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quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

SILK ROAD #13 – O silêncio dos inocentes




A pureza do silêncio é a recordação mais viva do encontro com as neves eternas dos montes Pamir.
Interrompida, aqui e ali, pelo roncar dos esparsos camiões que vão e veem da fronteira, pelos chocalhos dos animais que voltam sozinhos para casa, na hora do recolher, pelos risos estridentes das crianças que enfrentam os estrangeiros com o mesmo atrevimento com que saltam para a estrada para um registo de posteridade, mesmo que essa seja a única estrada por onde passam os mensageiros do além terra, as vacas no regresso a casa sem pastor nem cão guia e que a velocidade dos intrusos não chegue para assustar os mestres do isolacionismo, não há óleo no chão que desfaça as montanhas de estrume seco que ligam as bermas e relativizam as fronteiras. 
Mas não há ruídos de fundo e, portanto, quando os intrusos se recolhem ou simplesmente partem , ouvem-se os ecos do silêncio até aos cumes dos picos que empurram o planalto para ocidente.
Apesar das centenas de yurts que se espalham no verde da paisagem e expelem fumarolas brancas das chaminés improvisadas, como se tratassem de pequenas comunidades circenses que reúnem os seus pertences, as suas proles e os truques de magia em torno das tendas circulares, mas a sua essência está nos planaltos e nos vales, no gado que rumina a cor e alinha o relvado, e nos cavalos que correm sem respeito pelos limites da propriedade, a independência e os símbolos do orgulho das tribos nómadas das estepes, muito tempo depois de terem deixado de incomodar o que se espera ser o percurso normal da história dos povos e dos impérios dominantes.
Na solenidade desta sucessão de momentos, resta o respeito pelo silêncio, os cavalos de Fergana, a paisagem, a Numância, o isolamento e a reduzida afirmação do estado, que concedem a estes povos de movimentos tolhidos, a noção de espaço infinito.
E a velocidade com que atravessamos a vida deles não nos permite decifrar os seus códigos, nem os indagar sobre as lendas que os cobrem, será que ainda raptam as noivas, será que se organizam em clãs e exercem o poder político da mesma forma que as velhas tribos controlavam as franjas dos impérios e exigiam tributos, para não fustigar as caravanas e as ambições de domínio global, será, ou são apenas hologramas deixados no planalto com o único propósito de inspirar respeito pelo medo, a derradeira tentativa de adiar a sua própria extinção?
 E Sari Tash é o entreposto que liga a vida dos planaltos verdes ao mundo exterior, sem os dissolver, e é a expressão material do “Epic of Manas”, um poema tradicional com meio milhão de linhas que descreve a unificação de sete tribos num único povo e que se transformou, no século passado, no livro de escrituras que justifica, através do dogma, a existência de uma nação com raízes na história.
Afinal de contas, sem dogmas devidamente inseridos numa cronologia credível, as sociedades organizadas não sobreviveriam, nunca, à anarquia e à errância.
O anoitecer chega a Sari-Tash ao ritmo dos ciclos da natureza, das vacas com um sexto sentido, e que se recolhem com os humanos que nos sorriem apesar dos seus olhares encardidos pelo frio, pelo vento, pelas neves eternas e pelo convívio interrupto com os caprichos dos elementos.
Também as nuvens regressam ao final do dia para se fundirem com as montanhas e permitirem aos camponeses descansarem das visões dos grandes espaços, enquanto recolhem os utensílios e se recolhem para descanso de mais um dia de sol a sol.
Em Sari-Tash reencarnámos nos primórdios da era moderna, a vida deles não se alimenta de aspirações, apenas das oportunidades que a terra e os ocupantes lhes proporcionam porque eles sentem que entre a nostalgia das tribos que, em tempos, dominaram as estepes, e o esforço dos homens da planície em construir uma raíz histórica credível que justifique a existência da nação, estão eles .
Apesar do apelo das águias caçadoras, é na aldeia que vive o presente.
O velho que regressa a casa puxando um carrinho de mão , botas de borracha que marcam os caminhos enlameados, com o puto empoleirado em posição de corrida, as mulheres que recolhem a roupa estendida, antecipando as nuvens que cobrem os montes e a noite que vai congelar os riachos, o puto que nos espreita por detrás das estrelas vermelhas recortadas nos muros amarelos que seguem a estrada principal, as crianças que jogam à bola nos terrenos lamacentos que que se ligam entre as casas dispersas como quintais comunitários ao cuidado da natureza, os homens que guardam o feno no que resta dos camiões de transporte do exército soviético.
Debaixo da grande tenda circular do aldeão sedentário, debatemo-nos com as amplitudes térmicas, os ventos rastejantes de norte, o canto dos galos submersos em insónias e procuramos imaginar o céu que não conseguimos espreitar por cima dos cobertores, receando que o nariz congele e se desfaça.
E com a noite apagaram-se as luzes em terra e acenderam-se as estrelas no céu, bem para lá do monte Lenine.



domingo, 5 de janeiro de 2020

SILK ROAD #12 – Latidos na terra de ninguém





Os três rafeiros, habitantes da zona de ninguém, descansavam na sombra da guarita do último reduto chinês, sem culpa e com uma conivência descomprometida dos últimos soldados de farda suja e coçada, mas levantaram-se à nossa chegada e lideraram a passagem da fronteira a salto, ladeira abaixo, cauda a abanar e orelhas em riste. 
A chegada, fomos recebidos pela hospitalidade da Ásia Central, por fardas ainda mais coçadas, uma total ausência de sistema, de organização ou processo, armas tão enferrujadas que denunciavam a sua inutilidade, bem para lá da última curva da terra de ninguém, e entrámos no primeiro perímetro de defesa quirguiz sem mostrar passaportes, afinal de contas, Portugal é sinónimo de vedetas mediáticas do desporto chamado de rei. 
Os nossos amigos caninos esses foram corridos à pedrada, ladeira acima. 
No Quirguistão não suportam colaboracionistas. Especialmente com os chineses.
Um bando de turistas chineses que vieram experimentar a terra de ninguém juntam-se numa fotografia de grupo com a estrela amarela em fundo vermelho pintada na encosta fronteira e, em grande alarido e excitação lançaram-se ladeira abaixo sem passaportes nem controlo para observar o primeiro posto de fronteira do Quirguistão de um mirante construído pelos donos da colina porque afinal, mesmo na terra de ninguém, existem sempre os uns e os outros.
E há quem sugira que estes chineses estão sempre a empurrar os limites para ocidente.
Pela ladeira acima, em direção à China empilham-se os camiões quirguiz que adivinham dias de espera, uma nesga de oportunidade para colocar os produtos na grande mãe do oriente, enquanto os chineses desdenham, fazendo-os esperar, sem aviso nem critério.
Na nova terra, os camionistas revoltam-se à procura de um lugar mais próximo do sol nascente, enquanto os táxis informais se atropelam na zona de segurança máxima para angariar os poucos clientes que atravessam a fronteira a salto, sempre com o beneplácito suspeito dos guardas.
Chegámos à fronteira do fim do mundo pouco depois da pausa de almoço porque sim, esta travessia permanecia encerrada todos os dias durante duas longas horas, não porque esta interrupção fosse necessária para alimentar o regimento dos guardas, mas como uma forma de refrear a leviandade dos viajantes por teimosia.
Se entendêssemos a língua, certamente estaríamos avisados para os grandes desafios do presidente e da nação, desenhadas em amarelo nos placards vermelhos plantados na paisagem, aliviando a monotonia das cores dos montes e vales, milhares de tons de castanho, em direção à fronteira.
E eventualmente teríamos entendido as diversas prioridades estabelecidas nas filas de espera, junto ao que julgávamos ser o último posto fronteiriço, antes da Ásia Central.
Estatuto ou atrevimento ou apenas uma componente da máquina processual de desencorajar liberdades de movimentos, que se possam tornar excessivas, com o hábito.
E porque a redundância é um processo tecnológico e de gestão, que tende a reduzir os riscos de erro, e a independência dos diversos reguladores é uma forma, como qualquer outra, de evitar desastres, fomos conduzidos lentamente e de uma forma, na perspetiva deles, metódica, na nossa, aleatória, de controlo em controlo – afinal de contas tantos dias a vaguear pelo ocidente chinês, pode configurar uma interminável série de delitos ideológicos – até aos últimos metros da grande marcha, o edifício da fronteira, o posto de controlo avançado da fronteira e até ao arame farpado propriamente dito, onde o nosso passaporte é validado pela vez número seis.
Alternando entre as caras fechadas, os gestos bruscos, uma total indiferença pelos nossos segredos, mesmo que inexistentes, alguns leves sorrisos e diversos desentorpecimentos musculares quando se falava do astro da bola, uma educação sem excessos e alguns laivos de gentileza e disponibilidade logística como se fizesse parte do processo, sem que, contudo, nos fosse permitido tomar como seguro qualquer passo seguinte.
E, por fim largaram-nos, com um alívio quase indisfarçável, na terra de ninguém.
E cinco quilómetros bastaram para que entrássemos num turbilhão de novas dimensões, como se a China tivesse acabado de se desconstruir ladeira abaixo, como se a terra de ninguém fosse apenas um prelúdio para uma nova dimensão, e cinco quilómetros bastaram para testemunhar os efeitos da queda de um império, as estradas que perderam alcatrão sob o efeito do tempo e do esquecimento, os camiões militares transformados em galinheiros, por falta de peças mas sobretudo pela sua inutilidade perante os desígnios de uma nação que nasceu de um descuido dos pais.
E quando completámos os cinco quilómetros de descida aos antípodas da realidade aumentada a que os chineses nos tinham habituado nos últimos dias, (edifícios de vidro que resplandecem de novo, estradas que não refletem uma ruga sequer, apenas pavimentos brilhantes, traços cuidadosamente desenhados e uma sinalética que exalava ousadia) regressámos abruptamente ao hiper-realismo soviético dos lugares esquecidos nos confins do império, lugares despojados de referências, em tons pastel, com corredores que existem como divisões próprias, portas, muitas portas, de madeira e vidros foscos, guichets, muitos guichets, revestidos de castanho, madeiras que se corrompem com um caruncho chamado tempo, um lugar que se queria manter fiel ao ideal construtivista, queria ser uma marca da grandeza do regime à vista do império vizinho, mas que sabia, de antemão, que nunca teria o protagonismo que motivasse uma condecoração ou um louvor.
E, no fundo do corredor, enfrentamos os despojos humanos que, da distância e da solidão, ainda não entenderam se são o último bastião do regime ou apenas um farrapo da história recente.
As mesmas fardas coçadas e olhares inquisidores que, na ausência de instruções e de objetivos, se tornam, primeiro em interrogação, depois em desconforto e, depois de percorrer corredores e cruzar portas, soletram a nacionalidade, exercitam o bigote e colocam um sonoro carimbo nos passaportes de quem entra no seu novo país.
Como se tivéssemos recuado algumas dezenas de anos, em poucos quilómetros,  nas referências visuais e nos gestos, e até na ideologia e nos propósitos, mas fora do contexto original, mais de trinta anos depois da história passada.
E quando fomos admitidos no  Quirguistão, logo a natureza nos envolveu e apagou a curiosidade, é definitivamente uma terra diferente mas, nesse dia, nem um minuto nos recordámos da importância dos desfiladeiros de Irkishtan e das montanhas Pamir ao longo da história da rota da seda e no destino dos povos quirguiz. 
Enquanto desfilavam, ao longo das janelas da mini van do amigo de P, os planaltos de verde, as cordilheiras de branco, as centenas de tendas e de famílias que ainda vivem da pastorícia nómada,  não deixávamos de pensar que os rafeiros colaboracionistas bem poderiam ter escolhido melhor os seus donos, as suas conivências e fidelidades.
Aqui respira-se melhor, na perspetiva de um cão vadio.