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sábado, 13 de dezembro de 2025

Dios nunca muere

 


O mercado 20 de novembro está ligado à data de início da revolução mexicana de 1910, apenas por convicção de um grupo de cidadãos que decidiu eliminar o nome original de mercado industria para castigar o petulante ditador Porfírio Dias e restaurar a modernidade neste espaço de cultura e gastronomia Oaxaquena, construído nos finais do século dezanove para albergar os comerciantes da praça de armas, as tradições de uma região inteira e as histórias das vidas de cada dos seus comerciantes.
Não há mercados iguais, nem diferentes,  mas em Oaxaca os rostos deles são mais sorridentes,  como se os locatários quisessem assumir a sua herança de ponte cultural entre os locais e os visitantes, dando um cunho quase pessoal a cada um dos corredores,  o corredor do fumo onde os transeuntes são engolidos por dezenas de grelhadores de mistas de carne a grelhar a céu fechado ( uma espécie de céu aberto, mas dentro de um recinto fechado) ou o corredor do chocolate onde podes comer ou beber chocolate solo ou acompanhado e nesse corredor não faltam cheiros, mas delicados, profundos e muito seletivos, o corredor do pão, o corredor do queijo e, claro, o corredor do mescal, com sal e limão ou apenas forte, para melhor apreciar o sabor.
Um mercado que transborda os espaços confinados e se estende, quarteirão a quarteirão, cidade acima, primeiro especiarias e ingredientes, depois têxteis e cerâmicas e, quando chegamos às redondezas da calle Macedónio Alcala, o artesanato e arte pura nas galerias da cidade.
Mas no México não há direito ao presente sem uma herança histórica substancial - ou, em ausência absoluta de, pelo menos, uma linha no compêndio de história nacional - pelo menos três milagres devidamente comprovados, três atos heroicos pós-independência ou uma personalidade consensual nascida entre portas.
E em Oaxaca nasceu e lutou Benito Juárez contra os franceses e em Oaxaca situa-se uma das mais antigas cidades do período pré-hispânico, muito antes dos períodos áureos das civilizações maia e azteca, fundada ao que consta em quinhentos anos antes da nova era (uma versão envergonhada do nascimento de cristo) e suficientemente resiliente para durar mil e trezentos anos para depois ser abandonada pelos mesmos não motivos totalmente claros - mas todas as hipóteses conduzem nos à loucura humana - como a generalidade dos centros populacionais mesoamericanas do período pré-clássico e clássico que durou até ao seculo nove: finalmente, conhecemos Monte Alban


Na fila do autocarro ( que não era bem um autocarro, era mais um daqueles decanos coletivos que, pela sua excessiva idade mas falta de rendimentos suficientes foi emprestado a uma transportadora de garagem para uma pré-reforma esforçada antes do merecido descanso final) a velhinha, que era um posto avançado dos transportaciones turísticas Mitla, porque encaminhava os clientes desde a porta da garagem, por mais de três metros, até a uma bilheteira, que era afinal uma mesa de madeira com um bloco de bilhetes em cima, que obrigava os clientes a sentar-se nas poucas cadeiras espalhadas pelo resto da garagem que a organização deixava livre, e afastava os outros do meio do passeio para que não impedissem a passagem e, finalmente, conduziu-nos a todos pelo meio da rua, do tráfego intenso, dos vendedores ambulantes para um lado nenhum geográfico onde o cambaleante com rodas iria chocalhar até  se deter uns minutos depois num lugar que só ela sabia ser o adequado, a velhinha (isso mesmo) abanava as mãos e repetia, sem emoção, "tenham calma porque vão visitar um sítio arqueológico" e havia qualquer coisa de espiritual e místico neste anuncio.
E tinha razão!
Foi um local habitado durante mais de mil e trezentos anos por uma sucessão de povos, e os seus terraços, barragens, canais, pirâmides e montanhas artificiais, foram escavados na montanha e são os símbolos de uma topografia sagrada.
Num dos muros ainda visíveis no complexo, estão esculpidas as estatuas dos dançantes, inicialmente associadas a eventuais rituais e danças mas, após análise mais detalhada, foram identificadas como sendo imagens de governantes e dirigentes de povos  vizinhos, primeiro capturados, depois mutilados e por fim mortos em sacrifício para ofertas de sangue aos deuses, após o regresso de batalhas, eram afinal escravos em posições de sofrimento. 
Nada no mundo antigo pode, afinal, ser explicado à luz dos olhos de hoje
Ao meu lado, no coletivo, uma senhora com dois gémeos, ele Filipe ela talvez Marinela, nasceram com um minuto de diferença, talvez ele mais tarde porque ela tem um ar de desafio de quem não se deixa dominar.
Ele sentou se entre os dois bancos e adormeceu 
E eu também 
Amigos de ombrinho, sem termos trocado mais de que uns olhares.
E sonhamos os dois com as personagens e os desfiles que estavam a chegar para o dia dos mortos!



sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Mujer si puedes tu con Deus hablar

 


A noite de Oaxaca é vibrante, não fosse a capital do turismo mexicano e o ícone para todos os visitantes do dia dos mortos.
E a atmosfera rodeia-se de uma cor e de um tipo de luz que parece não querer condizer com a proximidade da data. 
No El Negro, cozinham os especialistas em Tlayudas da cidade, uma espécie de pizza de tons e sabores mexicanos, a cerveja serve-se com sumo de limão, gelo e sal à volta do copo e o entertainer não se revela um especialista a cantar, por isso se intitula, por precaução, de comediante.
Na manhã seguinte procuramos a biodiversidade no jardim etnobotânico que parece estar em cambio administrativo, segundo o primeiro funcionário ou, de acordo com a segunda funcionaria, com falta de pessoal para fazer visitas guiadas.
Mas os visitantes de tez europeia. embrenham-se nos tons exóticos dos cactos longos e espinhosos, em elaboradas poses de Instagram com tripé e tudo.
O funcionário mexicano que falou dos câmbios administrativos encostou-se à sombra das paredes do convento, a escutar uma novela radiofónica mexicana no seu rádio a pilhas, vestido de preto, com chapéu de palha e trejeitos de vigilante, mete as mãos com pose de megafone e grita adelante por favor todos na direção de saída. Pelo menos, hoje no jardim de gestão federal, o nada é gratuito.
Mas a ideia, aliás não explicada por falta de verbas federais, de procurar recuperar espécies vegetais antigas e autóctones, num espaço aproveitado para o efeito no centro da cidade entre a igreja de São Domingos e o convento, agora museu da história regional, é de mérito indiscutível, pelo que decidimos não relevar a a atitude pouco cooperante da frente unida de trabalhadores.
Magnânimos, ou talvez receosos do poder do protesto que emana dos incluídos da revolução mexicana (uns mais do que outros)
O museu da história regional, fronteiro do jardim, estava em pleno funcionamento, bilheteiras e bengaleiro em funcionamento, vigilantes em todas as salas e uma longa série de espaços cronológicos que enfatizam a continuidade (ou a sobreposição) entre as civilizações pré-hispânicas e as culturas contemporâneas, numa narrativa oficial que procura promover a reconciliação entre todos os povos e culturas e alardear, com orgulho patriótico, a mesticidade da grande nação mexica.
Pelo menos esta é uma muito aceitável narrativa oficial, mas é um exercício sinuoso, especialmente porque a diversidade ainda é, no México, sinonimo de desigualdade (e todos os outros flagelos que decorrem da infiltração do crime organizado nas sociedades mais frágeis e mais isoladas)
É uma narrativa muito visual e não se poupa em detalhes quando se trata de mostrar os tesouros do século catorze encontrados por Codice Alfonso Caso  em 1932, os tesouros do túmulo 7 de Monte Alban ou os feitos do primeiro presidente reformista da nação mexicana, porque Benito Juarez é de Oaxaca e liderou a reforma liberal e uma batalha decisiva contra os invasores franceses.



Longe das retoricas (e, muito frequentemente, da proteção) do regime, estão os muitos milhares de artesãos ou outros pequenos empreendedores que se organizaram em cooperativas e, de facto, mudaram a sua vida - da agricultura para artesanato - e também as suas condições de vida.
"Não há nada mais desafiante no México do que ser mulher e indígena"
Pensava eu, enquanto tentava imaginar o que as artesãs, muitas mulheres, passarão todos os dias para ali chegar, aquela arena de combate pela sobrevivência que representa a rua mexicana.
Afinal de contas nem sempre os mais protegidos pela revolução.
“Estoy chica?” Sim, linda na banca de doces que ilumina o mercado.
Hoje, com a noite a cobrir as festas e os desfiles ininterruptos, que antecipam a festa oficial do dia dos mortos,  provámos três sabores de mescal, no bar terraço com vista para a praça de São Domingos, e para o longo espetáculo sobre os rituais e tradições da morte nas aldeias, e só nos ocorreu o poema de Carlos Oliveira " tepido mezcal / para inventar / a mezcaligrafia / gémea do som / ou da sombria / pauta musical / onde as notas florescem / em breves / compactas carolas / e hastes / que sobem, descem / esguiamente / os degraus /de um jardim" 
Como na exposição fotográfica de Jocelin Ortiz no centro da cidade, também são estes os rituais da vida e da morte.
No fecho do espetáculo da tradição local, a banda começou a tocar o hino de Oaxaca e, na plateia. toda a gente se levantou e cantou em uníssono.
E as mulheres tomaram conta da praça, da pátria e do profundo fervor federalista que parece varrer os estados mais remediados do país.




terça-feira, 9 de dezembro de 2025

La China Poblana

 

Há um potencial milagre ou um fenómeno paranormal em cada esquina de Puebla, para quem vagueia por lá numa manhã de Sol, adelante e bienvenido nas arcadas do Zocalo, espreitando para dentro do café que ocupa hoje o edifício Jenkins, o primeiro armazém ao estilo francês que foi inaugurado na cidade, desgraçadamente para o sr. Jenkins o ano de 1910 não foi muito favorável ao empreendedorismo comercial, e a sua ideia foi triturada pela revolução mexicana, mas o edifício ficou e, durante os últimos cento e vinte anos, nunca deixou de exercer atividades comerciais.
La dentro, do outro lado do vidro, um velhinho sublinha furiosamente o jornal no interior do café jenkins, certamente procurando assegurar-se de que nenhuma data relevante é obliterada pelas ingratidões da história. 
Mas os primeiros milagres moram no templo de São Francisco, uma localização um tanto periférica para um fenómeno tão sublime, mas com uma vista única sobre um dos vulcões ativos que rodeia a cidade.
As instruções, junto ao altar do templo são claras: se pretende pedir um milagre para a saúde de  alguma pessoa por intervenção do beato Sebastião de Aparício, providencia toda a informação médica antes do milagre e reúne também a documentação médica de que o paciente já está curado, que a cura não está explicada e o seu efeito dure para sempre, tem na tua posse os testemunhos do milagre porque desta forma poderemos obter a canonização do beato Sebastião de Aparício.




Lá fora, para lá do horizonte, o vulcão continua a cachimbar.
Do outro lado da rua dois velhinhos beijam-se prolongadamente, talvez porque tenham saído do pincel ou do spray de um artista de rua inspirado pelos milagres do beato.
Na casa de alfanique não ocorreram, segundo consta, milagres, apenas amor e lenda, uma casa que ficou com um aspeto exterior de doce de alfanique - seja lá como ele se parece - porque a noiva exigiu ao proprietário, como prova de amor que ele construísse para ela uma casa doce e ele assim fez.
Uma cidade de histórias que se contam nas ombreiras das portas, nas esquinas das ruas ou nos interiores das casas palácio dos novos donos da nova Espanha, e que a republica decidiu transformar em espaços de memória.
E a história das China Poblana é quase um milagre como algumas mulheres de classe baixa e de origem pouco conhecida tenham criado uma moda de vestir com roupas vistosas, de corte e cores inspiradas no artesanato indígena, que ninguém  tinha visto antes nem mesmo entre os  indígenas, e se tornaram um símbolo de independência das mulheres que as usavam.
Notável, especialmente por ter sido no século dezanove.
E, sem que a nossa retina se consiga concentrar numa só ideia, as imagens começam a sobrepor-se na linha do tempo, à medida que nos puxam para fora da cidade, para a descoberta do velho sul;
Os distribuidores de bilhas de gás que anunciam o seu serviço, rua fora, em carrinhas de caixa aberta com uma música de fundo que, em mesmo tudo, nos recordam os dias de tourada e cruzam-se em contramão com o afiador de facas na sua bicicleta tão ferrugenta quanto a gaita que sopra;
Um outro velhinho, diferente do outro do dia anterior, estava sentado noutra rua, com outro chapéu estendido dando música à rua inteira com outra coluna de som, esta com luzes de néon azul;
E as aparições celestiais na narração de san miguel;
E os altares das oferendas na casa de cultura;
E os blindados do exército mexicano que se passeiam na cidade histórica com soldados armados de pé nas traseiras de uma caixa aberta;
E a fumarola do vulcão que se mostra ao fundo outra vez;
Para nós e para ti, cidade nomeada quatro vezes heroína, segundo rezam as evocações narradas nas esquinas da cidade, porque a história do México é feita de batalhas e invasões algumas vezes derrotas outras conquistas sem ordem precisa porque, no México, mais importante do que as vitórias são os atos heroicos e os heróis improváveis, mesmo que afundados em copiosas humilhações e derrotas
Quiçá, uma prova de confiança no milagre deles!



domingo, 7 de dezembro de 2025

O lugar onde todos somos aztecas

 


Bem-vindos a Puebla, o lugar onde todos somos aztecas 
Acordamos no sopé do vulcão com os ruídos dos motores dos coletivos que se desfazem, a partir das cinco e meia da manhã na rua, do lado da lá (ou seria a partir de dentro?) do nosso quarto.
No México, as cidades escondem-se da noite, enclausuram-se nas portadas metálicas, será medo, precaução ou é mesmo assim? mas acordam muito cedo e, quando acordam, abrem as portadas da vida e despejam toda a cor e o ruído que acumularam durante a noite.
A noite é, pois, a bateria do México. 
 E, do outro lado do passeio do nosso quarto do hotel rincon poblano vivem os heróis da lucha libre poblena, sim, a arena de Puebla é mais modesta que a da capital, mas está forrada de caras mascaradas e recheada de entusiasmo, golpes de magia e caras felizes.
Tudo no mesmo quarteirão, por isso quando Puebla acorda, acordamos todos.
Mas na igreja de São Domingos reina a paz, porque a porta estava apenas entreaberta e a rua não ousou entrar.
E na igreja São Domingos, o silêncio está forrado a ouro, uma capela inteira imersa em barroco, uma extravagância daqueles que construíram uma Puebla de grelha urbana renascentista e a colocaram estrategicamente na rota entre a capital e o porto de Vera Cruz, numa prova dourada de que havia na nova Espanha uma vontade própria, distinta da Coroa.
Conta-se que a mãe de São Domingos, quando estava grávida, sonhou que tinha no seu ventre, um cão que transportava uma tocha na coleira, iluminando o caminho debaixo das suas patas e atribuiu este sonho a uma premonição do futuro do seu filho. O cão simboliza a fidelidade e a tocha, a luz que dará ao mundo, e desta forma decidiu dar-lhe o nome do santo ao homem que fundou a ordem dominicana em Puebla, uma tradução literal de os cães do senhor.
A construção da capela forrada a ouro será certamente uma outra lenda, ao que consta, cheia de símbolos indígenas e referencias aos cultos pré-hispânicos, porque a maioria dos artesãos contratados eram indígenas.
Os vulcões de Puebla deitam fumo e as igrejas disputam a riqueza e o ouro
Cá fora, agora que a rua nos invadiu de novo, um velhinho de fato sem mácula e cruz ao peito cantava, apoiado na sua modesta coluna, músicas de amor e sofrimento, procurando manter a compostura em cada nota, mesmo quando se apercebe que nem os seus graves fazem tilintar moedas no seu chapéu coçado se tanto chão.
A rua do México pode ser dura, porque é grande a competição por agradar!
Mas, na face da maioria dos intérpretes (tal como na maioria dos vendedores de sonhos ou de produtos banais) há uma expressão de otimismo caloroso de quem acredita que todos, a seu tempo, irão conhecer a boa ventura.
Como o homem da casa que matou o animal, que enfrentou e matou uma gigantesca serpente que tinha invadido a cidade e comido o filho de um habitante rico e influente da cidade. 
O pai do infeliz ofereceu-lhe metade da sua fortuna o que lhe permitiu construir uma mansão de três pisos, símbolo máximo de mudança de sorte e a cidade deu-lhe o reconhecimento dando-lhe o nome oficial de a casa que matou o animal.
É só uma lenda, mas pode ser verdade no imaginário de quem precisa de acreditar.
Ou simplesmente a velha lojista do mercado de artesanato que beijou as notas de pesos e benzeu-se logo de seguida, com os olhos pregados no céu, agradecendo quem sabe se a primeira venda do dia, se não termos pedido desconto na compra do vestido com bordados de flores ou se apenas por estar viva e de boa saúde.
Mas Puebla vive na rua e almoçar cemitas no mercado central é uma sandwich de pão fresco saloio, cheia de tudo o que possa pedir mais uma dúzia de molhos e ingredientes, é cheirar oa cheiros intensos das especiarias, das ervas, dos fritos e dos fumos, é escutar os pratos sobre as mesas e os pregões dos vendedores de carne e frutas e encandear-nos com as gigantes figuras dos super-heróis repletos de doces no seu interior para desventrar nas festas de aniversário das crianças.
Sempre o mesmo quarteto da realidade deles: os cheiros, as cores, os sabores e o ruido.


Em Puebla, o centro do estado, mas também na capital do planalto que se rodeia de aldeias históricas, onde impera o triunfo do barroco espanhol sobre a tradição e a cultura mesoamericana, como a catedral de barroco intenso construída em cima da mais volumosa pirâmide pré-hispânica do mundo na aldeia de San Andres Cholula ou a igreja de San Francisco, a única perola arquitetónica da aldeia indígena de Chaletec.
E, no resto da tarde, deambulámos pelas aldeias e pelas preciosidades arquitetónicas do planalto, encostados no conforto dos Uber de Puebla, uma experiência diferente da capital porque, a sul da grande metrópole, os condutores preferem o som dos clássicos românticos anglo-saxónicos dos anos oitenta, Billy Joel ou Whitney Houston com o mesmo nível de som com que trauteámos, a norte, as relíquias musicais de Victor Fernandez e José Luís, como se, à medida que nos embrenhamos nas profundezas da história do méxico, fosse inevitável o triunfo de uma certa modernidade sobre a inevitabilidade da tradição e das raízes.
Sempre o México e as suas construções em múltiplas camadas e interpretações alternativas. 
Acabamos a noite no bar El idolo do México, um espaço acanhado com prateleiras de álcool engarrafado ate tocar o teto, por detrás do longo balcão de onde saem tequilas e margaritas entre outras preciosidades e a toda a hora, orgulho mexicano da banda de musica ao vivo e nós outra a vez a brindar com estranhos e a cantar e a dançar "Antes muerta que sencilla "
O México não acaba !





quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

O desfile das Katrina

 

O avô mexicano que falava sem parar na fila dos cacifos da estação rodoviária do Norte, da herança europeia do povo mexicano, vinha à cidade com os netos ver a final de basquetebol, e ele agitava-se e apontava, como se ele estivesse longe, este é o meu neto, com camiseta de basquetebol sim, ele vinha com a sua malinha e ia para a bola 
Sejam bem-vindos ao México, já depois de ter abordado a política mexicana e mais alguns assuntos da atualidade que eu não decifrei, entre a sua pronúncia cerrada e o seu sorriso reconfortante.
E a Cláudia, a presidente. entre o trânsito intenso e a faixa do metro bus, escapuliu-se num dos três carros de uma qualquer marca americana bruta, sem matricula que a identifique, exceto para o condutor do Uber que apontou com os olhos e desferiu o golpe: é a Cláudia 
E nós, neste domingo, viemos para o desfile da Katrina no Paseo de Reforma
A multidão engoliu-nos numa palete de cores e de movimento e nós dissemos que sim.



segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

As lendas de Guanajuato

 

Em Guanajuato regressamos aos lugares de dimensão humana, uma pequena cidade encravada nas montanhas, na época de colonização espanhola, um dos maiores produtores de prata do mundo.
A entrada no centro histórico faz-se através dos tuneis que ligavam as minas e a cidade por carris que transportavam a prata em vagões.
Em Guanajuato, hoje, não há vestígios de prata, mas sobram as memórias construídas, o faustoso teatro Juárez, a Catedral, e os palácios que povoam a base do planalto, sim a base, porque pelas encostas acima, mantém-se as cores, mas perde-se qualidade nos acabamentos e, quando se sobe muito, os tijolos começam a ficar à vista, parece que o cheiro da prata não sobe tão alto.
Mas sobram histórias de amor impossível, a filha de uma família rica que se apaixonou por um rapaz pobre e eles, tal como Romeo e Julieta, preferiram o amor eterno ao preconceito e o rapaz mudou-se para uma casa contigua à casa da rapariga onde continuou a vê-la, aproveitando os momentos de distração do austero patriarca de família.
Hoje sobra o ritual do beijo de Romeo e Julieta em duas varandas que juntam os prédios dos amantes.
Uma história que só pode ver acabado mal, uma tragédia de Shakespeare, na capital da prata.
Mas em Guanajuato também nasceu Rivera e na sua casa, agora museu, existe um pintor mais contido, porque afinal Rivera aprendeu os clássicos em Itália, os modernistas em França e as suas raízes longínquas em Espanha e o artista deixou um espólio relevante das suas fases menos exuberantes, mais intimistas.
E em Guanajuato, apesar dos sinais exteriores de riqueza serem coloniais, uma herança do sangue e da prata, é na luta da independência do México que a cidade recebe o devido reconhecimento.
Bom, é um reconhecimento dos momentos simbólicos como o grito de Dolores e o 17 de setembro, que são hoje reconhecidos como a primeira manifestação de consciência nacionalista encarnada num padre Hidalgo e os seus vinte e oito mil fiéis que invadiram o deposito de cereais e venceram a primeira batalha contra o exército espanhol.
Sempre na realidade muito mexicana de que a independência foi feita pelos espanhóis nascidos no México (aparentemente os mais abonados e conservadores) e não pelos indígenas, enquanto Cortez foi ajudado pelos indígenas, inimigos de Moctezuma, na conquista do México.
Esta contradição, a conquista fizeram-na os indígenas e a independência os europeus, parece ter determinado o destino dos indígenas na hierarquia do México moderno.
Quanto a Hidalgo, ele foi traído, fuzilado e decapitado em 1811 e a sua cabeça depositada numa jaula e pendurada num dos extremos do forte por tomado por ele, um ano antes.
A independência de facto ocorreu apenas dez anos depois e nada mais aconteceu de relevante nesta parte da futura república.


Mas Guanajuato parece preferir as ondas de presente, um jovem que toca composições clássicas num piano estacionado no meio da rua, centenas de mariachis que cantam e tocam pelas ruas fora, galerias de arte que confrontam as culturas mexicas em cores intensas, artistas da universidade de belas artes local, apresentados numa visita guiada individual por um estudante da escola que teve o cuidado de nos informar que não tinha quadros de Rivera, mas que todos os pintores daquela sala tinham estudado na mesma universidade, ou finalmente o teleférico de uma vista deslumbrante sobre a cidade, um planalto em forma de concha rodeado de um anfiteatro natural cheio de influenciadores no fim da tarde.
Na catedral, prepara-se um casamento e o padre chega cedo, a tempo de ajudar a debutante que tropeça no vestido de balão e, cá fora, ficamos sem saber se o carmen guia é para os noivos, para a debutante ou uma relíquia da nova igreja para atrair fiéis. 
Porque é uma cidade do presente de dimensão humana em Guanajuato, o México fala-nos pela primeira vez, e na primeira pessoa, dos milhares de migrantes que atravessam o país todos os dias de sul para norte. É numa galeria escondida na parte de trás da cidade, mas as portas abertas permitem ver imagens fortes que nos obrigam a entrar.
"Sin Itaca que te aguarde" é o fragmento do poema Peregrino de Luis Cernuda e sugere uma procura sem destino nem lugar de descanso, e assim ficamos sós num corredor escuro rodeado de imagens iluminadas de desespero e sofrimento.
Como as pessoas desaparecidas cujos rostos aparecem desfocados nos postes da cidade, milhares de famílias sem respostas, muitas vezes para a vida, uma praga que ninguém conhece ou partilha as suas origens.
Na manhã, quase madrugada, o autocarro que cantava melodias de victor fernandez sempre me respondes qui cas qui cas ...pensando. pensando hasta quando.... desesperando qui cas qui cas.
São sete da manhã em Guanajuato 
O autocarro parece desfazer-se em cada curva, em cada nota da música, em cada quadra sofrida do cantor, mas só desta forma fazia sentido despedir-me de Guanajuato 



sábado, 29 de novembro de 2025

O velho guia, uma versão revolucionaria da historia e a jovem burguesa

 


Na Secretaria da Educação Pública, Rivera trabalhou quatro anos numa comissão  de serviço patrocinado pelo então ministro Vasconcelos, nos finais dos anos vinte, numa época em que o poder procurava harmonizar a constituição de 1920, que sintetizava as principais reformas reivindicadas pelas diversas fações do movimento revolucionário, com as diferentes visões da sociedade dos diferentes grupos corporativos mais conservadores ou mais liberais que a república criou e ainda com a realidade que normalmente contraria as  convicções utópicas do homem bom.
Ao longo dos anos e décadas seguintes, os vários regimes da república e a irreverência ideológica de Rivera aprenderam a conviver e, nas dezenas de murais que foram pintados naquele local, nasceu uma visão muito própria da história do México que, mesmo com divergências ideológicas substanciais com os regimes e com as lições da historia moderna, se tornou numa espécie de visão oficial da história da nação.
Já no antigo colégio de San Ildefonso, os temas no anfiteatro bolívar são a forma abreviada do mais importante da história da humanidade, segundo o autor.
A cena parece reproduzir a ideologia de Vasconcelos, a mistura das raças, a educação pela arte, a vida segundo as virtudes da religião judaica cristã e o uso sábio das ciências para controlar a natureza e para que o homem encontre a verdade absoluta.
Parece que é assim, mas nós não vimos, a sala estava fechada para ensaios e a aflita funcionária do museu que, tal como a maioria dos mexicanos não gosta de dizer não, encolhia-se na falta de autoridade para nos deixar entrar. E sorria, pesarosa, sempre podem visitar as criações dos outros muralistas, e sorria outra vez, ela parecia gostar de finais felizes.


E os murais de Siqueira e Orozco podem não ter a mesma vertigens do que os de Rivera, mas têm a mesma ambição e se o destino da nação dependesse apenas da intensidade criativa da inspiração e vontade dos mestres, há décadas que o México tinha destruído a velha ordem.
As obras de Rivera procuram espalhar a convicção utópica de que o homem consegue transformar criativamente a sociedade e alcançar assim.um futuro melhor e mais justo.
A visão política do povo mexicano pintado a partir do desenvolvimento de uma iconografia revolucionária para o México, harmonizando os ideais revolucionários e a herança índia da cultura mexicana.
São visões grandiloquentes, excessivas porque nada para ele pode ser menos que épico como os Zacatecas que produzem minério, a cor de marte que na mitologia grega romana significa guerra, a guerra e o trabalho escravo, os pueblos fantasmas de Pedro Páramo, o Gringo Viejo de Carlos Fuentes com Gregory Peck and Jane Fonda que fala dos perdidos na revolução ou como se perdeu a revolução, David e Golias ou a convicção de que o inimigo pode ser muito grande mas que nós podemos vencê-los com armas rudimentares 
Mas hoje, nas arcadas da Secretaria de Educação Pública, a visão contemporânea da jovem  burguesia mexicana mestiça, muito maquilhada, de top agressivo e que se recusa a entender o inglês, língua oficial da visita guiada,  vergou a militância do velho guia popular, portador da visão  revolucionária oficial e devidamente sindicalizado que pareceu subitamente desinteressar-se dos momentos épicos de Rivera sempre que a jovem esboçava algum gracioso protesto ou lhe respondia com visível desprezo que era de cá, da 
Cidade.
E o velho guardião do pensamento revolucionário perdeu a eloquência e tornou-se subserviente, algo que Rivera nunca perdoaria. Nem nós!
E assim nós e as pinturas de Diego abandonamos o patético guia e a petulante menina da cidade, e levámos a arte do génio para o piso superior do pátio interior da secretaria da educação.
Como escreveu Octávio Paz, na entrada do edifício da secretaria da educação pública " A vida não é de ninguém, todos somos a vida - pão de Sol para os outros, para todos os outros que somos nós "
Ninguém fica indiferente à intensidade dos sonhos desta cidade.






quinta-feira, 27 de novembro de 2025

La Llorona

 

Na calle da República da Guatemala, os dois mendigos estavam deitados na berma do passeio cobertos por uma mesma manta, tapavam-se até ao queixo e conversavam animadamente sorrindo de boca desdentada.
A multidão das nove da manhã, caminha com a pressa de quem vai trabalhar, e também há colarinhos brancos no centro histórico, mas também de quem não quer dar pela presença dos dois homens deitados na berma do passeio, mas também eles não parecem dar pela presença da multidão, uma indiferença recíproca, aliás muito justa. 
Eles também riem para sobreviver na manhã amena, a olhar o céu entre as sombras dos prédios.
Um pouco mais á frente, a freira de azul-bebé e mascara preta vendia bolos secos encostada ao prédio, enquanto o resto da cidade se agita na manhã precoce, entre bancas de rua que vendem fritos que cheiram a pequeno almoço e uma pick up da policia que circula velozmente, com dois policias em pé na caixa aberta traseira.
Ao nosso pequeno-almoço trocamos panquecas e café de olla com a história recente do México, afinal de contas o café Tacuba é um café histórico, uma conversão de um antigo convento em 1912 , certamente expropriado à igreja pela revolução.
Uma imagem feliz do México, um país sempre em revolução, mas que, no seu íntimo, só quer viver feliz, livre e com estilo, como o café histórico de Tacuba.
E, como sempre, também hoje, o Zocalo mantém-se agitado, convertido em marcha de policias ou de manifestantes ou apenas de transeuntes apressados.
Mais quinze minutos de metro, e mudamos novamente a perspetiva enquanto as primeiras carruagens, só para mulheres e crianças até treze anos – para as proteger de uma praga chamada assédio - passam por nós, na plataforma, a caminho de Buenavista e nós a questionar (sempre a questionar, quais mentes inquietas!)  se o assédio começará tão cedo assim, treze anos não é mais do que uma adolescência moderada.
E a nova perspetiva de regime desfila nas salas do museu de antropologia e neste magnifico edifício dos anos sessenta do século passado, a História é mostrada da forma como o México moderno escolheu para afirmar a sua identidade, em que o regime do partido quase único que herdou o centralismo dos séculos anteriores em décadas no poder absoluto se vê (mais do que isso, se projeta) transfigurado no mundo azteca e ao contemplar-se, afirma-se.


Procurando não pensar que parece ter sido uma profunda angústia existencial que levou os poderosos aztecas a entregar-se, de uma forma dócil, ao sacrifício coletivo.
Portanto, regressados outra vez ao contraditório, quer  evoquemos o destino deles quer a sofisticação do património construído.
E, sem dúvida, ao esmagador que nos habituou a cidade.
Mais tarde, em Xochimilco, as últimas superfícies aquáticas que sobreviveram aos séculos de aterro do lago salgado, abandonamo-nos ao lúdico e ao universo do fantástico e das lendas e aprendemos que o axolote, um anfíbio pouco dotado para a beleza e para a utilidade prática, é,  afinal de contas um ser humano que, ao transformar-se, procurava fugir aos sacrifícios humanos maias, apesar de haver quem diga que os humanos se sacrificavam voluntariamente, especialmente se eram derrotados de guerra
Apesar deste caminho para a liberdade, o axolote não tem tido vida fácil, especialmente desde que descobriram que o mesmo possui propriedades curativas contra o cancro e a favor da vida eterna.
Na ilha das bonecas choronas, um velho local terá encontrado uma criança afogada nos canais e, para acalmar os espíritos, juntou uma grande quantidade de bonecas para acalmar os espíritos, que pendurou nas árvores de uma ilha desabitada.
O velho morreu, mais tarde, na ilha das choronas, em circunstâncias misteriosas.
Na voz dos mariachis que nos abordaram, no seu barco a remos, ecoavam os sons aflitos de Chavela Vargas e, sem surpresa, ouvimos La llorona, o último latido da água.
E o miúdo que remou como um herói três horas a fio, recebeu a nossa propina e beijou as notas de pesos enquanto se benzia de gratidão como se o universo tivesse sido criado com um propósito divino, e tudo o que acontece ser bem capaz de fazer parte desse plano. 




quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Noguchi’s Butterflies by Patti Smith

 

Segundo o poeta Octávio Paz, a relação entre os Aztecas e os Espanhóis não é simplesmente uma relação de oposição: O poder espanhol substitui o azteca e, desta forma continua-o. E da mesma forma o México independente, explicita e implicitamente prolonga a tradição azteca-castelhana, centralista e autoritária.
E, por isso mesmo, Cortez decide construir a capital do império colonial dominando as ruínas da capital indígena por ele destruída, apesar desta ilha não ser o local mais adequado para construir uma futura metrópole, sobre um lago salgado.
E ninguém mais questionou a decisão política de Cortez.
Hoje no Zócalo, os manifestantes marcham  ( todos os dias acontece algo no Zócalo) sobre a calçada que se afunda lentamente, junto as fachadas que se inclinam sem remédio,  sejam eles símbolos do poder passado ou presente; as ruinas da recentemente desenterrada pirâmide do sol, a catedral metropolitana e o palácio do governo e sobre o mais recente monumento os 43 estudantes desaparecidos em 2014, quando se dirigiam para uma manifestação na cidade do México, num autocarro por eles sequestrado. 
Calcula- se que tenham sequestrado o veículo errado.
E todas as tragédias e as misérias do México parecem desembocar todos os dias no Zócalo.
Por isso mesmo, a bandeira permanece sempre no centro da praça e, nos dias mais ventosos, esta forma de pátria agiganta-se, para dar sombra a todos os que correm para o centro para sentir o grito de Dolores.
Outras vezes, quando se liberta a serpente, simplesmente para os assombrar
Nas redondezas e a norte da praça, Lagunilla é um mercado ao ar livre.
Ou antes, é um bairro que se transforma em mercado, todas as manhãs.
Coabita com o poder centralista que emana do centro histórico, mas combate-o todas as manhãs em que os feirantes montam as tendas no meio da rua, ou presas nas fachadas da cidade que se afunda porque, enquanto não nos afundamos é preciso viver, e os mestiços têm uma visão do México mais pragmática do que as elites e, frequentemente, tão mais liberal quanto subversiva.
Em Lagunilla, paredes meias com a pátria intocável, eles vivem demasiado atarefados para se deixarem assombrar.
Mas bastam trinta minutos de um metro que respira melhor do que a superfície poderia antever, para chegarmos aos bairros do sul e a Coyoacan e descobrimos afinal que nem toda a cidade é esmagadora.



No bairro de Coyoacan, os transeuntes passeiam os cães nas ruas circundadas por casas térreas com quintais que se escondem nas arvores que invadem todos os espaços livres, respira-se introspeção nos pátios tranquilos das livrarias e dos centros culturais e, até os vendedores de rua, parecem oriundos de uma qualquer aldeia perdida nos cumes nevados que podiam envolver a cidade.
E em Coyoacan viveu Frida Khalo, o culto da irreverência e sacrifício, e o mundo imaginário que ela via "e se eu pudesse dar-te uma coisa na vida, eu gostaria de te dar a capacidade de te ver, a ti mesmo, através dos meus olhos"
E, apesar de apenas a trinta minutos do centro histórico, este bairro parece respirar uma descontração tropical que atravessa os restaurantes abertos, os jardins com lagos no seu centro e as estatuas dos coiotes que não assustam nem os animais de estimação nem os visitantes de Coyoacan.
E o dia esvai-se sem pressas, ao ritmo de um gelado que se derrete numa tarde amena de outono, entre mercados e as memórias dos locais de Frida e Diego, almoços que demoram ao ritmo de um peixe que assa em forno brando e de explosões de cores nas paredes desta aldeia plantada no meio da metrópole, um banho de azul profundo que se entorna, em cada esquina, sobre os muros cor-de-rosa que espelham os sonhos mais doces da cidade.
E depois de conhecida a intimidade de Frida, espalhada pela casa dos pais dela e pelo retiro do casal, até o temperamento de Diego parece excessivo aos olhos de uma ilustre visitante da cidade que questiona a grandiloquência de Diego, “para ele nada pode ser menos que épico, prefiro a aventura tão íntima e solitária de Frida”, nada mais do que uma opinião, bem entendido.
No parque central do bairro, a luz do fim de tarde desvanece-se nos sons dos esqueletos vivos que anunciam uma peça de teatro gratuita, dos pregões dos vendedores, dezenas de histórias iguais às da velhinha que vendia palitos para bolos, mas que só tinha feito cento e vinte pesos no dia inteiro e ela que insistia que tinha de levar algo para casa, ela que fazia os palitos, o filho que os pintava e ela que os trazia de uma aldeia a mais de quarenta quilómetros.
E nós compramos-lhe palitos para bolos para alimentar uma família grande na noite de Natal, e triplicamos a sua receita do dia, mesmo assim pouco mais de vinte euros.
Também há vidas amargas no lado doce da cidade, gente que, se pudesse, não se ofereceria para tais sacrifícios humanos.
Ao anoitecer na mesma praça central de Coyoacan, onde tudo acontece a qualquer hora, celebra-se uma cerimónia do culto dos deuses e rituais de purificação pré-hispânicos, que curam todos os sofrimentos do dia e perdoam todos os séculos de pecado dos barbudos, quiçá os deuses da ira.
E o que seria de mim sem o absurdo e o fugaz?
Frida e as suas borboletas, claro!



sábado, 22 de novembro de 2025

o mural da revolução mexicana

 


E ao segundo dia demos de frente com o Pancho Villa, pendurado na rua do Madero, o que também faz sentido pois Francisco era o seu presidente e foi ele que levou a revolução para o palácio do governo na capital, a partir de Cidade Juárez, e era um diplomata cercado por violentos pistoleiros, por vezes capazes de atos de ternura para com as mulheres e com os companheiros com a mesma naturalidade com que fuzilavam todos os oficiais inimigos, feitos prisioneiros.

E Pancho sempre foi fiel ao diplomata Francisco e terá chorado com o seu assassinato, o primeiro de uma longa lista de revolucionários, mártires e vítimas da própria revolução, que tragou todos os revolucionários até uma espécie de meia vitoria final, dez anos depois, lá para os anos vinte do século passado.
Mas a entrada triunfal dos primeiros revolucionários na cidade do México, nos anos dez, um desfile militar em que milhares de bandoleros, cobertos de pó e de ruralidade, se sentiram finalmente um exército, ao longo do muito francês passeio da reforma, faz parte do imaginário dos indígenas e dos pés descalços do México.
E, por isso, na muito elegante casa dos azulejos, onde os pequenos almoços se celebram com iogurtes de frutas frescas e guardanapos de pano, existe um altar construído para o dia dos mortos, uma oferenda por Pancho.
No Zócalo, prepara-se uma demonstração do México corporativo dos pueblos que acampam nos confortes da catedral para exigir a anulação de uma eleição não identificada, sob o olhar benevolente de centenas de policias que por ali sempre andam, porque no Zócalo, o centro absoluto do México sempre protegido pela bandeira, estão sempre a acontecer coisas, uma sucessão de altares, palanques, palcos ou apenas multidões que gritam, cantam, festejam e protestam amiúde, o pulmão e as entranhas da nação mexica.
No interior da casa dos azulejos, vive-se uma palete de cores quentes, um mural que forra a sala de uma atmosfera nordestina, com catos que anunciam o deserto e os ranchos de gado, uma memória da época em que a casa doa azulejos era o jockey club da cidade, uma visão romântica de um México rural, sem pressas e impregnado de uma música inconfundível.
Aberta a porta do exterior, não há mais lugar para a farda imaculada dos empregados de mesa e impera o mundo dos amarrotados.
E ao segundo dia demos de frente com os muralistas, os revolucionários e por vezes dissidentes (com o partido e, amiúde, também entre eles próprios e com os inseparáveis amigos) Rivera e Siqueiros, e entrámos num universo grandiloquente das histórias contadas em pinturas de parede.
No Palácio das Belas Artes vive o homem controlador do universo ou a dicotomia dos mundos capitalista e comunista em 1934 aos olhos de um revolucionário que não se refugiou nos dogmas da ideologia, mas pintou a utopia com um entusiasmo vitalício e a convicção utópica de que o homem consegue transformar criativamente a sociedade e alcançar assim um futuro melhor e mais justo.
E por isso fascinou-se com a indústria moderna da América do Norte e foi expulso do partido como reacionário por receber encomendas dos ditadores mexicanos e dos capitalistas americanos, mas recusou-se a retirar a figura de Lenine do mural que Rockefeller lhe encomendou para o seu centro e o Mecenas destruiu o seu mural. E Diego reproduziu-o no palácio das artes como o controlador do universo (que ele encarnava em si mesmo) como a maior das utopias de uma mente inquieta que se inspirava no contraditório, mesmo que, na dicotomia que pintou, nunca fosse possível identificar uma cronologia credível.
Sequer.
Na outra parede, no painel de Siqueiros, uma única imagem da conquista espanhola, parece resumir todas as guerras da história mexicana.
Pelo menos na perspectiva do professor que explicava aos alunos que a colonização espanhola e o massacre indígena, explícito no mural de Siqueiros, encarnava (implicitamente) o sofrimento de todas as guerras do povo, contra os invasores espanhóis, os franceses, os americanos, a guerra da reforma e a revolução, essas últimas sem inimigos externos, senhor professor,  e os alunos, muito atentos, pareciam algo confusos com tamanha audácia do professor, certamente entusiasmado pelo génio  dos autores, afinal de contas todos os momentos são bons para realçar as cores da  nossa bandeira, mesmo quando as cores vividas da imaginação explosiva dos muralistas tendem a estimular um excesso de imaginário fantástico.
E, no segundo dia, tivemos a certeza de que no México não há outra realidade senão a alma mestiça. Entende-se, caminhando pelas ruas que o país foi construído por camadas e a raça mestiça transforma-se no sinal congénito deste povo. 
Basta andar pela cidade para perceber que a mistura se fez pela imposição sucessiva dos mais poderosos, desde os aztecas até aos ditadores mexicanos, de sacrifícios não voluntários aos mais desfavorecidos e pelas revoltas sangrentas dos descamisados, sempre uma violência desmedida a partir da qual se apurou o sentido de mestiçagem que povoa o presente da nação.
Mas a generalidade dos transeuntes é doce, amistosa e cortez (não é esse cortez, até porque a generalidade dos mexicanos com voz o trata por “ele”, apesar de saberem que Cortez é o seu pai biológico, eventualmente Moctezuma a mãe deles)
Faz parte do imaginário literário deles a coexistência entre uma violência intestina e uma ternura imensa.




E no museu que foi construído para acolher um mural que tinha sido pintado num hotel destruído pelo terramoto, Rivera conta uma versão da história do México em três níveis na horizontal, uma ironia critica à sociedade mexicana dos finais do século dezanove, outra dos sonhos do povo e a terceira a história sonhada e os desejos de realidade, normalmente preenchidos de paixão, devoção e sangue.
Uma história também contada na vertical em trezentos anos de linhas impercetíveis, desde a conquista ao regime de Porfírio Dias e a soberba afrancesada dos ricos e poderosos, depois a Revolução e muitos metros de tinta até à história moderna. 
As imagens são tão fortes que temos dificuldade em encontrar os personagens certos e distinguir a narrativa do fantástico.
Abandonados os sonhos de arte nova (e de uma ambicionada grandeza) ao pequeno-almoço, almoçamos no pátio interior, depois de atravessar um tronco de pastor à porta e um corredor de fumo que é a versão popular de uma cozinha que nada esconde da sala de comer, sim, um lugar de modéstia mas que não dispensa os mariachis e resume a vida da gente amarrotada mas generosa, dos botecos de rua, das ruas dos ofícios, desde a rua dos eletrodomésticos, ferragens, lojas de música, de fotografia e esporadicamente as ruas pedonais das grandes marcas,  uma versão muito legitima da cidade sentada diante de nós, em mesas de madeira simples e paredes de amarelo intenso.
Todos ao redor de um taco pastor e de um pote de água de sabores, hoje a pepino, laranja e mais sabemos lá o quê. 
Quando regressamos ao crepúsculo do Zócalo, mais uma interpretação sobreposta da História, desde Moctezuma até à independência, estamos prontos para nos submetermos aos rituais aztecas de limpeza, entre os espólios coloniais e indígenas, sem alarde, mas com vigilância ativa sobre as intenções dos transeuntes e sobre os templos recém escavados.
E diz, quem se purificou com os fumos sagrados que, mais do que uma cura é uma viagem mística aos confins das crenças antigas, com surpreendentes resultados terapêuticos, frutos de um conhecimento moderno.
Entre a fachada lateral da grande catedral metropolitana e o coração de Tenochtitlán, dissipam-se os fumos, submerge o alívio das dores nas articulações e sobrevive a herança mexica comum que parece explicar a devoção a Guadalupe, mais Guadalupianos que católicos, a madre de todos os deuses tonatsi, a suspeita de que Guadalupe é a indigenizacao da religião católica.
Já noite dentro, o Júlio Cesar e a Paloma dão os nomes para a viagem na noite mexicana, direção lucha livre, uns acrobatas saltimbancos que simulam lutas familiares, e certamente que o fazem por sobrevivência e reconhecimento, porque a audiência é entusiasta e precisa dos heróis mascarados.
Na taqueria Orinoco, recuperamos as energias gastas na luta, no muito nobre bairro de Roma, um enclave de elites na grande selva urbana, cheia de bichos e de finais dramáticos e descobrimos que afinal sempre vive um México branco na cidade.
Quase imune à história conturbada do povo.
Quase!



quinta-feira, 20 de novembro de 2025

vertigo mexica

 

É pressuposto começarmos pelo princípio, um povoamento datado de dois séculos antes de cristo, não é que que estes simbolismos de calendário interessassem muito a estes povos mesoamericanos que só conheceram o novo Deus barbudo muito tempo depois (e tarde demais ao que parece) e que construíam pirâmides de adoração ao Sol e à Lua  e alamedas que lembravam os mortos.
Muito antes daqueles povos que tiveram um lugar especial na História, primeiro os Maias, depois os Aztecas.
Mas em Teotihuacan, as pirâmides afinal não são pirâmides, são estruturas escalonadas porque não têm bicos, nenhuma delas é dedicada nem ao sol nem a lua, nem a alameda dos mortos era o cemitério da antiguidade, e tudo o que aqui vemos hoje resulta de uma interpretação azteca (portanto também pré-hispânica) do que eles descobriram, uma cidade cerimonial abandonada por uma civilização que tinha povoado aquele local mil e quatrocentos anos antes dos aztecas e que terá abandonado o local por exaustão de recursos naturais, ao que consta, por falta de água, esgotada pelo mito da criação da humanidade, “as montanhas que emergiram a partir da água”.
Abandonado por volta de 600 anos antes do aparecimento dos aztecas, enquanto grupo identitário próprio, por causas que nós, contemporâneos, temos dificuldades em conceber, porque ainda acreditamos que a tecnologia e o saber tornam os recursos naturais ilimitados.
A partir do lugar onde os deuses foram criados (assim se traduz Teotihuacan) do alto das escadas da pirâmide da Lua contemplamos a alameda doa sacrifícios ( eles juram que eram voluntários porque o sangue dos humanos fertilizava a terra e acalmava os deuses, mas nem do alto da pirâmide que não é pirâmide eu acredito, perdoa-me Rosa, a nossa contadora de historias local) e  repetimos mentalmente as formas como esta civilização procurava resolver os mistérios da criação e justificar a necessidade das cerimonias e dos rituais.
Somos a quinta humanidade (aparentemente seremos sempre a quinta humanidade em todos os presentes) a última - depois de nós virá o diluvio e veio, séculos depois, encarnado num barbudo de capacete.
E Quincuce, o símbolo principal das culturas mesoamericana, representa os cinco pontos cardinais, incluindo o centro como ponto cardinal, porque eles achavam que a terra era plana, também os cinco elementos da natureza, incluindo a raça humana e as cinco humanidades, depois das quatro anteriores se terem extinguido por ordem de cada um dos Deus Sol.
Iras que só o Deus Sol conseguiria provocar. catástrofes naturais, como na terceira humanidade em que o vento empurrou a humanidade pelo mundo abaixo, como se o mundo fosse uma folha de papel a sobrevoar o vazio.
Pronto. Começámos, ainda que atabalhoados pelas diferenças de fuso horário, pelo princípio


Mas regressar aos confins da história do planalto, exige uns cinquenta quilómetros de regresso abrupto ao presente, uma intrusão  insolente de realidade, de ruídos de uma vida sofrida, favelas com os teleféricos como o novo instrumento de inclusão, que transporta o povo pelas encostas abaixo para participar na construção do dia mexicano, os muros brancos das bermas das autoestradas que são uma cacofonia de animais ferozes, de manifestos políticos, de publicidade a produtos de consumo ou de serviços de aconselhamento.
O autocarro regressa cheio à metrópole, e regressa também a intensidade dos cheiros, a azafama das pessoas, dos vendedores ambulantes com as suas trouxas, dos engraxadores de sapatos, das taquerias de rua, umas nos passeios, outras nos cruzamentos sobre o asfalto, quer os semáforos estejam verdes ou vermelhos, ou apenas transeuntes que se agitam nas bermas da estradas e das ruas, nas escadarias do metro, sempre sem tropeçar no comércio que alimenta milhões e dá de comer a muitas centenas de milhares.
Assombroso, impossível de parar de tão intenso, tão esmagador, que te empurra na frente deles e te transforma em poucas horas em mais um chilango entre milhões,  mais um entre iguais, porque é assim que eles sempre nos olharam, talvez por termos aprendido rápido a sair a correr das carruagens do metro sem ficar entalados nas suas portas que não esperam por ti, europeu habituado a um longo normativo de conformidade que te protege em todos os cenários de aperto.
Aqui, na vertigem do tempo e do espaço que escasseia, não há tempo.
Mas no mercado de San Juan, o tempo pausava, o mel sabia a café e o ceviche que vinha do mar, cheirava a maresia, apesar de tão longe do mar, apesar de tão longe do campo, tudo era genuíno nas mãos e nos olhos do Victor, antes o Victor de Acapulco, agora o Victor o Sereio, sim, o Victor como o masculino de Sereia.
Como o Miguel, quando nos encheu as mãos de gomas e de bolas de chocolate e a boca de provas de doces, sem saber se nos venderia algo, e nos pedia desculpa de não poder fazer mais desconto.
Ou como os cantores informais que tinham a voz, como instrumento único, e que pediam emprestado o som a uma coluna de potência indeterminada, mas não poupavam a voz e o coração que dela saia.
Na cidade todos, mesmo os cantores, parecem cantar mais alto e ao desafio, é uma alegria desenfreada para quem quer sobreviver. E quando voltamos à rua, para visitar a biblioteca Vasconcelos, percebemos que a cidade é esmagadora, até no silêncio e nas linhas arrojadas de sua arquitetura contemporânea, um silêncio sepulcral, um espaço publico onde os livros se encavalitam nas prateleiras metálicas que forram o espaço que as pessoas consultam sem a presença de bibliotecários, apenas com uma simples revista na porta de saída.
Mas alguns refugiam-se na biblioteca Vasconcelos apenas para descansar uns breves minutos da vertigem que é a urbe.
Sim, o povo canta alto para não chorar
Como os mariachis da praça Garibaldi.