos gestos, uma limitada seleção de nomes próprios e uma muito inclusiva fotografia de grupo. 
Os encontros com a diversidade dos povos estenderam-se ao deserto de kaluts, o território mais inóspito da terra onde o Balochistão de tez mais escura e olhar profundo nos estendeu a mão e a alma de fora do seu Peugeot branco, mas de dentro da sua túnica branca, mão no peito, “Salam” nos seus lábios e, com um sorriso de felicidade sincera, entraram no automóvel e aceleraram no meio da terra batida, monte abaixo levantando uma enorme poeira de linguagem comum. 
Ignorando deliberadamente o costume dos comerciantes árabes, que apagavam os trilhos dos comerciantes de outras paragens, com lama para purificação do contacto com os infiéis. 
E enquanto devorávamos o ensopado de borrego e batata, ao jantar na casa da aldeia e do oásis, éramos embalados por uma numerosa família de acolhimento que distribuía sorrisos e empatia pelos viajantes que percorrem a poeira, em malgas cheias de caldo e deixámo-nos seguir na noite por dois cães de corpo sofrido, mas olhar doce e família feliz. 
Na solidão do oásis deserto, vagueiam as sombras dos fantasmas cobertos de lençóis no pátio do imenso Caravansarai, hoje vazio e abandonado, ervas daninhas e os restos da canalização da água dos rios temporários, mas há um burburinho que ecoa das lendas das mil e uma noites. 
Será mais uma miragem dos ventos do deserto ou apenas um eco espelhado das estradas pejadas de carros e de gente que percorrem incessantemente este país de norte a sul? 
Adormeci tolhido e sem resgatar qualquer resposta – mais uma vez guardaram para nós os estrados mais duros para os momentos mais puros - mas senti, no ombro dorido, o prolongado abraço de um povo, que suspeito, terá os mesmos sonhos que os nossos. 
Antes de adormecer, um banho de estrelas varreu o céu que nos servia de manto e quando acordei, já não tinha dúvidas.



sábado, 11 de maio de 2024

O Sul profundo

 


O Sul profundo é diferente do Sul geográfico e, na República, o profundo começa em Bandar Abbas, quando a população da cidade decide invadir a praia em dia de feriado, o primeiro dia depois do Ramadão. 
Ir à praia por estas bandas, não é bem ir à praia, é uma força de expressão longamente vestida onde os pés descalços hesitam em furar as ondas rasteiras da maré vazia porque as vestes compridas estorvam os movimentos e a perspetiva de ensopar as vestes turva a mente e nesta envolvente de autocondicionamento social só as crianças usam fato da liberdade e tomam o banho purificador. 
Mas a praia no sul profundo da República Islâmica é uma enorme extensão de povo que deambula nas areias escuras, ou a trote de cavalos que alugam as pernas e o seu tratador por alguns minutos de fama, com pouco proveito para os animais. 
O cosmos da praia de Bandar Abbas não é muito brilhante, nem particularmente colorido, mas agita-se muito, nas esplanadas onde famílias numerosas destroem castelos de gelado e cascatas de refrigerantes e no areal de moto quatro e animais diversos que urinam na frente dos clientes, e assim o tratador demonstra aos potenciais clientes a pujança e a qualidade do animal de montar, proeza não repetida com os camelos, animais de feitio menos previsível quando confrontados com a infantilidade humana. 
Para Sul tornamo-nos transparentes, porque o povo Bandari tem demasiada vida para sobreviver e não tem tempo a perder com visitantes que procuram retirar o exótico das suas vidas sofridas. 
Sem agressividade especial, apenas indiferença e uma vontade explícita de preservar a sua imagem. 
Nas noites quentes de Minab, há piqueniques espalhados pelo jardim infantil e, entre os baloiços e os canteiros de flores cuidadosamente alinhados, os grelhadores a carvão chispam chama, faúlha e kebab e as famílias reúnem-se em torno das suas vidas. 
Nas manhãs do mercado Bandari de Minab, as quintas-feiras resumem a vida das comunidades que vendem diretamente o que produzem, seja esforço com a natureza, seja talento artesanal e, no mais profundo e conservador de todas as províncias do Irão são as mulheres Bandaris, escondidas nas longas vestes e nas coloridas máscaras, que tomam a iniciativa, que discutem todos os termos relevantes do negócio e argumentam com os clientes, uma raridade nos bazares da Pérsia, mais um dos domínios dos homens, eles de feições persas mas de descendência árabe.
Aqui, em Minab, aos homens e aos meninos, as mulheres bandaris deixam-nos viver e tomar conta da testosterona da luta de galos e das rolas que se libertam das correntes e voam dos telhados de zinco em direção à liberdade trôpega de quem já não sabe voar.
E nem os animais os deixam inteiramente nas mãos deles. À entrada do mercado dos animais, são elas que ocupam os melhores lugares, obrigando os compradores a circular apertados entre as ancas dos animais, pressão máxima para fechar negócio e definem os preços, e uma cabra bem parecida tem uma vida sem valor, menos de cem euros no mercado dos animais de Minab. 
Começamos a regressar do sul profundo seguindo o caminho iraniano que os ligava a norte ao traçado principal da rota da seda, atravessando a cordilheira de Zagros e entrando num novo mundo de planaltos áridos, cumes nevados, os grandes desertos e  a descoberta das planícies de kebabs.
Em Bam, a água corre canalizada pela berma das estradas, pressente-se, apesar de ser noite, um extenso oásis de palmeiras, sente-se a brisa da vida na noite de Bam e sim, confirmação visual na manhã seguinte do topo da fortaleza de Bam, pressentimos que estávamos a abandonar o sul profundo. 
Naquela noite, a cidade de Bam cozinhava na rua em grelhadores a carvão e as mesas da esplanada da cidade estavam cheias de gente que festejam, na rua, o novo regresso à vida deles. 
Mesmo que a crença seja enorme, as pessoas sonham mesmo é com o que conhecem!



sexta-feira, 10 de maio de 2024

Albuquerque já não mora aqui

 


O fim de tarde na marginal de Ormuz, quente no ar, laranja no horizonte e as crianças que brincam na praia, sob a supervisão das matriarcas.
É com lassidão que Ormuz se despede do Ramadão e sentimo-nos dentro de um filme, do filme das terras distantes, ventos do golfo, especiarias do estreito, véus que esvoaçam sobre a ténue linha que separa a realidade da margem e as aventuras sugeridas pelo horizonte. 
Na tarde da ilha, há também uma realidade de felicidade paralela com cores e cheiros que são tão diferentes que não se chegam a estranhar. 
Há uma descontração não contida nesta insularidade da República, talvez porque nas rotas do comércio, prevalece a tolerância que se alimenta da vontade de ligar culturas e absorvem-se os ventos que encrespam os mares e, nessa tradição marítima, valoriza-se a indolência das pausas. 
Há uma nova irmandade social que absorve os novos sabores de uma música iraniana que recupera os sons tribais com uma elegância muito oriental, conversa embalada pelo vento fresco que entra nos cafés da marginal, as mãos que se tocam com uma serenidade sentida, tez morena, olhos de cores penetrantes, eles de barbas escura e cuidada e elas de lenços leves, padrões que se inventam na mitologia persa e de cores quentes do mar e do deserto. 
E, em Ormuz, a juventude urbana, serena, culta e sofisticada, mas sem cedências das suas raízes que, por aqui, encontram espaço para o lazer e pergunto-me o que esta juventude não poderia fazer quando chegar o futuro deles. 
E as histórias fluem nos becos de uma desordem poeirenta e de cimento à vista, próprios de um subúrbio pobre, descuidado e esquecido antes da chegada do turismo, apenas para verdadeiros conhecedores. 
E as personagens revelam-se ao longo da promenade, o persa que joga o jogo da macaca no passeio para meter conversa connosco e se mostrar feliz por conseguir comunicar, sem que haja uma linguagem comum. 
O outro persa que jura que foi contrabandista quando a ilha só tinha mil habitantes e a alternativa à pesca era o mar dos outros. 
Na última noite do Ramadão, recriamos a flor de lótus, sentados sobre as carpetes que se espalham de centros de mesa de palha, de pratos de camarão embebido em arroz e especiarias e as mil e uma noites das arábias com sons do Sahara, uma demonstração da corda do fogo e sons de bandolins com ritmos tão próprios que somos incapazes de traduzir. 
À noite, dormindo no chão, como os bandaris, sonhamos com o fim do Ramadão, a aldeia inteira reunida à volta de mesas de madeira montadas nas rotundas, todos os sete mil e quinhentos habitantes da aldeia que circulam rua acima, marginal ao longo e o sonho começa quando o corpo se habitua ao estrado duro e não acaba, nem mesmo quando o Íman faz o chamamento, a noite ainda  não clareou e o indecifrável apelo, seria angústia, cólera ou fé, não é óbvio, só interminável e muito perto, e no sonho comecei a fazer contas, estaria a trovoada perto não havia imagem, só havia som.
Deixamos para o fim o encontro com as nossas memórias, no forte português, sem que nos tenhamos sentido vez alguma, prisioneiros de uma visão demasiado contemporânea da nossa história. 
Afonso de Albuquerque já não vive em Ormuz e a aldeia não guarda quaisquer memórias hedonistas (nem nenhuma outra qualquer) da vontade de nos misturamos com os locais e criar uma nova raça, mas os vestígios de um passado audaz misturam-se na argamassa que ainda segura as paredes do forte e da aldeia. 
E, tal como em Persépolis, há boas vibrações quer na terra quer no mar. 
Os vestígios do forte sofreram da fúria dos elementos, os ventos cruzados a Norte e a Leste, um campo de futebol com vista para mar e balneários nas casernas, até alguma autoridade ter expulsado os atletas e iniciado a reconstrução das muralhas. 
Lento, mas reconfortante a ideia que a memoria não desaparecerá e a igreja subterrânea do forte permanecerá intacta, as colunas góticas afugentam os turistas que por aqui circulam em dia de feriado. 
Cento e cinquenta anos de relativa paz com os persas e de uma cadeia de entrepostos que nos abriu o comércio com o Oriente, é uma proeza nossa. 
Sem visões descontextualizadas, complexos mal resolvidos, descoberta ou expansão é indiferente a semântica, não há visões coloniais, apenas a verdade das coisas. 
Não escorreu nenhuma lágrima para a água suja, que não poupa as tartarugas nem as veleidades balneárias de um país que não se banha senão vestido, mas do topo da muralha, com vista circular para os mares, os ventos cruzados e frescos causaram um discreto arrepio de espinha.
“Mágico", sentenceia uma voz grave, uma tez escura, uma pele lisa, uma máquina fotográfica de um profissional e mochila amarela de quem caminhou longe das montanhas do Norte para chegar até aqui, e chegou.



quinta-feira, 9 de maio de 2024

O Expresso da Meia Noite (para Bandar Abbas)

 


 A estação de camionagem tem de refletir as ambições do império, modernidade que funcione, uma atmosfera de diversidade que nunca dorme, um olhar atento sobre os súbditos e uma infinidade de outros microcosmos, como os angariadores comissionistas que desafiam a tarefa impossível de conquistar clientes no próprio local, os vendedores de chocolates especialmente dotados para a inflação e, claro, a personalidade própria e muito vincada de cada autocarro, uma decoração abusada de néon vermelho e de interiores com padrões vistosos.
No interior, os assentos eram confortáveis, a tecnologia era generosa mas intermitente e a lista de músicas abrangeu, numa só noite, todas as tendências da música nacional iraniana, sem descanso. 
Atravessamos o Sul que, na escuridão da planície, permitia adivinhar a chama nos poços de petróleo e as luzes das cidades que forravam o horizonte.
E, esporadicamente, o intrépido cavaleiro do asfalto, numa velocidade furiosa que desfocava o néon que descia do para brisas do autocarro, furava os pontos de luz, as paragens técnicas e as do regime.
E o sol nasceu no Sul, em Bandar Abas, com o golfo de Ormuz todo só para nós.
Sem tremer, ao longo de quinhentos quilómetros de estradas e de noite, o nosso caça fantasmas persa deixou-nos onde nós quisemos sair, levantou a sua grossa mão direita, gritou “Merci” , e arrancou convencido que o Sul dele não acabava ali.



quarta-feira, 8 de maio de 2024

Os Reis de Shiraz (e de Persépolis)

 


"I build this place with the help of the Gods"
The country, the king and the treasures.
Visto de cima, do túmulo de Artaxerxes escavado na montanha, dificilmente conseguimos visualizar o impacto que os reis persas tiveram nos vinte e três estados que prestavam vassalagem aos Aqueménidas, tal é o nível de destruição que a humilhação de Alexandre provocou.
Mas a leve brisa que hoje circulava ao nível da Necrópole, umas dezenas de metros acima da superfície da cidade cerimonial dos reis da Pérsia, levantava uma espessa poeira de mitos e recordações, emocionante pisar as pedras e abraçar o espaço que outrora representou o centro do império Aqueménida.
A pompa e os rituais de submissão são apenas o aspeto mais folclórico dos pedaços de história notáveis, que se entrelaçaram nos territórios da mitologia persa e do pensamento sofista e do zoroastrismo enquanto religião.
E, enquanto conquistavam o mundo, construíam um império que, sendo autocrático aos olhos dos historiadores gregos, que preferiam valorizar a democracia, mesmo que à custa de uma noção de estado, regia-se por princípios zoroastrianos, sob o primado da verdade absoluta, a liberdade para todos os que trabalhavam para o império, autonomia cultural total para as vinte e três províncias que prestavam vassalagem ao Rei.
Obviamente que devidamente temperado pela época e pelos entusiamos nacionalistas dos historiadores dinásticos.
Hoje, os 10 000 guardas imortais do rei estavam cooperantes e deixaram-nos partilhar as memórias do império com as memórias dos reis.
No more, no less!
E hoje à noite, juro que, para lá das paredes de rocha e montanha, estava aceso o fogo sagrado na necrópole do Cyrus o grande, enquanto o maior de todos os deuses, o Ahura Mazda, dava a permissão solene aos reis Aqueménidas para perpetuar a dinastia através de casamentos entre familiares.
Uma investidura do sol, do anel e das asas para os bons pensamentos e pelas boas ações doa reis Aqueménidas.
Porque os símbolos reforçam a autoridade do monarca, cultivamos palmeiras como o símbolo de longevidade e sacrificamos um cedro, símbolo da abundância, para vos oferecer nesta, e em todas as ocasiões especiais.
Para que eles protejam o império dos inimigos e da mentira.
No less, no more!


terça-feira, 7 de maio de 2024

Os poetas de Shiraz

 


Ter sido a penúltima capital do império é como ser o irmão mais novo de uma longa família de irmãos, todos se preocupam muito contigo, mas ninguém ouve a tua voz. 
Especialmente se o irmão mais velho é um notável Safávida e a sua capital, Esfahân. 
E, apesar dos imperadores generais da dinastia Zand, modestos nas origens e no seu destino final que os impediu de se nomearam reis mas apenas regentes, terem sido, como Khan, amados pelo povo - o que não é propriamente normal na história deles - nada do que eles construíram foi especialmente original nem revestido da grandiosidade dos seus antecessores. 
Apesar da superstição dos faustosos Safávidas persas incutida pela religião, por eles levada para dentro do Estado, os ter levado a entregar o seu cetro aos afegãos sem luta. 
Basicamente aos irmãos mais novos que os procuraram imitar.
Um fratricídio fraternal, afinal.
E, na madraça de Shiraz, tivemos o nosso primeiro encontro com os mullahs, a herança Xiita de Shah Abbas, da sua dinastia, e da incapacidade de um reino milenar em entregar ao povo uma lei terrena, e o que pensam os religiosos da vida das pessoas, enquanto levitam nos pátios vazios da madraça, vazia de alunos, e na soberba de quem acredita ter um mandato de poder divino.
E nos pátios do silêncio, a nossa curiosidade não é satisfeita porque a madraça é um local para quem aprendeu o Corão e para quem acredita que o décimo segundo descendente de Maomé um dia voltará para os guiar na fé. 
E assim partilhamos as nossas interrogações silenciosas com a nossa transparência e com as fotografias dos seus mártires, todos entretendo o tempo cofiando as nossas longas barbas nos bancos de jardim do pequeno palmeiral, outrora o pátio dos alunos da Escola religiosa. 
E assim imergimos na primeira das dimensões da dinastia Zand!
Deambulando no bazar que ferve de agitação e das cores da escola de pintura de Shiraz, pássaros e flores nos lenços de algodão, porque é o comércio que faz crescer a legitimidade dos grandes impérios.
Buscando a eternidade na mesquita, porque não existe Rei (apenas um regente e o filho mais novo do grande Safávida dos 999 caravançarais, de uma precisão Safávida) que não procure ser o representante de Deus na terra.
Refugiando-nos na fortaleza que assegura o poder terreno quando tudo o resto corre mal. 
E o museu Pars resume os duzentos anos de memórias da dinastia, numa sala octogonal rodeada de um dos jardins da cidade, e das memórias que a dinastia tinha da mitologia persa, da invasão árabe e de todas as mudanças de paradigma da História dos Persas.
Entre a fortaleza, a mesquita e o bazar e sob o olhar atento do velho livreiro com o seu farfalhudo bigode persa, que expõe a sua Literatura nas grades que cercam o jardim, e que procura, através da partilha do conhecimento, libertar o mundo do dogma e da simples tradição. 
Como para Hafez, o poeta de Shiraz, para quem não há fronteiras quando se proclama o amor em poesia escrita em Fársi. 
As famílias que rodeavam o seu túmulo do poeta, prestam assim o tributo, identificando Hafez com o futuro. 
Ou não, porque a poesia do poeta de Shiraz pode ter múltiplas interpretações, tantas que se podem transformar em simples rituais de partilha social ou um atraente e amado instrumento de propaganda.
Mesmo que as centenas de exemplares do seu Divã, estejam expostos sem pruridos e em todas as línguas do mundo, nas prateleiras abertas do local, para que não houvesse equívocos na tradução.
Mas naquele fim de tarde de Domingo, que não é, afinal, dia Santo no Islão, os sinais são contraditórios porque a alegria das famílias que envolvem o túmulo do poeta contrasta com uma multidão de mulheres de negro que se curvam, no salão memorial, perante o peso do livro sagrado e dos seus dogmáticos intérpretes. 
Mas quando, mais tarde, nos refletimos, no princípio da noite, nos tetos espelhados de Shah Cheragh, o mausoléu dos mártires Aḥmad ibn Mūsā e Muḥammad ibn Mūsā, filhos do sétimo Íman, na tradição dos doze descendentes de Maomé, o mais sagrado mausoléu dos xiitas, percebemos a vontade humana de estar sempre perto do céu, mas também percebemos a voz do poeta, que não vê nela qualquer contradição com a crença divina:
"Aceita esta vida como uma taça de sorriso nos lábios, mesmo que o coração esteja a sangrar" 
Afinal de contas, no imaginário do Islão, os pássaros estão sempre a rezar, especialmente quando voam, diriam os ventos do humanismo universal!



segunda-feira, 6 de maio de 2024

Os manequins de Shiraz

 


No fim do labirinto, descobrimos que até o labirinto tem um lugar a que se pode chamar de fim. 
No entroncamento que liga o deserto labiríntico de paredes de tijolo, ao lotado mercado do peixe, da fruta e das especiarias, percebemos que as ruas desertas e sem placas de identificação terminavam num engarrafamento de três veículos utilitários que entupiam a circulação, buzinas e aceleração, mas ninguém se zangou.
Um jovem musculado, tão moreno quanto penteado, t shirt preta e ar gingão, ordenou que o trânsito esperasse por ele e colocou-se estrategicamente no centro da praça imaginária, qual sinaleiro pau de giz e esperou, com pose de herói que nunca será mártir, e esperou pelo disparo, um dois e três e depois reergueu-se triunfante e o engarrafamento fluiu ao ritmo do seu entusiasmo, para nós incompreensível. 
Mais familiar nos pareceu o antigo emigrante em Espanha, aparentemente o amigo do dono da loja de especiarias que lhe obedecia como se fosse o seu empregado, no mercado do peixe e da fruta, e que nos ofereceu a loja pretensamente do amigo para mostrarmos as prateleiras repletas de cor e de cheiro, mas era ele que escolhia as prioridades e os protagonistas. 
Enquanto a vida circula no mercado do peixe fresco do golfo e das frutas e legumes que povoam o planalto, imergimos numa realidade tão paralela que até os números persas são símbolos, um cinco é um coração invertido, lembro-me eu enquanto o iraniano, que é amigo do dono da loja que lhe obedece como a um patrão, se despede num espanhol repleto de calão perfeito. 
E no mundo da realidade paralela são os figurantes que definem a agenda do fotógrafo, que o incitam a não falhar o enquadramento, são eles que sorriem para o fotógrafo, são eles que fazem as perguntas e que dão as respostas e perante a pergunta afinal o que querem eles, a resposta é tudo, fotografarem, serem fotografados e serem vistos connosco, tudo serve. 
O Irão não se deita cedo e, portanto, a vida nos mercados prolonga-se pelo sol na vertical até à noite fresca do planalto, o néon não se apaga nunca nas ruas, mas de noite, a simbologia Parsi é mais brilhante, porque os iranianos não se fecham à noite em casa. 
E há mesmo sonâmbulos que correm pela cidade às seis da manhã entre Hafez, o poeta, e uma cidade que os ignora porque acorda tarde, porque não gosta de se deitar cedo.
À noite, os manequins de Shiraz ganham uma vida própria na rua do comércio de roupa, e incitam ao contraditório, entre os sonhos que despertam e a realidade que os desfoca. 
Num breve intervalo à cidade que nos recebeu sem falsos pudores, caminhamos na lama do mar interior de sal onde não há flamingos, mas há miragens que não se desfazem com o por do sol, nem com um chá quente que nos aquece as extremidades, quando o vento traz a noite. 
E despedimo-nos da Maya, uma jovem pastor alemão que se recusa a compor a paisagem de silêncio e meditação, saltando-nos para as mãos de língua afiada e de amor infinito, nas margens do lago dos pés sujos de lama e alma lavada pelo vento fresco que nos coloca, em espírito, nas montanhas que nos cercam. 
Chegámos para jantar a tempo do pai de família que faz anos hoje e o bolo está cheio de velas e fotografias da sua realidade e do seu passado, apaga as velas com solenidade, beija o filho e abraça o amigo, e mantém a seriedade mesmo quando os músicos rompem a tradição e os preconceitos e cantam os parabéns no inglês proibido, apenas uma distração momentânea dos murmúrios farsi. 
A saída da cave que mais parece um clube de jazz, em que se canta amor em parsi, desenvencilhamo-nos das últimas espinhas do peixe frito em especiarias e pimenta, que revelam uma dominância da terra sobre o mar  despedimo-nos dos sorrisos melodiosos que impregnavam o local de sedução sem mal-entendidos, porque em Shiraz os iranianos não se fecham em casa à noite, e saltamos para a rua, recuperamos o contacto com o mundo e piscamos os olhos aos últimos manequins de Shiraz que se recusam a regressar a casa.



domingo, 5 de maio de 2024

As Baladas de Shiraz

 


“Welcome, my friends” há orgulho no ar, não é soberba imperial, apenas vontade de falar uma língua comum, sejam os jovens que nos abordam no entroncamento das avenidas, ou nos restaurantes, sejam fotógrafos ou modelos, tudo serve para nos trazer para a realidade deles e para que eles nos mostrem o quanto eles gostam de nos ver por cá. 
Ou sejam as comissárias da religião do estado, vestidas de preto, mas sem receio da força das imagens, sejam fotografas ou modelos, partilhando os cartazes e a militância. 
Na manifestação a favor da Palestina, as famílias espraiam-se pela avenida, a câmara rotativa instalada num palco elevado era a grande angular de propaganda para exportação de uma militância feroz, uma realidade construída que, ao nível do asfalto, são apenas famílias que tiram fotografias uns aos outros, crianças com balões que os empurram para as camaras, músicas, folclore e uma marcha que, para quase todos, é apenas um ritual de dia santo. 
(fomos certamente alvo de uma manobra propagandista da menina mulher de preto, de grandes olhos castanhos que não nos inquiriam, apenas enquadravam os ocidentais ao lado da irmandade, mas francamente, não nos importamos) 
Em Shiraz vive-se a última sexta-feira de um Ramadão suave onde se almoça panados de frango, desde que a porta esteja fechada e, afinal de contas, todos nós estamos em viagem e, portanto, podemos alimentar-nos antes do sol se por.
Ramadão suave porque provamos os doces na loja elegante da mulher de preto e de unhas vermelhas impecavelmente retocadas, primeiro hesitante porque a laranja, as tâmaras, as amêndoas e outras doçarias também são comida, mas afinal não deixamos de ser apenas viajantes com fome, e porque, acima de tudo o resto, vamos certamente comprar. 
Ramadão suave porque à janela do restaurante que irá abrir as portas depois da cerimónia, os espelhos refletem a rua e inundam a sala e os longos sofás (que também são mesa) de um sol de primavera, no planalto sagrado das montanhas do Sul. 
E dos espelhos com molduras de vidros coloridos emana a música persa, uma letra em língua Fársi que desconhecemos, mas não é preciso tradutor para nos fazer viajar no tempo e na languidez sentimental que promete aos jovens, aventura e romance, os jovens que entram no restaurante fechado, cabelo rapado nos lados, amigas que sorriem e o maior dos rapazes que insiste em ser fotografado no meio de nós, dos espelhos de molduras vidradas, e da música que suspira através de um ecrã de karaoke. 
Merci e uma palmada no peito em sinal de compreensão, muito mais que gratidão. 
E anoitece conforme todas as normas, não fossem os abraços consentidos dos jovens que se amam e que envolvem a fachada principal da mesquita Vakil, numa auréola de irreverência e desplante.
E nos terraços da cidade velha, construída de adobe e de convicções fortes, ouvem-se os primeiros sons da genuína irmandade persa, são sons gritados do Sul, será assim nas próximas mil noites em que os sons do deserto ou das montanhas vão ecoar nos pátios árabes, nos jardins ou nos palmeirais, ou simplesmente irão cair do céu estrelado, uma sucessão de gritos que nascem do coração e do nosso imaginário e que, afinal, não correspondem a nenhuma noção de espaço e de tempo conhecidos.
É o Ramadão suave que se esgota numa Sexta-Feira Santa em Shiraz



sábado, 4 de maio de 2024

Prefácio e Epílogo Persas

 


O livro dos grandes reis persas tem uma capa com as cores e os relevos dos Aquemênida, as mesmas cores que o tempo roubou à pedra e à Pérsia, mas que os seus sucessores procuraram fazer renascer, quase sempre um esforço efémero, insano, insensato, porque que a adjetivação excessiva persegue a História dos Persas.
O livro acompanha-me nos seus rituais de esplendor, enquanto sobrevoo o império ocidental. 
Persépolis de Shiraz é o maior símbolo morto do Imperio mais sofisticado e autocrático do mundo antigo (pelos vistos, duas caraterísticas que combinavam na antiguidade) destruído em meses por um bárbaro Macedónio, tão súbito quanto surpreendente, sem que o império tenha alguma vez abandonado o estágio da Ascensão nem experienciado o Declínio. 
Provavelmente foi só a soberba que entregou o mundo de Dario III, organizado e obediente, às armas do aventureiro Alexandre, que o destruiu e se destruiu em apenas sete anos. 
Ou o destino iraniano dos invencíveis de pés de barro, sempre e sempre uma história que não para de se repetir.
Voamos para Shiraz atravessando o império, dois milénios e meio depois de desfeito em conflitos de matriz tribal. 
(felizmente a 10,000m de altitude a barbárie humana é apenas mais um relevo no mapa, mais para Sul, entre Alepo e Mossul)
Em Shiraz dizem que o império renasceu mais uma vez no século XVIII quando a dinastia dos generais a fez capital e lhe concedeu as suas décadas de fama na longa história do Irão. 
No voo noturno, oriundo de Constantinopla e dos restos do império Otomano, com um avião lotado de sofisticadas e ruidosas famílias iranianas que se destapam enquanto regressam de férias e das compras do paraíso da confluência dos mundos, é dos renascimentos que vimos à procura nos segredos da Pérsia.