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segunda-feira, 30 de setembro de 2019

SILK ROAD #6 – As relíquias de Mogao


Espiritualidade não é a associação mais óbvia com Luan (um nome oficialmente não confirmado, porque por aqui ninguém se identifica na lapela) que se exprimia em inglês com um experimentado sotaque americano e que, afinal nunca tinha saído de Dunhuang “estudo, estudo e estudo”, enfatizava a professora, espalhando a boa nova de que a sociedade cientifica dos séculos presentes, sempre havia patrocinado as caves, uma garantia de que herança dos budistas haveria de sobreviver aos píncaros da infantilidade, momentos a que a história preferiu dar o enfoque de revolução cultural, 
Dunhuang era longe, pouco relevante na geopolítica de fronteiras cerradas e os cientistas protegeram Mogao. 
Pelo menos, no seu passado recente, mas o despertar foi tardio para os orientalistas ocidentais que pulularam em todos os locais exóticos do mundo, nos primórdios do século vinte, à procura de tesouros que sustentavam a sua visão exótica e romanesca do oriente profundo.
Por isso, há sempre no íntimo chinês contemporâneo um reconhecimento de quem lhes rouba os tesouros.
Por isso, foram ensinados a desconfiar das expressões faciais joviais e descontraídas.
Mesmo no metro e meio de erudição da pequena Luan e do seu molho de chaves.
Mas o seu metro e meio de erudição revela-se desastroso no que à procura da espiritualidade budista nos dizia respeito, porque nunca nos conseguiu transportar para as origens das grutas dos mil budas, para as lendas que sustentaram a fé durante, pelo menos, treze séculos, até ao abandono pelos poderes terrenos, da visão do monge Luo Zun que terá vislumbrado mil budas flutuando sobre o monte dos três perigos,  e por isso desistiu da sua viagem para a India, ou para os momentos de fé em que Buda sacrifica o seu corpo ao tigre esfomeado como se fosse um estado temporário de transição em direção à reencarnação.
Por cada porta de alumínio que a nossa Luan abria, entre as dezenas de outras que se mantinham fechadas por pudor, precaução ou apenas para ganhar tempo, desdobrava-se em factos, explicava a simbologia, as cenas pintadas que são maioritariamente cenas do dia a dia, desenhadas com uma simplicidade evangelizadora em que os símbolos mitológicos chineses são a representação dos novos territórios de inspiração divina e não se esquecia de nos alertar para os detalhes que revelavam as influências das civilizações distantes e quase se desculpava pelas imprecisões provocadas pela erosão do tempo e do abandono de sete séculos, que procedeu a restauração da soberania chinesa e da dinastia introspetiva Ming.
E até pela pilhagem dos aventureiros ocidentais do século vinte, que se apelidavam de arqueólogos.
De facto, os treze séculos de florescimento das grutas de Mogao contam a história dos encontros de culturas, a das viagens para lá do inóspito, quando Shao Han abriu a rota da seda em direção ao ocidente eliminando a oposição das tribos nómadas, mas também da vertigem das conquistas que encontravam no interior das montanhas o conforto espiritual dedicado aos aventureiros mas também aos inúmeros senhores da guerra que procuraram perpetuar, na sua efémera existência, as suas criações salvaguardando, por isso e sempre, a tolerância religiosa e, claro, o comércio.
Mas, como em quase tudo na China, precisamos das lendas para absorver o espírito e respirar a história e, por isso, enquanto a nossa mãe Luan procurava as chaves que deviam abrir as caves e as portas de cor prateada, de material gasto e de uma modernidade decadente, nós tentávamos pisar as flores de lótus tal como o menino Buda teria feito quando deu os primeiros passos, esperando que qualquer chão que pisássemos, as flores desabrochassem e conseguíssemos atingir a pureza espiritual.
Mas quando entrámos, percebemos, diante a serenidade do buda deitado, um estado apenas atingível com muita meditação, a nossa incapacidade de atingir o Nirvana e de nos libertar das águas lodosas dos pântanos terrenos, e perdemos a noção da cronologia da história na seletividade de Luan pela escolha da amostra de entre centenas de grutas, a dinastia do auge, seguidos de cem anos de caos e temor, trezentos anos de reunificação e paz relativa, construída sobre frágeis alianças e casamentos, antes do grande vendaval de Ghengis Khan e do regresso às origens da China profunda e solitária.
E enquanto trazíamos a nossa Luang para a nossa fotografia de família junto ao arco do triunfo do novo, não deixávamos de sentir que os missing links eram muito relevantes na herança de Mogao e que foi o longo período de paz, de introspeção ( e de abandono) que maiores estragos provocaram na herança budista da China porque, apesar das lendas de Luo Zun, o budismo nunca foi uma crença interna e, por aqui ,alimentava-se da globalização.
Também é verdade que a relação da China com as relíquias e com o budismo sempre foi  predominantemente de conveniência e, sem a procura da reencarnação, da inspiração de Buda, da sensibilidade e da crença nos milagres dos elementos, sobra a curiosidade histórica.
E o folclore dos novos ricos criados pelo regime.
Mas deixámos a Luan acreditar que tínhamos visto a luz, em Mogao
E enquanto devorávamos a sopa de noodles com carne, comentávamos a relevância histórica das heranças budistas, observávamos com uma descrição impossível os miúdos fardados que saiam das escolas em bando e nos acenavam pela nossa raridade e os velhos que jogavam dominó na praça das festas, por detrás da mesquita, e nos olhavam fixamente, mas incapazes de acenar ou de sorrir.
E enquanto nos procurávamos relacionar com uma sopa de noodles instantânea na gare ferroviária de Lyuan, começámos a entender que, quanto mais procurávamos a relevância histórica das heranças da rota da seda mais nos deixávamos seduzir pelas referências recentes do ocidental fim de mundo, das inevitáveis terras de fronteira, para lá da grande muralha.
23:41 destino da noite, Turpan




domingo, 22 de setembro de 2019

SILK ROAD #5 – Areias movediças no ocidente longínquo



Desde a dinastia Han que a História da China nos coloca, neste local, no fim da grande muralha,  para lá das terras de fronteira.
E, nas portas das fortalezas, reinaria o espírito do exílio e jaziam as pedras lançadas pelos expulsos, na esperança de que estas alcançassem a muralha e este bom presságio lhes permitisse  voltar a ver a terra da pátria mãe.
E, à chegada a Dunhuang, encontrámos os primeiros sinais de que há heróis com vontade própria, assaltados pelo espírito de iniciativa, que desprezam os perigos, as convenções e os interesses de estado 
E apesar de não termos qualquer evidência de termos encontrarmos a porta de Jade, não obstante alguns jurarem que a viram para lá das miragens do deserto, rapidamente nos convencemos que para lá das portas do deserto, vivem os aventureiros e os renegados. 
E a malta procurava tão intensamente os vestígios da grande muralha como o momento decisivo , embalados pelo romantismo dos criadores da história, que nunca cheiraram a poeira do presente do passado que narram, nem se enterraram na lama das guerras fratricidas, que nem nos apercebemos que tínhamos entrado na nova porta de jade por comboio, logo pela linha principal, uma porta de vidro que realçava as manhãs e relativizava as cores do deserto 
Ao fim do quarto dia, ainda nos prendíamos à ideia de que a História, por aqui, se faz de pedras e de caruncho, esquecendo-nos que o que importa é o conceito e a utilidade, face aos desígnios do presente e â necessidade prática de fazer viver mais de mil milhões de seres.
E quando empurrámos a porta da rua, não entendemos que essa era a porta do deserto porque lá fora não havia renegados a tentar adivinhar a sorte pela trajetória das pedras rolantes atiradas à muralha mas havia lagos artificiais dos quais, um dia, jorrariam água, e pululavam os aventureiros entre as fontes imaginárias, as árvores plantadas em fila que, um dia, se haveriam tornar frondosas, aventureiros do ocidente longínquo que desafiavam o mercado e as regras estabelecidas porque, ao planearem no longo prazo, os guardiões do templo criaram novas distâncias entre os lugares e incubaram uma nova geração de empreendedores sem limites nem lei.
Um dia os espaços serão preenchidos e, de entre os sem lei de hoje, serão rebatizados alguns para construtores da nova era enquanto outros entrarão em desgraça e, esses sim, desterrados para lá das novas fronteiras, e não haverá pedras rolantes que os salvem.
Essa será a expetativa, mas junto às portas do deserto a nossa primeira impressão é que tínhamos chegado a uma terra de areias movediças, ou de oportunidades, onde a nova ordem se constrói, por vezes através de atalhos que são tolerados como desígnios inesperados de um futuro que já foi escrito.
E subitamente, P escolheu um entre todos porque, ele a sua agente, pareciam entender um pouco mais  de números e de preços e parecia dono da mais moderna van que se encontrava no parque de estacionamento.
O fascínio dos humanos pelos desígnios da sorte, e a superficialidade dos ocidentais na avaliação das subtilezas culturais do oriente e a nossa ignorância desta nossa fraqueza, levou-nos ao júbilo.
Este motorista e a sua linda van bem podiam ser os símbolos do novo capitalismo de marca chinesa, onde, finalmente, se tinha encontrado a solução para a frágil (e passada) equação entre a qualidade e do preço.
Mas o defeito é o da natureza humana e, ao motorista clandestino, faltava-lhe provavelmente a licença para nos conduzir e esta terceira variável da equação deixou-nos a nós, sozinhos no meio da mata, enquanto o homem, assaltado pelo receio da sua própria ousadia, atirava pedras contra a muralha com a mesma impetuosidade com que tentava explicar a P num chinês tão convincente como impossível de traduzir, que era preciso que voltássemos a pé para a porta e que fingíssemos não o conhecer.
Ou isso, ou outra coisa qualquer, porque nem P nos explicou, nem nós nos aventurámos, sós, para lá da mata selvagem porque, afinal de contas somos ocidentais, mas não tínhamos camelos de duas bossas.
E tal como tudo começou, logo terminou porque, entre ser apanhado ou ser denunciado, preferiu enfrentar o controlo policial que, ou distraído ou compensado pelo gangster, não bloqueou a estrada nem nos dirigiu um olhar, sequer.
E, ainda hoje, nos questionamos se o insolente não nos queria apenas provocar a angústia ou renegociar o preço.
Como, à chegada ao hotel surpresa, inspirado no estilo dragão dourado, onde proliferavam os mármores, o vermelho, os balões e as imagens redentoras, não nos questionámos, sequer, por que razão nos tinham reservado umas instalações tão modernas que até refletiam a luz exterior no chão de mármore e nos espelhos que bem podiam forrar os tetos da entrada principal.
Para o P, sobrou um enorme veado na cabeceira da cama, com um olhar decidido, no seu tamanho natural e no híper realismo revolucionário de quem o criou.
Para nós, outras criações menores.
Nesta cidade (re)criada a régua e esquadro, numa modernidade simplória, estes chineses do interior já olhavam para os pouco ocidentais que os visitam e as muitas crianças que pululavam na urbe faziam-nos especular que este talvez fosse um dos destinos internos de colonização prioritária, um posto de retaguarda da grande fronteira do noroeste, onde os colonos descansam e mantém as famílias no seu espaço de conforto, enquanto constroem com fervor – e certamente algum prazer – o exército do futuro.
Pelo menos, essa era a imagem que nos esforçávamos por desenhar, na nossa ignorância, enquanto nos lambuzávamos de refeições picantes a baixo preço e entornávamos cerveja com o mesmo compasso com que prevíamos o futuro da ditadura esclarecida.
Enquanto os empreendedores esfregavam as mãos, libertavam mesas de chineses solitários e desfaziam-se em disponibilidade e em sorrisos com a nossa fome, mas sobretudo com a nossa determinação em confinar as nossas dúvidas, com a vontade de comer.
A quem paga (quase) tudo é permitido
Quando, tarde adentro, iniciámos a nossa incursão nas dunas (mais altas do mundo) do princípio do deserto que nos transporta para o início da rota sul, em direção aos territórios da Ásia Central, já nos considerávamos especialistas em areias movediças e, especialmente conformados com a persistência (e método) com que os chineses transformam os caprichos geográficos em parques de diversão para consumo interno.
Mas, cento e tal metros acima, a visão das areias sem fim imaginado, colocou-nos nos trilhos da rota sul e, mesmo sem camelos de duas bossas disponíveis (havia camelos, mas estavam ocupados a passear turistas chineses calçados de pantufas laranja até ao joelho – as pantufas eram para proteger das areias, mas o laranja era basicamente um esforço de domar o veado que não abandonava a cabeceira do P.), sentimo-nos predestinados a grandes feitos.
Mas decidimos antes, voltar as costas a muitos meses de areias e tormentas, e correr dunas abaixo na direção do oásis, porque sabíamos que a fome iria voltar e que, se perdêssemos demasiado tempo em terras desabitadas, iríamos perder a essência do que distingue esta rota das outras.
Na praça principal preparava-se a festa, instalara-se um palco construído para permitir vistas largas, demasiado largo para a dimensão da praça, porque a cidade é pequena, mas o tamanho do palco assegura-nos que, um dia, a cidade vai ser grande.
As danças são chinesas, mas festeja-se o fim do Ramadão, as dançarinas são muçulmanas,  mas os fatos são rosa garrido com bordados dourados e a música, os gestos e movimentos, refletem a graciosidade contida que nós, ocidentais, nos habituámos a associar à China de outros tempos.
Por detrás do palco emergia a mesquita local, com a mesma solenidade da sede do partido, porque é relevante que o enquadramento seja adequado, enquanto o âmago da praça se enchia de mestiçagem e de famílias e, até os mais céticos, passaram a acreditar na versão oficial de que há sempre a possibilidade de que a mistura se transforme numa raça única e que assistamos a um período histórico de aproximação com base no aproveitamento do melhor que cada raça, religião ou cultura pode acrescentar ao denominador comum do relacionamento futuro entre povos.
Obviamente que estávamos todos à mesa, na esplanada e rodeados de cerveja e comida picante.
As dançarinas eram jovens e muçulmanas e tiravam muitas fotografias connosco enquanto se riam de curiosidade, perante a indiferença da autoridade local e o olhar reprovador de uma transeunte Huan, que abanava a cabeça e murmurava uma elaborada conjura verbal.
Sem razão nem justificação, o fim de festa coincidiu com a entrada na praça de uma brigada swat, muitos soldados de camuflado, não se anteviam distúrbios à ordem pública, mas também não era necessário porque os miúdos que se escondiam por detrás das viseiras de plástico, não revelavam quaisquer sinais de mestiçagem e os seus olhos espelhavam as instruções de que a ordem pública é uma especialidade de medicina preventiva, assim foram treinados, essa era a missão de um exército e de uma polícia, que garante um território uno e coeso.
E, para quem ousava olhar os miúdos nos olhos, havia vestígios de pânico contido, espelhados nos escudos que os protegiam, porque a sua idade não lhes permitiria saber como agir se o Ramadão, por aqui, não fosse apenas uma cerimónia protocolar.


Perante a indiferença do panda kung fu, dos personagens do mercado noturno, das peças de jade, dos balcões forrados de frutas secas e especiarias desconhecidas, do artesanato local ou dos produtos de consumo de massas e  de uma cidade que volta a acordar com o pôr do sol, porque, com a noite, as poeiras do deserto dissipavam-se e os habitantes locais voltavam a respirar sem máscaras e a sorrir com as luzes.  
O A e o J sorriam também, e bebericavam chá gelado com sabor a fruta, enquanto as jovens explicavam a origem dos bules, do chá e das frutas, sorriam coradas quando eles elogiavam este oásis de bom gosto, treinavam sem receios os primeiros passos desta nova dança chamada inglês e, com uma curiosidade que se refletia nas montras iluminadas da loja, aventuravam-se nas técnicas de qualificação previa dos clientes com vista à maximização das vendas.
Sem entender bem se estas jovens, sofisticadas no vestir, e simples no olhar, no rir e no corar, seriam um produto do regime ou dos ventos de mudança que sopravam das montanhas das areias cantantes.
Com o sabor de chá de frutas, a proteção do veado, embalados pela música das dunas e no conforto das areias movediças, poderíamos ter sonhado toda a noite com a importância estratégica de Dunhuang no cruzamento do corredor Sul da rota da seda com o caminho principal que ligava a India à Sibéria, a Sul através do Tibete, para Norte através da Mongólia.
Sem certezas, nem nenhuma ordem de importância definida.



domingo, 8 de setembro de 2019

SILK ROAD #4 – Os heróis mais do que improváveis



O revisor foi afirmativo, perentório.
Afinal de contas o beliche de cima não é o do meio, e a ninguém é permitido provocar o destino, a aleatoriedade da procura e os registos da sua magnífica pasta onde os nossos bilhetes ficam reféns, por troca de um cartão de liberdade condicional.

E o funcionário certifica-se que cada um dorme no local certo e que ninguém muda de cama mesmo que seja inevitável que os melhores lugares não vão lotar, afinal não é a época alta para os chineses.
É a sua magnífica pasta que lhe orienta o quotidiano e nos tolhe os movimentos
Tudo meticulosamente registado.
O expresso da noite e do dia inteiro não é apenas um meio de transporte em que todos devem, por razões de ordem pública e de obsessão pelo detalhe, ser cuidadosamente arrumados por camadas, mas o grande veículo para que, na órbita da previsibilidade e da resiliência, se realizem os grandes desígnios da nação.
E o grande desígnio da nação é, ao que é possível pressentir, do interior do tubo de ensaio de vidro sem legendas e com proteção acústica dentro do qual viajam todos os estrangeiros, transportar o desenvolvimento económico do litoral sobrelotado para o interior profundo e para as novas fronteiras, uma fórmula de harmonizar o acesso das populações ao progresso, apaziguar sentimentos de exclusão e deslocar chineses para os caminhos da fronteira oeste.
Afinal de contas a mesma ambição que persegue o imaginário chinês dos últimos dois mil e quinhentos anos.
Pelo menos.
Às 3,54h da manhã ninguém dormia nesta horda de soldados que percorriam os corredores sempre que se aproximavam novas chegadas e, afinal, a pasta também servia para acordar os passageiros, que não têm um horário definido para dormir, porque a nação é grande, o tempo é curto, a obra é grande e não existem fusos horários suficientes para garantir um sono noturno a todos os chineses.
Sem uma palavra, sem um sorriso, sem um olhar
Os guardiões do corredor de Hensi apenas pretendiam assegurar que a viagem entre os oásis que deram proveito ao extremo oriental da rota da seda decorreria sem sobressaltos
Oásis, fortalezas e cidades, diferentes perspetivas, ambições e, especialmente, épocas, mas exatamente nos mesmos lugares, porque este caminho foi a única escolha com que a natureza presenteou a ambição dos humanos na história, cercado por montanhas, rios e desertos, à escala de um continente.
Tinha amanhecido quente e seco nos confortes da porta ocidental de Xian, onde os locais ofereciam tostas aos viajantes, para aqueles que partiam na direção do sol poente e que, em breve, se tornariam passado.
Na praça Ximen, ou simplesmente na porta ocidental, já não existem caravanas de mercadores que partiam em grupo com os seus cavalos de Fergan, mulas e de camelos bactrianos de duas bossas em direção ao corredor de Hensi.
O calor do interior profundo refletia as nossas sombras quase na vertical enquanto atravessávamos a praça preventivamente liberta de multidões, forrada de pedra branca e rasgada pela modernidade.
Na praça Ximen já não existem caravanas, mas a porta ocidental é ainda um ponto de partida para o ocidente, de onde partem os comboios  que interligam as cidades fortaleza, os oásis e as cidades do Noroeste.
Mas na porta ocidental de Xian, cuidadosamente recortada na muralha que circunda a cidade histórica habita a contenção, os homens das braçadeiras vermelhas que coordenam o tráfego, os primeiros olhares que perscrutam as nossas sombras que ocupam de forma generosa os espaços vazios, sem que nos seja permitida qualquer reciprocidade e nunca entenderemos se nos olham com curiosidade, desprezo ou indiferença.
Paira no ar uma desconfiança oficial pelos bazares sem controlo, pela euforia das partidas, pelos heróis que desprezam os perigos, as convenções e os interesses de estado e que acreditam que o comércio é o único sobrevivente às utopias dos grandes impérios que, normalmente a história se encarrega de tornar efémeros.
Dentro da gare, respira-se um esforço de modernidade asséptica, sem classes nem ajuntamentos, sem ruídos de fundo e de expressões contidas, mas a caminho do ocidente ainda se distinguem os conectados  em rede e os que olham o vazio enquanto devoram o concentrado de noodles em água a ferver e seguram os seus pertences com as cordas que os agarram às inevitabilidades resultantes do progresso.
Dentro da gare, apenas os locais sagrados permaneciam vazios e suspensos no tempo : a sala de espera dos militares, um monumento ao passado e o salão restaurante que parecia concebido para o futuro que vai chegar, onde somos surpreendidos pela modernidade dos olhares e dos sorrisos, uma juventude que se esforça em agradar e serve cafés expresso a três euros com o mesmo detalhe com que artesãos desenham os papiros no bairro de Shuyuanmen.
Enquanto a nova China desfilava sob os nossos olhos a um ritmo de comboio expresso e se confirmavam todas as promessas de uma natureza de elementos que não se conformam e das realizações humanas que não param de desafiar a natureza, enquanto comemorávamos com circunstância e com uma pontinha de soberba a travessia do rio amarelo que, naquele local e com aquela chuva, até nem parecia grande coisa, mas ninguém reconheceu a desilusão, não nos saía da cabeça uma voz que nos repetia sem cessar que os camelos são animais domésticos invulgares, carregam enormes cargas no seu dorso, correm rapidamente sobre as areias movediças do deserto, demonstram coragem nos lugares perigosos e tem um secreto e subtil  conhecimento das molas, como amortecedores dos caminhos difíceis.
Entre os cavalos de fergan, mercadores sem nome, distintos empreendedores, dinastias guerreiras e os invasores das estepes ocidentais, estes eram os verdadeiros heróis da rota oeste
Os camelos de duas bossas bactrianos

Sem chapas na lapela, porque o que interessa é o resultado do trabalho comum.