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segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Fé de Fátima



Cai a noite no vale
Santa Iria ganha uma inesperada áurea à medida que se desvanece a luz na rampa do horizonte, e as luzes traseiras dos autocarros abandonam a nossa memória, para lá do horizonte enquanto o céu reflete os símbolos de fé no esplendor de mármore
Cai a noite fria no Santuário, as vozes diluem-se no espaço imenso e os vultos arrastados tingem-se de contornos laranja
Um calor surpreendente emana da parede do templo, do espaço das promessas cumpridas através do fogo, um burburinho silencioso que deixa as almas a pairar no cheiro a velas queimadas ou na cera que arde, uma linguagem que apela aos diversos credos.
A fé ao anoitecer é um momento quase solene, capaz de converter um agnóstico a um qualquer credo íntimo e pessoal, longe das multidões e da crendice, dos santinhos e dos adereços de cera.

Especialmente longe da capela das aparições!



sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Xira – A lezíria já não mora aqui




As memórias de Vila Franca espreitam das paredes, forram as calçadas do centro da cidade e procuram despertar em cada taberna ou casa de petiscos o Ribatejo das lezírias e dos campinos, dos touros e da festa brava.
Puro engano, traições da memória de uma idosa, que se prende aos detalhes de recordações longínquas e se abstrai dos montes que a não deixaram crescer, da autoestrada que a emparedou de encontro ao rio, esventrada por um caminho-de-ferro que não tinha mais por onde atravessar.
O rio Tejo, a sua verdadeira fronteira que a afasta da lezíria dos espaços amplos do (Ar) Ribatejo.
Apesar das tentativas de canonização terrena da tradição da terra, eternizada nos museus municipais, na praça de touros e na toponímica das ruas, largos e becos, o passado de aqui não sobrevive para além da festa do barrete verde.
Agora são os touros mecânicos de ferro e aço, de rodas e carris que irrompem pelas diversas latitudes da urbe que se habituou a ser entreposto e subúrbio, um corredor com vista para a miragem que transpira o suor dos viajantes.
Sob as árvores frondosas da língua de terra e paz, isola-se o jardim ribeirinho, que procura virar as costas ao burburinho, à descaracterização, aos comboios, e ao tráfego anárquico.
Os velhos nos bancos de jardim e os estudantes nas mesas da esplanada, escolhem os lugares virados para o rio pardacento e para a lama fértil das terras além rio, entre apitos das locomotivas e o miar lânguido dos gatos que se espreguiçam dentro dos botes ociosos, ao Sol e ao sabor das ondas.
Também eles sabem que as fragatas, os varinos e a faluas, são meros museus flutuantes de séculos de pesca no rio e já não saem ao rio nem desafiam nem o sável, nem as marés.
No silêncio do olhar vazio de uns e no burburinho incontido de outros, atravessa-se a ponte entre o passado e o presente, a lezíria e o subúrbio.


sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Coimbra A – O lado B da cidade



Todas as cidades têm o seu lado B.
Está na moda o lado B das cidades: alternativas, irreverentes, inconformadas, normalmente (propositadamente) abandonadas, mescladas de grafitis e edifícios em ruínas.
Menos visitadas e mais autóctones, restos da cidade que todos procuraram esquecer nas últimas décadas
Os diversos pedaços de cidade são como as modas, vão e veem, esquecem-se e idolatram-se e as últimas tendências do pensamento contemporâneo vão para além do tradicional revivalismo da arte: rendem-se ao passado, mas destruído, em estado puro, sem intenções de o reparar ou de o reconstruir à nossa imagem (do presente)
Puro e duro!
Por isso não há cidade que se preze que não tenha um novíssimo hábito de expor as entranhas ao Sol, e fazer delas, santuários vudus da história recente.
Antes que volte a fúria demolidora do império do betão.

Mas não é vulgar que o B seja o A.

Exceto em Coimbra,ao longo de uma obstinada linha férrea que procura aproximar a cidade histórica do eixo Norte Sul!


segunda-feira, 4 de novembro de 2013

As ruínas da sardinha






“Posso-lhe entregar uma mensagem bíblica?”
Pousei-lhe a mão no ombro e abanei a cabeça:
“Não tenho tempo, ando à procura das ruínas da sardinha!”
Atónito, o crente recusou a minha mão, afastou-se assustado de bíblia em riste e assumiu, de forma aliás pouco cristã, que eu tinha doença contagiosa.
E eu lembrei-me de uma frase bíblica de um velho e resistente industrial conserveiro de Matosinhos, em resposta à pergunta de jornalista, intrigado com o facto de manter na família uma indústria por mais de cento e trinta anos:
“ Deus e vontade divina”
Faz pois todo o sentido, esta nova invasão de seres bíblicos nas largas avenidas de Matosinhos Sul, especialmente agora que já não vemos a agitação dos pescadores, as centenas de mulheres operárias vestidas de branco, de faca em riste na mão direita e marmita na mão esquerda, pela rua Brito Capelo fora.
A nossa geração tornou-se mais do género espiritual!
(E as primeiras ruínas que vislumbro servem de sombras aos novos homens do mar em cuecas, pranchas em vez de traineiras, risco por risco que seja na rebentação das ondas e com a terra bem à vista)
E do género desportista!
“ A nossa matéria-prima é muito sensível porque, neste momento está a nadar e depende das licenças de pesca, que são cada vez menos”
Pois, mais pranchas e menos traineiras, falta de peixe mas não de ondas no mar!
Matosinhos Sul é o reflexo das nossas aspirações em aliviar as difíceis condições de vida da indústria “retro”, uma legítima vontade de trocar o trabalho de sol a sol pelas amenidades do desenvolvimento, que prometem tempos livres como recompensa de uma mais alta produtividade.
“Temos o mesmo que tínhamos, só que mais concentrado”
Enquanto dura o contraditório, a frente mar abate os armazéns numa onda de maremoto e erige torres de apartamentos de vistas largas e com assinatura de arquitetos famosos e a obra do autarca estende reluzentes pistas vermelhas para ciclistas, que atraem novos cidadãos residentes com automóveis desportivos que aceleram velozmente sobre uma passadeira indefesa, lojas de artefactos orientais e lofts, e ginásios em armazéns industriais, (o definitivo triunfo do género desportista), bares e uma nova vida noturna, armazéns industriais transformados em habitats do pirata das caraíbas…
(e quarteirões vazios, cercados de paredes com janelas para lado nenhum, que são os novos monumentos da antiguidade industrial)
Quarteirão sim, quarteirão não!
 “Já foram cinquenta e quatro, hoje são apenas quatro”
E nos quarteirões sim, as ruas transversais respiram de árvores frondosas e (provavelmente) tão centenárias quanto as indústrias defuntas, arruinadas, ou porque os herdeiros não se entendem ou os novos empreendedores ainda não digeriram a extensa oferta da crescente densidade populacional da nova cidade virada para o mar.
A arqueologia, o esquecimento e o abandono, são a melhor garantia do equilíbrio ecológico.
Prédios, vidro e cimento e avenidas largas no eixo norte/sul, fachadas em ruínas e árvores frondosas na longitude este/oeste.
“Hoje, a conserva está na moda; não é mais um produto de emergência mas uma iguaria gourmet, enquanto houver peixe português”
Mas são já poucas as mãos femininas que esfrangalham a sardinha porque “é uma matéria-prima muito sensível e, por isso, têm de ser trabalhadas pelas mãos das mulheres”
Mais um quarteirão vazio, de ruínas e grafitis, entre lojas gourmet e de moda exclusiva
E, no fim da alameda, assoma o moderno elétrico amarelo chamado metro que devolve a rua aos peões.
Mas quem tem saudades da agitação dos pescadores e das mulheres pela Brito Capelo fora, de fardas brancas e marmitas?
A vida árdua fica sempre melhor num museu, mas é difícil medir o impacto das memórias no PIB.
Mas para alimentar o contraditório convém referir que as exportações de conservas continuam a subir!


sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A vida debaixo da ponte


O arco de ferro forjado que flanqueia a entrada bem podia dar-nos as boas vindas à fábrica de Lisboa com uma exultante exclamação de que o “Trabalho Liberta”, não fossem as sinistras conotações que nos despertam as memórias do desenfreado século vinte.
Assim, este promissor arco que pendura as ombreiras do portão que nunca se fecha, perde fulgor e significado histórico, com um simplório e descritivo LX Factory. Falta-lhe a alma que merece um local de culto!
Tropeçamos na calçada revestida de irregulares pedras pretas e submergimos neste ambiente underground chic que, afinal de contas, tem uma vida muito própria em horário laboral.
Entre estruturas corroídas pelo tempo e pelo abandono de décadas, espreitamos pelas portas abertas e pelas janelas sem estores e descobrimos um mundo experimental e de cuidado design, gente que espreita para uma população maioritariamente Apple Lover, artes que se confundem com ateliers de bricolagem e de atividades de tempos livres, luzes que são focos e que destacam os detalhes, o branco interior contra o exterior encardido, triste, escuro e industrial que ninguém ousa retocar.
Por instantes julguei que o arco de ferro forjado me tinha teletransportado para as luzes frias de um fim de tarde precoce da Europa do Norte do requinte e das formas funcionais.
Mas não. As travessas esconsas, pejadas de automóveis não (mal) estacionados estorvam as obras de arte urbana que escorrem das paredes em tons de pastel e complicam a osmose da reflexão na arte, a tecnologia e o verde da terceira vaga de Toffler, os grandes espaços e criação nórdica e recordam-me que estou em Alcântara, entre o rio e a encosta, cercado de becos e coberto pela ponte.
Mas debaixo da ponte a fábrica renasce na era pós industrial, incorporando as influências genéticas do bairro popular que a cerca.
“Alegria no trabalho”. Afinal de contas, uma atenção mais cuidada revela-nos que, os inspiradores deste espaço, querem mesmo que ele se torne um local de culto. Não no arco de ferro forjado mas bem mais alto no depósito de água, entre a fábrica e a ponte.
Alegria no Trabalho. Também tem conotações, mas tudo tem um preço e um depósito a verter alegria das alturas dá uma alma especial ao local.
Aventuro-me, “no único edifício que tem quatro andares, e sobe ao segundo andar e a exposição está nos corredores”.
Não era no segundo, era no terceiro. Ou então era no segundo e o prédio só tem três, porque o zero não conta. Complexidades de índole industrial.
Procuro a única escadaria disponível. Não tem rececionista, nem segurança, nem caixas do correio, nem hall de entrada. Apenas alguns cacifos debaixo do segundo lanço de escada. Estamos num novo conceito, sem mordomias nem preconceitos.
Subo, a medo, as escadas sombrias, como se estivesse a trespassar espaço restrito e proibido. Cruzo-me com elevadores industriais de ferro que não funcionam e com artefactos, que eu diria serem máquinas originais de um qualquer passado.
Espero a qualquer momento ser barrado por alguém mas ninguém te liga. Meninas de caneca (de latão) de café na mão, paquetes com grandes embrulhos, rapazes de óculos de aros grossos, juventude de diversas idades.
E tu sobes, vão de escada em vão de escada, e entras nos corredores, enormes corredores do comprimento do edifício de quatro (ou três) andares, e espreitas para dentro das salas, todas de porta aberta, uma porta e uma claraboia, uma empresa, e ouves vozes que falam ao telefone numa língua chamada esperanto.
E ninguém te liga, porque não há segredos nem ameaças que incomodem estes espaços imaculados, sofisticados mas funcionais e ninguém te pergunta porque rondas por ali porque, se o fazes, deves ter alguma razão para isso!
Descontraído, informal, redentor e com vocação universalista
E fui subindo. E fui perdendo a vergonha. E fui espreitando “ um olho no burro e outro no cigano”, as fotografias dos premiados coladas na parede, e a porta ao lado aberta, a mesma Apple, os mesmos rostos concentrados e a arte que emana destes espaços absolutamente funcionais, que contrasta com os temas de desespero e pobreza, na parede do lado de fora.
Apenas um tema em comum: “Dar a volta” é o tema da exposição, tanto dentro de portas como no corredor.
Desço devagar. Começo a habituar-me à era pós industrial: pouca preocupação com os exteriores e com o impacto da primeira imagem, concentração total na essência dos interiores!
E ainda me dizem boa-tarde!
Volto para a calçada tortuosa de pedra gasta e os sons da noite começam a apoderar-se deste lugar numa metamorfose esperada. Os carros vão abandonando o local e as sombras escapam-se dos faróis que incidem nos cartazes rasgados, nos grafitis que contrariam o cinzento e que realçam a luz do fim de tarde.
Na livraria fumegava-se como antigamente. Não, ainda mais que antigamente porque a malta acendia os cigarros quando entrava pela porta dentro. A dona fumegava atrás do balcão. As mortalhas espalhavam-se na mesa de uns estudantes, entre restos de torradas e sebentas escolares. Um velho pegava num livro e sentava-se na mesa do bar, apenas para fumar um cigarro.
Afinal de contas, ainda resistem espaços pré industriais na fábrica de Lisboa.
Saio combalido para a rua, sem ter conseguido furar o nevoeiro e identificar novos talentos literários e sou atraiçoado pela bexiga.
Nova descoberta das muito latinas latrinas fabris, com lavatório de pedra e portas de madeira de fecho debilitado.
Decididamente porco e pré-histórico, como a transição do dia para a noite.
No largo do Calvário – a praça mais intermodal da Lisboa pré- Expo - a fauna é mais terrena e o movimento é fervilhante, pessoas que correm atrás dos autocarros, dos elétricos, miúdos que vem da escolha, no topo da colina e para lá da ponte, velhotas de bengala que descem á rua, operários e trabalhadores do comércio que se atropelam nos passeios demasiado estreitos, num microcosmo de seres que se separam longamente das suas sombras de princípio de noite.
Este contraste dos dois (quatro) mundos – o dia e a noite, o Calvário e a modernista fábrica de Lisboa – é fascinante, para quem o decide olhar, como se fosse a primeira vez.
E paro nas passadeiras, sem as atravessar, encosto-me às paredes sem cair e olho de baixo para cima, e descubro que o tabuleiro da ponte já faz parte do bairro, no ruído do metal incessantemente pisado pelos automóveis que desconhecem de todo a vida cá em baixo, e na moldura das varandas dos prédios altos que competem entre si por um lugar ao nível da ponte.
Tomo um café. Vejo passar nas minhas costas o elétrico amarelo. Imagino a composição. Saio para a rua. Fumo um cigarro e espero. Haverá mais 25? Preparo a camara e concebo um final em grande, como o dos westerns em que o herói se afasta em direção ao horizonte no pôr-do-sol. O cigarro acaba e continuo à espera. Encosto-me ao posto de transformação que faz tic-tac. Será que pode explodir? Finalmente o amarelo aparece na curva e instala-se no largo do Calvário. Fixo demoradamente o cruzamento de cócoras e de camara preparada. Sinto-o aproximar-se nas minhas costas e foco o espaço vazio. O guarda-freio adivinhou que o vou alvejar pelas costas e para antes do cruzamento. Imagino a expressão maliciosa do guarda-freio. “Aguenta-te, que vais sofrer”. E eu sofro, já me doem os joelhos. Finalmente, ouço o tiritar do elétrico em andamento e ele aparece-me no canto da objetiva. O elétrico geme e o posto de transformação faz tic-tac. E eu disparo. Uma vez. Duas vezes, e ele para no cruzamento em pose provocante, uns segundos apenas. E depois parte em direção ao horizonte, atravessando a ponte sobre o Tejo em terra firme. E eu levanto-me. Sopro os restos de pólvora e fico muito contente comigo mesmo.

Alcântara vive debaixo da ponte mas ninguém se parece importar com isso!