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terça-feira, 27 de agosto de 2019

SILK ROAD #3 – Toda a imortalidade tem um preço



Há várias razões para visitar o que hoje se conhece do túmulo do imperador Qin Shi Huangdi e os seus guerreiros de terracota.
Porque na dinastia Qin os chineses ainda acreditavam em dragões voadores.
Porque é nesta dinastia que, pela primeira vez, há um vislumbre de um país que procura uma ideia de unificação.
Talvez porque ainda acreditavam em dragões voadores, ou simplesmente porque precisavam de cavalos para construir um exército e porque não há império sem exército, é na dinastia Qin que os primórdios da China se aventura para as terras de ocidente e enfrenta os bárbaros que irão condicionar a dimensão e a relevância do império ao longo dos séculos e para toda a eternidade .
Ou talvez porque os Qin acreditavam na eternidade dos imperadores ou ele, Qin Shi Huangdi, acreditava na sua própria imortalidade e a peculiaridade desta visão de tão longo prazo levou-o a conceber as primeiras obras de regime, porque os conceitos de estado constroem-se na mente dos seus povos através, primeiro de mitos e, logo de seguida, de grandes construções que esgotam recursos e matam muitos milhares dos pobres súbditos.
A menina Ming, a pequena guia do grande mausoléu,  parecia pouco sintonizada com as complexidades psicológicas do imperador ave de rapina, com um coração de lobo ou de tigre que, quando confrontado com dificuldades, encontrava uma forma de devorar seres humanos, uma alternativa lisonjeira à promessa de servidão eterna, sempre que a ambição imperial parecia prestes a concretizar-se.
Apesar de não vestir a pequena braçadeira vermelha que identifica os funcionários ao serviço do novo estado da velha China havia, na sua postura, sinais vincados de orgulho em servir, na sua pequenez, um grande destino construído por milhões de voluntários sem nome (daí o nome Ming ser uma invenção do autor) 
Mas o seu inglês não lhe permitia sobrepor uma narrativa coerente ao eco de milhares de vozes e dialetos que se refletiam nos telhados de zinco que protegem as milhares de estátuas mas lhes retiram a dimensão épica com a qual Huandgi tinha sonhado.
O imperador proclamou a sua imortalidade, dedicou os 34 anos do seu reinado a construir o seu túmulo e a dizimar inimigos ou, conforme a perspetiva, a aglutinar o espírito de uma nação e a construir uma muralha que não impediu, na eternidade do futuro, as invasões dos bárbaros e mongóis, mas limitou a visão chinesa sobre s terras ocidentais. 
E depois enterrou-se com todos os seus tesouros as suas concubinas e os seus guerreiros e a China tratou de o esquecer em nome de uma nova dinastia que emergia, porque normalmente o imperador que exauria o seu povo para além dos limites da paciência e da inação sempre se transformaria no rastilho de revolta, provocando a sua extinção, a da sua dinastia e uma nova vaga de destruição criativa.
Segundo consta, enterrado nas suas ilusões de precursor e pela ingestão de uma das suas poções de imortalidade que supostamente lhe haviam de prolongar a vida.
Infelizmente para ele, mas felizmente para a história da China, as suas criações apenas seriam desenterradas, por acaso, nove anos depois da revolução cultural, porque hoje é difícil entender como é que os discípulos de Mao interpretariam aquela herança.
Nesta fase da visita, a menina M já se encontrava soterrada no estaleiro de reconstrução de guerreiros de terracota, sonhando com o seu emprego para a vida e com a descoberta e ressurreição do grande Qin Shi e nós trocávamos conjeturas sobre esta visão chinesa de parque temático, sempre em construção e sobredimensionado à espera do futuro que vai acontecer, não fosse a China a fábrica do mundo e não fossemos nós incapazes de distinguir quem trabalha e quem disfruta de lazer, quem se dedica ao culto ou à reeducação, porque todos circulam como se a lista de tarefas diárias não tivesse um fim à vista.
O velho camponês, o descobridor, agora vestido num belo fato da nova china, não cabia de contente com o seu destino de ar condicionado e da grande mesa no salão nobre da loja das descobertas e das lembranças, assina os livros da descoberta sorrindo sempre e muito porque sabe que nunca vai ser interpelado sobre as obsessões do imperador ou as interpretações modernistas da origem da China.
Apenas ligeiramente atordoado pela sorte.
E nós desconfiámos que o velho nunca irá morrer, a realização da profecia de Qin no regaço das poções mágicas do novo regime.
Temperados pelas novas poções da fraqueza terrena, algas e cerveja, e de volta à contemporaneidade, ao autocarro público e aos homens de braçadeira vermelha realizámos que, olhando pelas janelas do que a nação não se importava de mostrar, não existiam descontinuidades entre a vida no parque temático  e no mundo real, no bulício dos grandes planos, ou na fúria construtiva das grandes angulares,   sempre com a condescendência e a orientação do grande líder.
E ninguém se recordou que, só com uma grande imaginação, se podia associar esta história às origens da rota da seda!




domingo, 4 de agosto de 2019

SILK ROAD #2 – Talvez haja razões para os chineses desconfiarem dos estrangeiros



O que não os impede de adotarem entusiasticamente as suas modas

A tarde já se prolongava para além dos limites do fuso horário e, afundados entre artefactos de autenticidade duvidosa, mas de origem confirmada, enfrentávamos as cores penduradas nas ombreiras das lojas atulhadas de lugares comuns com a triunfal certeza de que tínhamos encontrado a fonte do elixir.
Era uma imagem tão familiar que apelava à nossa insensibilidade, mas descobrir a mãe de todas as lojas chinesas do mundo, o molde original de todos os templos da contrafação, deixou-nos um arrepio da espinha, se bem que disfarçado de sorrisos de indiferença e até de desdenho.
Sem aviso, e ao dobrar de uma esquina fomos impelidos para o interior de uma espécie de jardim das delícias, a quem P assegurava tratar-se de uma mesquita, mas era apenas um lugar de silêncio onde os miúdos jogavam à bola e aprendiam a equilibrar-se numa bicicleta e os velhos partilhavam olhares e tranquilidade debaixo de telheiros, onde os pátios se sucediam, separados por portais que ostentavam telas de fundo verde e letras brancas, “Full Salam to all Muslims in the world” e o P continuava a assegurar que o bilhete pago à entrada concedia o direito a uma experiência mística, mas faltava-lhe o fervor e sobrava a serenidade, sombras que se arrastavam pelas galerias do pagode em direção ao templo, um espaço aberto que nos transportava para Meca, como se a fé fosse um chamamento que nasce do interior de cada um.
Sem cúpulas nem portas, sem gritos cantados ou murmúrios de lamento, despojado de véus ou fervor ideológico.
Reinava a Pax Huan.
Apesar do nosso indisfarçável (mas comedido) desapontamento, foi o nosso primeiro encontro com a certeza de que existe uma outra perspetiva no oriente extremo.
Se nos fosse permitido rebobinar o filme, e a história recomeçasse apenas no dia dois, sem os efeitos da mudança de mais de 120º de longitude em direção a leste, da privação do acesso às redes sociais e da constatação que, em menos de vinte horas nos havíamos tornado analfabetos, incapazes de ler, entender e destrinçar as mensagens publicitárias dos sinais de trânsito ou das mensagens do presidente.
E no dia dois, iniciámos o nosso processo de conversão, não desprezando os detalhes, a sopa de noodles ao pequeno almoço, algas cozidas ao almoço e cerveja todo o dia, os pormenores são decisivos na absorção do espírito prático que domina a pax chinesa e que acolhe, ajusta ou persegue as religiões e os hábitos exteriores, de acordo com as necessidades do estado, por razões práticas e necessidades comerciais.
Porque a História contada por fontes independentes parece indiciar que, quando não foi assim, caía uma dinastia, desfazia-se a unidade, perdia-se a soberania e instalava-se o caos
E, por isso mesmo, entendemos que era útil e prudente, interiorizar de forma precoce e sem hesitações, uma outra perspetiva, a deles.
Apesar de Xian ter sido a maior cidade do mundo até 755, altura em que albergava mais de dois milhões de habitantes e, até ao colapso da dinastia Tang, ter sido uma cidade cosmopolita de comércio vibrante.
Apesar de, no período Tang, Xian ter sido tolerante para os estrangeiros, seus hábitos e suas religiões e ter atraído persas, judeus, sogdianos e japoneses, muitos deles refugiados das purgas dos impérios do ocidente. Mas com controlo, desconfiança e escárnio.
E, no final do dia dois, enquanto vagueávamos por entre artesãos, lojas de papiros e cores quentes de final de dia ao longo da Shuyuanmen Ancient Culture Street começámos a não descartar a possibilidade de que podia haver uma outra perspetiva e que, reconstruir, destruindo antes, ou apenas construir noutro lugar e deixar o tempo e as ervas devorar o antigo, não significa, na perspetiva local, não ter história ou desprezá-la.
Significa apenas renová-la
No dia dois, a devorar marisco a mais de dois mil quilômetros do mar por pouco mais de dois euros, adotámos um novo número da sorte chinês e convertemo-nos ao espírito prático e à fé contida do império Huan.
Até porque, quando a única mulher chinesa nos interpelou em Nanchang Alley , entre três pratos de vegetais imersos em especiarias e sabores picantes, uma sopa de noodles e inúmeras garrafas de cerveja, de imediato nos associou, entre gestos e alguns sons, aos carteiristas que a haviam roubado junto ao convento do Carmo.
Enquanto navegava furiosamente no seu telefone móvel, como a pátria china navega sozinha, mas em massa, nas grandes modas do ocidente.

Com o mesmo entusiasmo com que o imperador Xuanzong  se deliciava com as raparigas sogdianas dançantes provenientes de Samarcanda com vestidos púrpura e calças verde damasco, que se balançavam no palco em cima de bolas , apresentadas ao imperador como tributos pelos governantes dos estados da ásia central .