Pesquisar neste blogue

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Ter vinte anos não é uma escolha

 



Ter vinte anos é o tema do festival fotografia europea e não é sempre um festival de imagens felizes.
Ter vinte anos não permitirá a ninguém afirmar que esta é a idade mais bela da vida. 
Há uma sensação de medidas que não enquadram em padrões de serenidade e alegria em muitas das histórias que desfilam em frente dos nossos olhos. 
E, no roteiro pelo palácio de mosto, ficamos entregues ao silêncio do público ausente e das personagens que saem dos ecrãs, das telas e das páginas dos livros, sem um som sequer, porque a fotografia é um filme mudo em que os sons se imaginam a partir das combinações de cores e pela intensidade dos contrastes. 
Nas salas do palácio mosto, ainda bem que há solidão na sala e solenidade em cada imagem partilhada, em cada história que se constrói a partir de uma ideia ou de experiências vividas. 
Porque ter vinte anos tem de ser uma experiência intensa, intangível como o título da primeira história, que mostra jovens cuidadores que dedicam parte do seu tempo a tomar conta dos familiares mais velhos, contraditória como a revolta que emana da primavera silenciosa, uma história de confrontação em nome do ativismo militante pelo clima, mesmo que a sua raiva seja  demasiado zangada. 
Em adolescência florescente, escolheram-se só livros que exploram a adolescência como o momento de transformação, física, emocional e social, em que os fotógrafos capturam a rebelião, a fragilidade a descoberta e a pertença em culturas e contextos tão diversos. 
Sempre num silêncio que exprime o presente e o futuro, sem que se possa escolher qual é a forma de adolescência mais inquieta 
E se a vida tivesse sido diferente? Pergunta um dos autores
Não é uma dúvida para quem tem 20 anos, diríamos nós, mas Matylda em Octopus Day pergunta-se já, então e se eu tivesse feito escolhas diferentes, tivesse vivido num local diferente ou mesmo que fosse de um género diferente e, em quarenta e oito horas apenas, a artista pede emprestada a vida  e  a identidade dos outros, vestindo a sua pela e vivendo as suas personalidades 
Independentemente de sermos capazes de  reconhecer nas imagens, que a experiência distorce a perspetiva como nós nos vemos no papel dos outros, reconhecemos nas imagens de Maryna que foi aos vinte que nós devemos ter feito quase todas as escolhas que definiram o que fomos décadas depois.
E se nós tivéssemos feito escolhas diferentes?
Ter vinte anos não é uma escolha!




quinta-feira, 29 de maio de 2025

Unire under 35

 


As memórias são o espelho de uma alma velha, de quem viveu a circularidade completa e de quem se refugia no longínquo passado por não suportar mais o peso do presente ou, simplesmente, já por ausência. 
Mas não, as novas tendências estéticas e de narrativa da nova arte são remotas e profundas, remetem nos para as tradições da aldeia, e as práticas de manufatura comunitária, para os rituais de passagem, laços de sangue e memórias de família ausente, um pai morto, fragmentado pelo terror das memórias policiais ou de um pai ausente que um filho pretende reconstruir o que poderiam ter sido as suas memórias, encenando o que teriam sido os passos do pai, os seus locais e as suas rotinas, na pele dele e nas suas fardas até conseguir abraça lo de novo num final redentor e feliz.
A coerência estética e  narrativa dos jovens under 35 é imaculada e o resultado é tão fluido e compreensível que apenas possível com um complexo pensamento abstrato.
Mas não deixa de ser perturbador que estes jovens sejam demasiado novos para ter tantas memórias.




Avere Vent’Anni

 




Hoje a trenitalia está em greve e a mobilidade está inquieta.
Não há previsões, ninguém está para explicar, nós seguimos os passos dos autóctones, do binário quatro, para o binário um e finalmente o oito, somos um rebanho de seres obedientes que, hoje, se conformam porque sem mobilidade, esmorece a nossa irreverência e a vontade de partilhar posts de gente feliz. 
Os rostos estão fechados, é possível que todos saibam que a democracia dá trabalho mas na estação central de Bologna não prolifera o espírito militante, antes uma atmosfera  de conformismo suicida que antecede as grandes depressões. 
No binário um, enquanto todos olham para o quadro eletrónico que vomita cancelados, a todos os minutos, como se os comboios, de repente, se desvanecessem, entrassem na plataforma 7b e fossem transportados para outra dimensão 
Enquanto, do alto da sua locomotiva elétrica, orgulhosamente debruçado sobre a janela que vigia a multidão no binário, o maquinista fuma o cigarro da contestação social, e certamente que o número um é importante, uma huelga segundo o único ser humano que, fechado numa barraquinha que devia ser de informações mas não era, que sabia pouco do que se passava fora do seu cubículo e também tinha uma versão muito lata da ibéria. O costume. 
Hoje, na era da automação total, sem bilheteiras nem revisores, com os únicos humanos que restam em huelga, não há comboios e a automação não resolve os imprevistos. 
Com alguma (pouca) vontade dos autóctones - eles até são ruidosos e felizes entre eles o pior mesmo é com os outros, seja no trabalho seja no lazer - mantivemo-nos à tona dos carris, à espera de um milagre, que até aconteceu, muito lento e atrasado
Quando não há imprevistos a eletrônica até funciona. 
Nos outros dias ficamos com saudade do estado social. 
Mas automação significa isenção de contestação e quando a maquinaria avaria e as bilheteiras precisam de ser ressuscitadas, o estado social desperta nervoso. 
Entre Bolonha e Reggio Emilia, enquanto o fura greves leva o rebanho à província, sem forças sequer de se revoltar - afinal de contas os trabalhadores são eles – lembro-me que a Itália não  mudou assim tanto desde os meus 20 anos, altura em que descobria os comboios de Itália, é verdade que com menos diversidade e menos interatividade do que hoje, ,mas a mesma balbúrdia Latina sem governo. 
Porque hoje em Reggio Emilia mora o festival fotografia europea, e o tema este ano é ter vinte anos, ora pois. 
E o regresso ao passado começou logo na realidade.




terça-feira, 27 de maio de 2025

Santo Mungo

 


Bruce chegou cedo a St Georges Square, o novo centro do iluminismo escocês, de forte sotaque da nova britânia porque, em Glasgow, o iluminismo não tem a ver com o significado das ideias, mas com o poder do dinheiro. 
E o Ato da União de 1707 abriu o mundo das colónias britânicas, aos comerciantes de Glasgow que, depressa, tomaram conta da importação e distribuição europeia do tabaco americano. 
Uma enorme riqueza acumulada debaixo do símbolo da caravela sobre a esfera armilar, um mundo que lhes pertencia e que ajudou a construir a nova centralidade de Glasgow. 
Sempre que se aproximava do porto, um barco cheio de tabaco, havia um vigia, na torre do edifício dos merchants que corria a avisar a bolsa de mercadorias, porque na cidade dos comerciantes (e dos artífices) havia o hábito de anunciar no mercat cross, todas as notícias que poderiam interessar ao povo. 
Numa época em que execuções eram também um apreciado entretém do povo. 
Bruce, o historiador informal, o entertainer com um sentido cronológico apreciável, nunca procurou esconder que a verdadeira natureza escocesa é rufia, sardenta, olhados pelos distintos ingleses como um bando de revolucionários que era melhor não conviver com eles, para lá do norte de Inglaterra. 
Até que William Scott reinventou a Escócia através da literatura, e descreveu nos seus livros a verdadeira essência da sua história e da sua personalidade aos snobs do Sul, um herói de Edimburgo que comoveu os ingleses, mas que Glasgow colocou no topo da praça de George, o rei (inglês, claro) que na praça com o seu nome nunca teve direito a estátua, por mau comportamento nas relações internacionais. 
Os indómitos habitantes de Glasgow não perdoaram a George ser uma desgraça enquanto rei guerreiro e, ainda por cima, inglês. 
A velhinha inglesa que nos seguia era uma fã de Walter Scott e sentia um quase orgulho da irreverência de um povo que, em 1986, colocou um pino de trânsito na cabeça da estátua do inglês Wellington, para variar um inglês bom guerreiro, mas inglês, apesar de tudo. 
Passados dez mil libras de custos camarários para retirar o pino que sempre voltava à cabeça do almirante, o poder local aceitou a ideia de que o inglês passava a ter um capacete, para a eternidade. 
Belicosos escoceses 
Só o santo Mungo parece ser consensual porque fundou Glasgow muito antes de existir um país chamado Escócia, um humilde cristão oriundo de um reino governado pelos vikings, que construiu a primeira catedral da cidade e pregou a fé durante toda a vida, chamando os crentes para a igreja com um sino oferecido pelo Papa, um homem a quem são atribuídos quatro milagres, uma vantagem mínima, mas suficiente, para ser santo. 
Mas o artista de rua que o pintou na parede que vigiava a porta principal da catedral, teve uma visão contemporânea do santo Mungo, um homem bom que se despojava dos rituais e da riqueza dos homens para interiorizar todo o sofrimento do mundo, encarnado num velho sem abrigo. 
Perante a indiferença dos transeuntes, o artista abusou da sorte é escreveu na parede do parque de estacionamento "não estacionar ou amaldiçoaremos o teu carro", entre lendas, histórias de fadas e de monstros, a ameaça de maldição espelha a verdadeira alma do highlander. 
Pelo menos, segundo a insuspeita opinião da velhinha inglesa que nos seguia. 
Mais uma alma capturada pela visão romântica de Walter Scott!



quinta-feira, 22 de maio de 2025

Os gigantes das terras altas

 


A Escócia era povoada por uma raça de gigantes que, como é óbvio, gigantes pacíficos que tinham ovelhas gigantes
Mas eles sabiam que o seu tempo estava a chegar ao fim. Então eles decidiram que iam dormir 10,000 anos e pediram à humanidade que tomasse conta das ovelhas, enquanto eles dormiam
Mas como eles não confiavam totalmente na natureza humana, de forma sensata, a cada 1,000 anos um dos nossos gigantes irá abrir os olhos e, se verificar que as suas ovelhas não estão bem e a prosperar, então acordarmos do nosso sono e uma terrível vingança irá desabar sobre vocês.
Agora, essas montanhas que vos cercam são todas gigantes adormecidos e, para prevenir a ira dos gigantes, o povo dos vales pintou todas as suas casas de branco.
Os gigantes olham para os vales e vêm as manchas brancas no Vale e julgam, quem sabe erradamente, que as suas ovelhas estão bem e prósperas e, assim, poupam a humanidade de uma terrível vingança. "
A Norte de Stirling moram as Terras Altas, as montanhas que não são suficientemente altas para reclamar a alma dos vivos, mas o suficiente para manter as lendas e os feitiços em baixa temperatura.
Mas os povos das Terras Altas não conseguem dissociar as suas montanhas dos seus lagos, por assim dizer, e a altura das montanhas acumula com a profundidade dos lagos, com os milhões de metros cúbicos de gelo que foi necessária derreter, para encher as milhares de superfícies de água fresca, sem entornar, em sintonia quase perfeita com o mar do norte, com o qual partilha os excessos de água e as lendas da terra.
A terra deles até tem boa aparência, mas, o que a torna arrebatadora para os visitantes, é a carga mitológica que cada pixel que a paisagem transporta, uma neblina que fixa os vales nas nuvens baixas que escondem os cumes dos montes e lhes tolhem a altura.
(Claro que o Highlander te dirá que as montanhas da Escócia chegam ao céu, as nuvens é que não deixam ver)
E eles afirmarão também que as montanhas são gigantes adormecidos e, portanto são seres vivos e todas as histórias que possam contar serão sempre muito mais do que uma mera lenda, até porque os gigantes dormem e não julgam relevante interromper o sono para corrigir o entusiamo dos humanos, desde que eles tratem das suas ovelhas de forma decente.
A Noroeste de Stirling vive uma estirpe de descendentes de vikings do mar, dos homens grandes da terra, dos brigões que se tornaram senhores feudais, empunhando a espada e declarando a guerra e dos outros, que lhe rendiam vassalagem.
E porque esta estirpe de homens bravos e pouco dados ao convívio pacífico, foram extintos em nome dos compromissos impostos pela civilização – quase sempre, aliás, com uma violência extrema – as suas almas perdidas continuam a vaguear entre as montanhas, ao ritmo da instabilidade do clima, assombrando a civilização para garantir a subsistência dos seus filhos vivos através dos poderes especiais que juram emanar deste local.
(Há dias que adormecem sobre os montes e escondem-se nas nuvens baixas, há outros em que se afundam nos lagos e espreitam à superfície devidamente encarnados no mito dos monstros do lago)
Hoje, os gigantes estavam particularmente tranquilos e não acordaram, apesar do imenso ruído da humanidade!
E a humanidade agradeceu.




domingo, 18 de maio de 2025

William de Stirling

 


Combateu os ingleses e venceu-os na batalha de Stirling, numa altura em que os diversos pretendentes ao trono disputavam um vazio de descendência na monarquia escocesa. 
 Braveheart foi imortalizado no cinema e Mel Gibson representa o herói improvável, o filho de um cavaleiro que derrota os ingleses em defesa da pátria mas que perde uma batalha posterior no ano seguinte e é executado pelos ingleses em 1305, demonstrando que uma liderança heróica sem estatuto social, não era suficiente para defender uma irreverência nacionalista.
Há uma espécie de vertigem revolucionária que emerge da alma escocesa , de tempos a tempos, da profundidade glaciar dos lagos das terras altas, não é apenas mais uma visão do monstro de Loch Ness, que é o mesmo Nessie, mas o dos dias escuros e chuvosos. 
No castelo de Stirling viveram-se provavelmente algumas das batalhas e dos cercos mais épicos da sua história intermitente, e foi testemunha de grandes dramas da história e de cenas de violência em que o vilão nem sempre era o óbvio opositor do monarca vigente. 
Dr Jekil e Mr Hyde, as contradições de um povo que pode demonstrar grande paixão especialmente quando se fala de religião ou realeza
A verdadeira casa de um povo de  personalidade bipolar, exibe com orgulho nas paredes do palácio construído pelos Stuart’ dentro do castelo, um unicórnio pintado no gigante tapete do salão do rei, o símbolo nacional que é tão real como os diversos monstros que habitam o fundo dos seus magníficos lagos. 
E eles sabem que o unicórnio é o único animal capaz de derrotar o altivo leão inglês. 
Pelo menos, quando estes se encontram do lado de fora da muralha, o que também nunca foi óbvio nas dezasseis vezes que este castelo foi situado.




domingo, 11 de maio de 2025

Os mágicos do iluminismo

 


A milha real é a história da Escócia esculpida na pedra vulcânica, tão solene e séria que, em momento algum, nos permite duvidar que as bruxas, os mágicos e os feiticeiros também são personagens da história das terras altas, uma excentricidade que nenhum outro pedaço de mundo pode reivindicar. 
Também não deixa de ser apenas uma rua que se acomoda no comprido planalto que liga o castelo medieval ao futurista parlamento da nação, 
Mas não é apenas uma rua, é um elogio de basalto e orgulho aos símbolos do iluminismo escocês, o século de todas as excentricidades e dos grandes pensadores como Hume e Smith, enquanto a nova monarquia constitucional destruía os Jacobitas, os últimos vestígios das famílias feudais das terras altas, os heróis romanceados de herança dos povos da Escócia. Afinal de contas, uma raça de dinossauros que precisavam de ser extintos, em prol do triunfo das reformas.
Mas sempre que as corujas (ou seriam os mochos?) se atrevem a voar, descendo a Victoria Street, sobre as suas fachadas berrantes e nas costas dos transeuntes que acreditam que a magia é um estado de crença maior e que, basta respirar o ar de quem imaginou esta terra despojada de tempo, para esquecermos os episódios sangrentos da história da Escócia   e atravessarmos um portal colorido de recordações felizes a bordo do expresso de Hogwarts.
As encostas da milha real são assim, em contraponto da solenidade hiper-realista do planalto, uma terra despojada do tempo, um presente de todas as escolas de magia que se alojam na nossa mente e, nem mesmo o cemitério de Greyfriar, que deveria ser solene por definição, se consegue libertar dos apelidos dos mortais que a autora retirou da linha do tempo e as letras de relevo desenhadas nas lápides que já não se realçam do verde da relva fresca, (certamente por culpa do encardido do tempo) esfumam-se a cada referência involuntária que fazemos ao olho-tonto moody ou à professora das transfigurações e jamais por aquele que não ser nomeado.
Nas encostas da milha real os casais fazem juras de amor eterno e trocam anéis de noivado em troca de memórias de uma magia comum, e das promessas de feitiços que a vida comum lhes trará, indiferentes aos milhares de artefactos expostas nas montras, que todos garantiam serem os genuínos e certificados pela saga, porque no mundo do fantástico não há interpretações definitivas sobre a veracidade dos factos.
Entre o mocho de olhos esbugalhados que voava sobre o Castelo (afinal era mesmo um mocho!), os belicosos Jacobinos desterrados para os castelos em ruinas das terras altas, e a posse petrificada de Adam Smith a guardar as memórias da milha dourada, escolhi a mão invisível e as vantagens do comércio internacional, uma verdade, afinal, que já tem três séculos e moldou a maior parte da nossa vida e das nossas escolhas.
Podia ter escolhido o Valdemor ou o Highlander, mas eu sempre preferi os finais felizes.





terça-feira, 11 de março de 2025

Flashback #7 - O clube dos atletas vivos

 


Depois do anoitecer, nos imensos parques de Recoleta e Palermo, as estátuas dos heróis iluminam-se e os heróis da maratona acendem-se com a iluminação pública e correm para a glória e, neste clube do suor e do sprint, a única referência que une a mescla de atletas incógnitos é o fato de licra que liga as gerações, os sexos e uma alucinante vontade de correr.
Sempre ao anoitecer, pelos parques iluminados de Palermo e Recoleta, com a guarda de honra de Bartolomé Mitre, o primeiro presidente de uma Argentina unificada quando os escritores ainda se atreviam a ser políticos, Aristóbulo de Valle, advogado, colecionador de arte e político, Raoul Wallemberg e Mahatma Ghandi, os heróis da paz no mundo, Marcelo Turcuato de Alvear, presidente da Argentina numa altura em que os políticos já eram advogados, Maria Duarte Eva Peron, a diva dos descamisados, todos ao longo da mesma pista 
O culto das estátuas é o espelho passado do culto do corpo, portanto tudo encaixa
E no centro da Praça República oriental do Uruguai, bem junto a José Gervásio Artigas, ladeando a embaixada do Chile, de frente para parque Calistenia, a embaixada do Peru e ao monumento ao canto argentino, desvenda-se um oásis de meditação e silêncio recortado nos movimentos lentos e sincopados da uma aula de Tai-Chi, insensíveis ao rodopio da heterogenia dos corredores de fundo, as silenciosas divas espalham karma pela irmandade sul americana

domingo, 2 de março de 2025

Flashback #6 - A missa das sete e meia

 


Ao fim da tarde, invadida por uma noite de Outono precoce, desmontam-se as bancas da feira do bairro de Belgrano, porque afinal hoje é Domingo e a cidade despeja nas ruas tudo o que tem para vender.
A igreja da praça enche-se para a missa das sete e os santos carregam a fé nas escadarias exteriores, e os crentes rezam, indiferentes ao mercantilismo dos homens.
Às sete e meia nas Barrancas de Belgrano, os locais mudam se sapatos e saltam para o coreto entregando-se às milongas da nostalgia portenha, um ritual de fim de tarde dançante onde se troca de par para completar a experiência, profissionais e aprendizes numa mesma pista, sem excessos nem movimentos demasiado ousados porque, afinal de contas, respira-se uma alma de alta burguesia nesta praça de arvores frondosas e apartamentos de largas varandas, porteiros na entrada e muitos cães que passeiam os donos depois do jantar.
Do outro lado da praça e da linha de comboio, a cidade muda outra vez de país, de cultura e de povo (literalmente do outro lado da rua) e nasce a Chinatown, um bairro chinês muito sério – como seria de esperar de um povo tão sério – tão inacreditável quanto real, o arco dos dragões que incendiam a entrada da rua, os cheiros e os bazares, as multidões asiáticas que circulam pelas ruas sem automóveis, enquanto no jardim em frente a burguesia portenha dança o tango no coreto, como se não houvesse Argentina para lá da linha de comboio.
Na casa Saenz, respira-se o charme burguês da cozinha de autor, frango do campo ao forno no prato, um Malbec no copo e a lista dos fornecedores de origem certificada, afixada no corredor junto das casas de banho.
Às dez da noite no coreto de Belgrano já não havia música e apenas um casal de fantasmas treinava novos passos, às escuras
Às dez da noite já não havia dançarinos no Coreto, porque era Domingo e em Buenos Aires a alta burguesia também trabalha. 



domingo, 2 de fevereiro de 2025

Flashback #5 - Domingo

 


O Museu Moderno de San Telmo é uma viagem até “ao limite” um teste à existência de vida no bairro, para além da feira.
E, na modernidade minimalista do museu, que espreita, pelas grades das suas janelas, para a realidade mundana de uma manhã de feira no bairro, o interior refugia-se nas profundidades da mente, na expressão artística das vulnerabilidades do mundo exterior. 
Também na modernidade artística dos museus da cidade vive um predomínio dos criadores argentinos do século vinte e um que, tal como nos conturbados anos do século vinte latino americano, os artistas plásticos procuram, na tela e na pedra, contrariar a herança para além do passado, da nostalgia e de alguma sobranceria intelectual das elites letradas do século passado.
Para o século vinte e um dos artistas plásticos, o realismo desprendeu-se do mágico para se instalar em alternância no hiperbólico, no surrealista e na crueza teatral e performativa das suas vivências traumáticas.
Onde pululam os nossos abismos? – questiona-se o artista 
Ao longo da Calle Defensa, não se questiona a sustentabilidade dos recursos naturais entre bancas de rua, souvenirs, artesanato e roupa vintage, negoceia-se os preços com um fervor que compete com ritmo de desvalorização da moeda, porque na Argentina atual, tempo representa literalmente dinheiro.
Nem para todos.
A Mafalda, sentada no seu banco de jardim, tão sorridente e estranhamente quieta, não reclama com os avanços da populaça, que se pendura nela, para a fotografia ou para a posteridade e, se ela fosse um boneco animado não deixaria de ter opinião sobre este tempo.
Para o Che Guevara, restaurado e de cores garridas, agora na versão superstar na parede da Calle Lorenzo, emparedado atrás de um camião de mudanças, o empedrado da rua é apenas uma ténue recordação dos dias de solidão, que lhe gastava as cores mas que lhe mantinha a áurea de combatente, o único mural do planeta em que a reputação de Che coabitava em perfeita harmonia com um casal dançando Tango no empedrado decadente da cidade.
“Um duende não é um adorno, é como um amigo, portanto tens de dar um nome, falar com ele e dar-lhe de comer. É o teu primeiro?”
Sem ter a certeza de ter ultrapassado uma barreira linguística qualquer, vimo-nos rodeados de seres sem linguagem que trepavam os fios ao ritmo de uma concertina e uma mãe sorridente que emitia cartões de identidade com toda a seriedade.
Afinal, e apesar da sua aparente superficialidade mundana, o bairro ainda mantém vestígios de misticismo, poesia e concertina
E na Plaza de Mayo, nos confortes do bairro, um casal desafia o preconceito. Assim se reconstrói o Tango como um instrumento de inclusão.



domingo, 26 de janeiro de 2025

Flashback #4 - O regresso à troca direta

 

 

O parque centenário, onde a cidade acolhe os descamisados, onde as bancas trocam tudo o que o peso já não pode comprar e, no Sol obliquo da tarde portenha, não sobram os filtros nem a áurea aristocrática dos bairros privilegiados pela herança ou pelos costumes.
Troca-se tudo “Monigotes de miga de pan, caballitos de lata” e não há expetativas altas nem artistas de rua porque na feira semanal do parque centenário remendam-se vidas insuficientes / curtas e subverte-se a inflação com os princípios da troca direta.
Panelas por aros de óculos, ferramentas por brinquedos, roupa por calçado, trocam-se ciclos de vida em que, nada do que já não serve, fica esquecido nos sótãos das recordações e das aranhas, é uma economia de reciclagem total em que não se espera que os herdeiros limpem arrecadações, uma revolução de quem já não aspira à posse e se contenta com o usufruto temporário.
Para alguns, o Parque Centenário ao Sábado à tarde é a Meca portenha do pós capitalismo, sem inflação, moeda fraca ou incompetência de quem governa.
No parque Centenário sentem-se os subúrbios a palpitar, as gentes acotovelam-se no mercado sem lei, nos relvados pejados, nos lagos de repuxos e não há espaço livre para atletas que se espraiam nos verdes de Recoleta e Palermo. Aqui só há espaço para as famílias se espraiarem ao Sol, exibirem com orgulho a sua prole e as camisetas do campeão mundial abraçarem o lago que com todos partilham e os putos jogarem à bola, seja nos recintos oficiais seja nos remendos de relva que se esgueiram entre o Sol e as sombras.
Os pobres da Argentina, também eles se recusam a ceder à depressão 



quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Flashback #3 - Secando as roupas da velha Europa

 


Na avenida de Mayo, uma multidão assiste à festa da Calábria, com um palco cheio de crianças vestidas de trajes regionais que dançavam sons longínquos de distância, mas próximos de cultura, e a juventude no palco, mais pelo movimento e pela cor, do que através da música, procurava manter acesa a chama da nostalgia e o velhote sorria, como se nos quisesse explicar a razão da sua alegria, “A última geração de migrantes está a morrer. A nostalgia poderá então deixar de fazer parte da memória coletiva do povo” e hoje, como no passado, o sol da Argentina estava secando as roupas da velha Europa.
Uns quarteirões a ocidente, ainda na Avenida de Mayo, para lá da 9 de Julho, a avenida mais larga do mundo, tão larga que torna, por vezes, difícil a perceção da sua própria origem, a independência do país, instalou-se o Palácio Barolo, o primeiro arranha céus da américa latina, um sonho de um maçon italiano que acreditava que Buenos Aires era o último refúgio da cultura Ocidental, diante a barbárie da guerra na Europa que, segundo ele, conduziria ao extermínio da civilização humanista.
E por isso construiu uma homenagem de betão e vidro à Divina Comédia, investiu uma fortuna para a construir em tempo recorde, porque acreditava que a Europa iria soçobrar em breve, guardou três andares para ele viver, mas morreu antes do edifício estar pronto e antes da Europa sucumbir às trevas.
Na rua Hipolito Yrigoyen, não tão longe assim da Avenida de Mayo, escondido nas traseiras do Congresso da Nação Argentina vive o teatro Empire, uma alternativa teatral que, na segunda-feira à noite apresenta ao público sentado em mesas à volta de um palco que não se vê, um espetáculo de cabaret, que estende os braços à Europa, sobretudo no infortúnio e nos períodos de desorientação do velho continente.
Demencial (ligeiramente) segundo a apresentação, tendo como pano de fundo a ascensão do nazismo na Europa e a década infame na Argentina
Político, interativo com Brecht
Psicológico, a cobardia frente à ditadura do ódio, da opressão e do medo
Segundo o protagonista, mais vale um cobarde vivo que um herói morto, recordando os lugares tenentes, tão cruéis para os subordinados como submissos para os seus líderes.
Mas o protagonista vilão não é, afinal, um vilão é apenas um produto das circunstâncias e, no final, enfrenta o lugar tenente e torna-se num herói vivo.
Neste espaço sem geografia precisa, desfilam as músicas de Gardel e os poemas de Brecht como se o Oceano fosse apenas uma ponte entre os desenganos da alma argentina e as desgraças da velha Europa “Mais tarde, o sol estava secando as roupas da velha Europa” 
No final da peça o bem e a liberdade triunfa sobre o terror, o lugar tenente é morto no cabaret por uma horda de oprimidos e a moral explicita dos autores pretende simbolizar a esperança de que, no fim, e apesar dos momentos de insana loucura que assolam a Humanidade, de tempos a tempos, num qualquer final (ou apenas mais um intervalo) o bem sempre triunfa.
A peça só tem um Ato e portanto, neste palco inclusivo, a eternidade é apenas uma metáfora.
Não foi ainda esta noite que a última geração de imigrantes morreu.



terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Flashback #2 - La ville s'agite

 


KIDZ é um trabalho coletivo que concede carta branca a cinquenta jovens artistas de todo o mundo, sem tema, forma ou enquadramento trata-se, afinal de contas, de uma ordem para criar.
( E, no mesmo espírito e uma décadas mais cedo, os velhos abriam a loja de livros de banda desenhada e questionavam-se se a banda desenhada não seria a forma mais precoce de arte contemporânea)
Na muito improvável Rua dos Francos Burgueses, no Marais que se entregou há muito às multidões amantes do consumo, e que empurrou os mais boémios para os subúrbios, entregaram aos miúdos um palacete resplandecente por fora e totalmente desventrado por dentro, o ambiente ideal para promover a destruição criativa, e eles redecoraram-no contra a tradição do bairro mas como era de borla, os sacos de papel de marcas de várias cores, cuidadosamente bordadas em tons dourados, acotovelavam-se debaixo de botas, calças e outros vestuários que homenageavam o arco-íris, pendurados em cordas de roupa , sim porque a cor parece ser a maior afirmação da juventude rebelde, pouco condescendente para com as formas ou, pelo menos, indiferentes.
Mas, e justiça lhe seja feita, Paris é uma cidade em agitação constante que se empolga com a revolução, com a contradição, com a polémica e, mais do que mais, com o protesto, contra as limitações da sua liberdade de escolha quando lhe impõem, a ela, gerente de uma ourivesaria na Place des Vosges, a obrigação de usar máscara, só porque é inverno e ninguém tem a certeza se o COVID já se tornou endemia ou contra a fome em África, o aumento do preço dos combustíveis, o aumento do custo vida, ou apenas a favor de poder protestar, sem ter de apresentar um motivo.
Na Praça da República, num fim de tarde antes de ser noite no Marais, mas depois de o Sol se pôr sobre o Canal de St. Martin, onde batelões que se empenhavam, tal amantes do Titanic, em abraçar as margens do estreito canal, e onde as margens recolhiam alguns dos boémios expulsos do centro, os criadores alternativos às tendências, a arte de rua com preocupações humanitárias, não só a liberdade para a Ucrânia, mas as 619 pessoas que desapareceram durante o governo fascista da atual primeira-ministra do Bangladesh, mas depois do Sol se pôr na praça, havia espaços de manifestação que exigiam uma nova independência para a Argélia, uma assembleia constituinte para um país latino americano, cuja bandeira desconhecia e é mesmo essa agitação cosmopolita que nos mantém vivos e que mantém viva a cidade.
A cidade estava, de facto, muito agitada para um Domingo de Sol, que outros europeus aproveitariam trazer as famílias ao parque ou comprar as últimas prendas de natal
Mas em Paris, não há desses estrangeiros, e até há, como os miúdos alemães que estudavam no restaurante do bairro onde uma sopa de cebola pode aquecer, até duas almas pelo menos, mas ou agitam ou ficam a ver e em Paris ninguém gosta de ficar a ver.
E o dia começou tranquilo, uma cidade que acorda tarde, nos bairros a norte onde o traçado histórico da cidade já foi substituído por blocos de habitação, todos muito parecidos e quase todos iguais, seis artistas ocupavam um pequeno pavilhão junto ao canal que teria sido certamente a casa dos guardas das comportas, onde, debaixo da cobertura de uma feira de natal, vendiam arte genuína, reconhecível e com elevado sentido estético, aquele que valoriza as formas com alguma soberba contra as cores, a preços de quem ainda não são jovens artistas emergentes.
Mas depois, mais a Sul o canal agita-se com o meio-dia e com a juventude inquieta que passeia os seus cães com a mesma veemência com que licita obras de arte ambíguas e com significados difíceis e, naquele dia, não fui mais capaz de não correr atrás da agitação da urbe, primeiro em processo de comoção pelo reencontro e a reconciliação entre Bresson e Parr, e finalmente, no MEP descobrindo Boris Mikhailov, o mais experimentalista, umas vezes documental, outras conceptual, pintura ou performance, fotógrafo que havia alguma vez presenciado, soviético de nascimento, ucraniano de nacionalidade, fotógrafo para o partido nas horas de trabalho, e fotógrafo erótico e de nus em casa, às escondidas do partido, do patrão e do país, afinal nesses tempos, sempre os mesmos.
Atento aos pontos cardinais da cidade que adora a revolução, sorrimos com a contradição que não deixa de representar, mais a Ocidente, a exposição de Arte Povera no sofisticado Jeau de Paumme, um pavilhão de campo dos muito monárquicos jardins das Tulherias.
Afinal de contas a Arte Povera é baseada nos elementos, construída com materiais comuns, uma espécie de arte reciclada uma forma livre de expressão, comprometida sendo a resposta com as contingências os eventos e o presente.
a resposta europeia à pop art americana.
O que deixa os franceses cheios de orgulho. apesar dos artistas serem predominante italianos.
E, enquanto aquecíamos a alma da noite fria na gastronomia de Borgonha e nos vinhos de Bordéus, na burguesa ilha de Saint Louis, não deixámos de pensar no que seria da cidade se não fosse o seu fascínio pela contradição, polémica e protesto.




domingo, 19 de janeiro de 2025

Flashback #1 - Flanneur

 


A crise energética chegou a França que não depende do gás russo, mas tem, aparentemente, dificuldades em equilibrar as cargas na rede e a cidade está fria e escura, apesar de estarmos no Natal. 
A manhã cedo da cidade das passagens é um território idoso, onde o bom gosto se refugia do décimo bairro, das saídas de metro encardidas, das ruas molhadas que se lavam das toneladas de lixo que a urbe lhe entrega todas as noites, porque há vida própria nos bairros centrais de Paris, afirmação confirmada pelas lojas de quinquilharias com utilidades penduradas nas portas, os restaurantes étnicos que engolem os cafés de Paris e a juventude, que domina a calçada, na exuberância das cores, dos movimentos, das roupas, da musica que juramos que ouvem por debaixo dos auscultadores, dos penteados e das tatuagens.
Quando entramos nestes túneis intemporais do bom gosto, os sons tornam-se difusos e parece que a cidade ficou lá fora e aqui dentro guardam-se as memórias da Pátria, as heranças culturais da grande França ultramarina, os refúgios de moda vintage e nós, os idosos do regime, flutuamos sobre as nossas memórias e sobre a História com a qual ainda estamos familiarizados, os velhos cá dentro, os novos lá fora e, quando um túnel termina,  interrompe-se o silêncio e entra uma súbita corrente de  ar  de trânsito, de multidões agitadas e, depois, novamente o silêncio redentor.
 As passagens de Paris são o purgatório entre a fraternidade da república, a norte, e as indulgências da monarquia ao longo das margens do rio e, mesmo quando a cidade está fria e escura e as passagens são também corredores de vento, as lojas das galerias congelam o tempo e preservam as memórias da cidade que já não existe, um livro de lombada dura e letras douradas, o cheiro a café quente servido sob candelabros de cristal e galerias de homens famosos emoldurados em florestas de madeiras nobres.
Ao fim de uma manhã inteira dentro das passagens de Paris, assomamos com receio à superfície, sentimo-nos encadeados pela agressividade do Sol de Inverno, como se o holocausto se abeirasse de nós.
Nós, e os novos velhos nostálgicos da civilização ocidental a quem até não nos desagradaria que a cidade pudesse ter ficado no passado e que a crise do gás não tivesse chegado este Inverno.