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sábado, 19 de outubro de 2019

SILK ROAD #8 – O longo rio da História





Elas receberam-nos de braços abertos junto ao portal dos detetores de metal e apesar do seu ar jovial, as seguranças apenas pretendiam exemplificar o que tínhamos de fazer se o portal apitasse – e este apitava sempre – e era um prelúdio para o que seguiria.
A igualdade sexual como uma conquista do socialismo, mas sem preconceitos ideológicos.
E não se trata de igualdade de oportunidades mas de igualdade de poder, de exercer o poder, de dar ordens, de nos fazer frente num controlo de segurança, de nos apalpar sem diferenças de género, sem falsas cortesias nem desnecessários abusos de autoridade, apenas os gestos necessários, levanta os braços, as mãos plásticas percorrem a silhueta em movimentos que denotam uma leitura atenta dos manuais de segurança, sem distinção das especificidades de género, agora volta-te, com um gesto brusco e fechado da china central e com um impercetível sorriso da província da mestiçagem.
A despedida faz-se em grande, muito diferente da chegada na penumbra, numa gare ainda percorrida pela obscuridade do antigo, certamente em lista de espera para a demolição.
A gare ferroviária da nossa despedida é central, nova, reluzente de vidro e cúpulas bem desenhadas e de silhuetas futuristas.
Adivinha-se futuro nos milhares de metros quadrados de quarteirões terraplanados que separam a nova gare da cidade, mas os guindastes não dão descanso porque nesta terra árida, precisam-se de sombras e os blocos de apartamentos fazem sombra e irão albergar os novos colonos destes espaços.
E as seguranças da gare são o rosto e o corpo da nação pragmática que não confisca os líquidos mas também não nos concede o direito de escolha, bebes e pronto, fica resolvida a dúvida se é água ou se é um elemento ácido ou explosivo, e nós ficamos a perguntar-nos o que aconteceria se sugeríssemos a alternativa de deitar a água no lixo. 
Com um fardamento impecável que realça a juventude da cidadania dominante.
Há episódios tão gráficos que dispensam considerações ideológicas, mas realçam a diferença de perspetivas que nos separam, e quase nos enternecemos com o esforço dela em me ajudar a fechar a mochila repleta de roupa suja e outras superficialidades sem nunca deixar de pensar que é mesma miúda que insistiu que eu bebesse a água, atitude impensável nos nossos padrões, certamente  entendido como uma intromissão na liberdade individual de escolha e, como se não tolerássemos a ideia de apanhar alguém em flagrante delito e que o politicamente correto prefere que se eliminem as provas à possibilidade de provarmos a nossa inocência.
Perdemo-nos nas nossas inseguranças e eles nem se questionam sobre os direitos individuais, simplesmente porque não faz sentido, se trazes a água, é certamente para beber e não para a deitares fora, portanto beber a tua água que trazes contigo é, de facto, a atitude correta, enquanto os nossos caixotes do lixo continuam atulhados de plástico, apenas porque a nossa herança humanista nos impede de duvidar das pessoas mas não nos impede de lhes confiscar os recipientes.
Usamos os mesmos padrões de consumo, mas entendemos todos os detalhes da vida em comum de forma diferente, antagónica mesmo, é a forma diferente como combinamos os fatores que torna a linguagem gestual quase surda. 
Haja vontade ou não. 
Por isso tudo nos parece familiar, antes e tudo soa a novo, depois, há uma sinalética abundante, um recurso hiperbólico às animações e às cores, uma ansiedade de sobrepor ruídos sobre a multidão, fazer a diferença entre milhões de mensagens não subliminares e esta recusa dos padrões da doce subtileza ocidental faz com que, no fim do dia, sejamos sempre incapazes de entender o cerne do dragão.
Apesar da semelhança dos códigos de barras, das bicicletas alinhadas nos dispensadores dos passeios, da tecnologia digital das redes sociais, das modas da juventude (inquieta?)
No museu da cidade de Turpan a história da região é contada na primeira pessoa, não deixando equívocos quanto à origem da ocupação civilizada da região, a partir do seculo II BC, retirando o necessário relevo aos longos períodos de ausência, aos quatro seculos de ocupação uigur, à invasão mongol, até porque tudo acabou bem e as dinastias da china imperial voltaram a impor o poder no século 18.
Um museu do antigo regime, gasto na aparência, mas sofisticado na substância e na justificação  antropológica para a convivência multicultural , segundo um prisma dominante.
Para que não restem dúvidas de qual a mensagem oficial, a conclusão é mesmo o último expositor do museu com uma legenda bilingue, para que não possamos evocar a falta de compreensão: 
“No longo rio da história, numerosos grupos étnicos e raças habitaram a bacia de Turpan, ( e a lista é longa e repetida sem o esquecimento de ninguém) , todos deixaram o seu legado em locais únicos na cultura e nas criações e uma contribuição decisiva para o desenvolvimento da História.
As religiões que prevaleceram ao longo dos séculos influenciaram e continuam a alimentar a mente das pessoas desta terra.
Turpan tem sido um local onde diferentes povos e religiões coexiste e se misturam de forma a alcançar o progresso comum, desde os tempos antigos…
Que absorvamos a grande herança dos nossos antepassados, tomemos a história com um espelho para nos guiar no crescimento do futuro, para estabelecer a unidade e as relações harmoniosas entre diferentes grupos étnicos, e fazer progressos em conjunto para alcançar um futuro ainda mais belo.”
A nossa ironia é desbragada porque, apesar da mensagem ser revisionista, a nossa sensibilidade ocidental soa a fracasso, pelo menos no que a unidade e futuro mais belo diz respeito.
Apesar da nossa falência em contrariar o destino do oriente e do mundo, continuamos a insistir, no íntimo, que a última afirmação do regime parecia um espelho invertido da realidade vivida no bairro uigur.
Mas o prisma oriental da realidade desfaz as nossas expetativas de tragédia, uma vez mais, no último troço do expresso do ocidente, em direção a Kashgar.
No compartimento 7 vive-se no esplendor da irmandade uigur um casal 81 51 que casou por amor, que transborda farnel e cheiro a bedum de cordeiro, o velho fala com as mãos e procura negociar a jovialidade com um banquete.
No compartimento 6, o nosso vizinho chinês comporta-se como um distinto guerreiro que mantem a postura, mesmo depois de C. lhe ter arrastado a mala dos seus pertences mais queridos, para longe do seu espaço de conforto e a  sua barba fina lembra-nos as grandes epopeias das dinastias do início de milénio, em que a honra se lava com sangue e com espadas afiadas.
Esta imagem romântica da antiguidade chinesa deixou uma boa impressão sobre o rapaz, apesar da troca de opiniões ter sido infrutífera.
Acabámos a trocar cigarros no corredor de fumo, olhámos um para o outro, acenamos e continuamos a fumar olhando expressivamente para o horizonte, que agora se chama Korla.
Na carruagem 7, trocamos postais de lisboa com os amigos uigur, o ancião colocou o punho junto ao peito e fez uma vénia, olhou para o panteão fez o sinal da cruz ao contrário, revelador de uma inesgotável tolerância religiosa.
E chegámos a Kashgar no expresso da harmonia multicultural, aos nossos olhos, rústica e estranha, porque contradiz a nossa visão orientalista, cheia de véus, túnicas, poeira e pinceladas difusas a pastel.
Mas, aos olhos deles, navega-se no longo rio da história, em cores vivas de um híper realismo contemporâneo.
Mais uma vez, fomos incapazes de chegar a uma conclusão sensata.
E um calafrio de euforia, começou a percorrer-nos a espinha.




domingo, 13 de outubro de 2019

SILK ROAD #7 – O rafeiro branco na Terra incógnita




O rafeiro branco é o único que não revela inquietação pela acutilância do estado policial, na chegada a Xinjiang, uma nacionalidade diferente pela raiz histórica e uma mesma cidadania por oportunidade geopolítica.
Rebola-se no alcatrão da via rápida de seis faixas que, das suas sete e meia da manhã de movimento reduzido, ainda exala uma temperatura suportável da brasa que se espera hoje na segunda maior depressão do mundo: Turpan.
Na segunda barreira policial de um dia em que entra uma nova língua no estacionário chinês, o árabe.
Apenas o rafeiro branco se rebola no alcatrão morno, mesmo em frente à mesa do polícia cheia de passaportes e vazia de instruções, como que a relativizar a nossa relevância e a nossa mania de complicarmos o que desconhecemos.
E, aos olhos do rafeiro branco, não há diferenças substanciais entre os nós e os eles porque para ele, falamos todos a mesma linguagem, afinal de contas também nós não distinguimos um ladrar chinês, uigure ou ocidental e para ele, não passamos de um bando de humanos, de raças e roupas diferentes, rebolando-se à volta de uma mesa de madeira cheia de entulho, provavelmente e, segundo ele, para passar o tempo no meio da autoestrada que ainda não tem movimento, não porque seja cedo  mas porque o futuro ainda não chegou.
Achamos nós, não ele, porque estes espaços de quase futuro exalam um forte odor de presságio, mas para o rafeiro branco cheira apenas a alcatrão fresco e a poeira do deserto.
E, no silêncio da manhã na via rápida do futuro, os humanos continuaram a rebolar-se à volta de uma mesa de madeira, muito depois do rafeiro Han se ter fartado e ter desaparecido por entre as bermas cobertas de vegetação, seca e rastejante, daquela que rebola com o vento e transporta recordações pelo deserto adentro, e pelo seu à vontade e forma discreta de retirada, talvez fosse mesmo um cão local.
E era a nossa vez de interiorizarmos as crenças chinesas nos demónios que, para lá das portas para as regiões ocidentais, esperavam os viajantes que por ali se atrevessem a passar, os monstros da terra incógnita.
Mas, ao contrário dos tempos da antiguidade, alguns de nós (pelo menos um de nós) adivinhávamos o que existe para além, somos ou não provenientes das terras do ocidente, e nunca deixámos de nos convencer que os monstros da terra incógnita não passavam de um mito de Adamastor, devidamente fardado, destinado a testar a nossa perseverança e avaliar a nossa fibra, agora que tínhamos abandonado as terras introspetivas da mãe china e nos iríamos embrenhar nas terras das novas multiculturalidades.
Bem, talvez alguns de nós tenhamos acreditado mesmo nos monstros da terra incógnita quando desembarcámos na luz fria do amanhecer, nós e a idosa uigur, conduzidos através dos corredores da gare escurecida pelo tempo em direção a uma sala de espera que se assemelhava a um monumento do antigo regime, e tivemos uma visão que só conhecíamos do cinema, caras fechadas, detetores de mentiras e metais, um guichet e uma eternidade de espera por um destino incerto para os viajantes do expresso da meia-noite, mas eles tinham um ar tão familiar, para quem vinha da China.
Mas ainda bem que havia quem acreditasse que, quando sol nascesse e dissipasse as sombras da madrugada, iria submergir das areias do deserto um cidade repleta de memórias nómadas, um povo que não conhecia de forma precisa os contornos das suas fronteiras e gentes que reconheceriam os estranhos porque o seu desapego às raízes os tornava cidadãos de todo o mundo e de qualquer lugar.
E o cão rafeiro a rebolar-se era um bom presságio.
E a cidade devolveu-nos a agitação e o ruído das crianças que pululavam na poeira que cobria o pátio do restaurante, a mesma matriz de uma alimentação comunitária pela manhã, mas a sala estava forrada de sons e reinava uma anarquia de pão, gorduras e carne e uma partilha de vidas em redor das mesas do pequeno almoço, a primeira refeição do dia era como se o bairro celebrasse a boda dos filhos pródigos, todos os dias, e não havia rostos enfiados na sopa de noodles e olhares desafiando o infinito em silêncio, sem espelho.
A entrada nas portas de Turpan foi quase triunfal, afinal havia razões para que ela fosse impenetrável à intromissão de estranhos, “é o princípio de uma china diferente, menos uniforme, menos imperial” porque prevaleceu durante séculos nesta zona de fronteira a audácia e a inquietação dos povos nómadas.
As primeiras impressões são, por convicção, as que prevalecem no subconsciente quando se alargam os fossos da memória.
Mas em Turpan, a aculturação ao poder dominante é tão galopante que afoga as primeiras impressões, ao longo de um só dia e, o valor histórico das ruínas, como o primeiro local que disfrutámos sem limitações e que datava mesmo do período da rota da seda, apenas prolongou a miragem que crescia com a sede que apenas um magnifico café gelado de origem chinesa ,acalmou.
A sede e as miragens.
A água será sempre o primeiro e o último dos milagres do deserto e, quem a domina, estabelece as regras e os equilíbrios na rede de entrepostos que liga os mercados e as civilizações e o milagre da água em Turpan, explica-se pela engenharia e pelo cálculo exato dos desníveis, uma ciência milenar sem dono preciso porque o mundo já foi global e, nem sempre, as heranças externas se construíram sobre tragédias e cadáveres.
Mas à chegada ao vale, os túneis azul e púrpura irradiavam um sentimento de pertença dos novos donos do deserto e de todas as fronteiras do ocidente.
Uma afirmação folclórica de poder, com chão de vidro sobre a água gelada das montanhas, uma afirmação de superioridade do presente sobre o passado, dos conquistadores sobre os inventores.
E o frio dos subterrâneos de Turpan diluiu o que restava das primeiras impressões, antes ou depois do nascer o sol na planície.
A mesquita de Turpan  é um templo sóbrio, singelo que chora sozinho a poeira dos tapetes que não voam e a fé que não se professa.
Não há fiéis como havia em Xian, também é verdade que ninguém se preocupa em fingir e a mesquita de Xian vivia enclausurada entre jardins orientais e pagodes chineses, e somos obrigados a conceder que talvez a profissão de fé exija algumas cedências formais, (especialmente) aqui ou em qualquer outro lugar.
Mas às portas do deserto as vozes do profeta soam fracas e as mensagens difusas.
As vinhas de Turpan são o ultimo refúgio da comunidade uigur, crianças que brincam nas ruas, velhotes sentados à porta das casas, das oficinas e da pequena mesquita da rua, famílias que dormem e comem no pátio interior, as camas que se veem do exterior e pressente-se que a comunidade professa dentro de portas, as crianças acenam com curiosidade, puxam os adultos para a curiosidade e transportam os seus sonhos, em cima das suas motas de caixa aberta.
Enquanto aguardam, há tinta vermelha que omite alguns símbolos da fé, desenhados em azulejos colados sobre as portadas da rua sem asfalto, que transporta pelo ar os tons de laranja do fim de tarde de verão.
No final da rua acaba o bairro, atravessado por uma avenida de quatro faixas, arranha céus de pequena largura a ameaçar invadir o bairro e um carro de patrulha circula a avenida em baixa velocidade e sirenes de luz ligada.

Não obstante, a velhota sentada numa cadeira no passeio insistiu em virar se para a luz, compor o vestido e posar para uma fotografia de família.