Os maias acreditam que regressam dos mortos depois de uma viagem de meses através do infra mundo
Não acreditam na reencarnação, mas acreditam que o espirito ou a alma voltam de alguma forma ao nosso convívio, desde que não te esqueças deles. Por isso insistem em lembrá-los!
E é por isso que festejam o dia dos mortos.
Em San Juan Chamulla, festeja-se o dia dos mortos no cemitério da aldeia e a tradição é uma mescla de religiosidade católica e de crenças maias e a manhã do primeiro de novembro no cemitério é uma experiência de todos os sentidos.
Primeiro visto de cima, parece um formigueiro de gente e sons de bandas mariachis, num terreiro desordenado e sem cercas, onde se destacava uma igreja em ruínas, vitima de um terramoto fulminante que a deixou sem remédio a ela e aos quatro santos que lá viviam, estes últimos sobreviventes do terramoto mas severamente punidos pelos aldeões, porque foram incapazes de proteger a capela.
(Hoje jazem na nova igreja com os braços amputados e sem direito a veneração dos fieis).
Visto de cima, só se percebe que estamos sobre o cemitério, porque era pressuposto ser esse o nosso destino.
Não existe uma definição precisa de campas. por definição não existem túmulos de pedra, são apenas montes de terra, com a forma de ventre materno, o ventre da mãe terra, e apenas os mais católicos guardam os seus mortos debaixo de estruturas construídas, uns uma espécie de lápides, outras uma espécie de albergues, ou mesmo casotas, que delimitam a propriedade de cada defunto.
Mas quando descemos ao nível dos mortos, antes das almas regressarem do infra mundo e voltarem a pairar sobre a cabeça dos familiares que os homenageiam e recordam, desfazemos as duvidas que caminhamos sobre os mortos, porque pisar as campas não é desrespeito, mesmo que algumas campas estejam delimitadas por pequenas sebes de flores e outra vegetação que cruzamos com pudor mas sem dificuldade.
Os tsotzils (é este o nome da etnia que habita Chamulla) falam exclusivamente a língua deles e falam alto, reconhecem os familiares e os amigos e, supomos nós porque não deciframos a sua língua, folheiam as memórias dos antepassados enquanto depositam oferendas, comida, flores e coca-cola nos seus túmulos e continuam uma alegre cavaqueira, não pestanejando sequer, perante a nossa presença e o nosso excesso se pudor.
O espaço não é limpo, mas mesmo a desordem que reina sobre as campas, sobre as famílias que se empoleiram por cima dos mortos ou em redor das bandas de mariachi que são pagos para atuar em concertos de música popular dedicados aos familiares defuntos, parece ser parte essencial do ritual.
As cruzes são os únicos sinais que identificam os defuntos e as cores têm significados muito próprios, as brancas dizem respeito. a crianças, as negras identificam os mais velhos.
As famílias inteiras ignoram-nos na nossa falta de jeito em nos querermos integrar nas suas celebrações dos mortos deles, mas talvez eles sejam apenas as leoas que, no seu espaço de conforto, brincam com as suas presas, quando pressentem o medo, antes de as comer.
Com as devidas distâncias, entenda-se, nós somos apenas a contrapartida voyeurista dos seus rituais, que eles acreditam que precisam de ser contados ao mundo, nas não mostrados, para assim inspirar temor e o respeito, o ambiente é de uma festa controlada, mas descontraída.
Na porta da igreja de Chamulla, rebentam os foguetes sobre as nossas cabeças ,sem aviso prévio, como se eles estivessem a testar a nossa resiliência, antes de permitir a nossa entrada no templo único da realidade de Chamulla , uma absoluta demonstração da fé mestiça.
Ainda antes de transpor a porta, largam as cordas do sino da igreja e, por pouco, não nos atingem, eles riem-se do nosso inesperado, afinal de contas fazer tocar os sinos a rebate a partir do meio da praça, agora que se afastava o meio-dia, não é afinal comum, no nosso imaginário religioso.
Mas a comunidade de Chamula também não é comum.
A igreja de Chamulla estava hoje menos cheia que o habitual, mas vivia-se o mesmo ambiente de espécie de transe de fé, o chão coberto de caruma que facilita a comunicação com os quase duzentos santos, os rituais das velas acesas junto ao altar, cada cor de vela tinha associada uma razão para a homenagem ou pedido de ajuda aos santos, e um fumo espesso pairava sobre os santos múltiplos ou sobre o altar, onde um dos santos tinha a cabeça tapada porque hoje não era o dia indicado para aquele santo ser visto pelos mortais.
É uma igreja sem lugares sentados, como se não fosse compatível a devoção com o conforto, e expõe com o direito de renuncia, os três elementos para eles dissonantes, mas representativos da fé católica, a cruz, que representa o sofrimento. a pintura do dilema entre o céu e o inferno, que os crentes de Chamula não creem e a pia batismal, que representa a repressão decorrente da evangelização forçada.
Em San Juan de Chamula, as famílias de estatuto e recursos na aldeia tomam conta de cada um dos muitos santos da igreja por um ano, uma despesa que não está ao alcance de qualquer um, mas representa uma honra irrecusável que proporciona estatuto, mas também poder, numa comunidade em que o Estado parece não ser bem vindo, o conselho de anciãos substitui o município e a polícia é substituída por uma milícia local.
Como os curas da igreja a quem todos se dirigem. quando têm uma enfermidade e as mais difíceis são as doenças sobrenaturais (por contraponto as naturais) apenas resolúveis com o sacrifício de, pelo menos, uma galinha.
Mas hoje, dia de celebração dos mortos, a igreja não estava cheia e nenhuma galinha se apresentou hoje para sacrifício involuntário.
É uma comunidade desconcertante, que rejeita as formas e os rituais da igreja católica, porque impostos por um povo invasor, mas adota a Coca Cola como um dos elementos centrais dos rituais religiosos, rejeitam todos os rituais da igreja católica exceto o batismo (apesar de o associarem a este sacrifício imposto pelos espanhóis aos indígenas, portanto um mal necessário, para poderem aceder aos múltiplos santos que veneram especialmente a São João Batista, o santo maior, mais venerado que Jesus Cristo), não se casam e permitem a poligamia por parte dos homens, não aceitam cultos alternativos, como os evangélicos, nem as uniões de facto com parceiros de outras comunidades.
Como não permitem que os fotografemos, pois eles acreditam em algo parecido com a ideia de que os espelhos das maquinas lhe roubam as almas.
É uma comunidade de múltiplas camadas, em que não existe uma lógica cartesiana que a defina, rejeitam tudo o que lhes pretendem impor de fora por isso rejeitam também os zapatistas. que iniciaram a sua "luta de libertação " em 1994 nestas comunidades, apesar destes terem iniciado esta revolução tentativa, com o objetivo de emancipar os povos indígenas do poder central e invasor
Conforme opinava Raul, esta comunidade é um mundo à parte, mesmo na muito particular região de Chiapas, cujas comunidades falam quase uma dúzia de dialetos e em que as velhas tecedeiras da aldeia vizinha de Zinacantam diziam ser bom falar com ele em espanhol para poderem aprender, falamos mas não lemos nem escrevemos, exprimia-se ela num espanhol sofrível.
Mas neste sábado de manhã do dia um de novembro, é verdade que entrámos numa realidade paralela, resultado de séculos de choque, mas sobretudo de harmonização de culturas.
Mas neste sábado de manhã percebemos que, independentemente da forma como cada mexicano interpreta os rituais da religião, todos os mexicanos têm uma relação muito distinta com a morte, daquela à qual somos familiares.
Como disse o poeta Pablo Neruda, se nada nos pode salvar da morte ao menos que o amor nos salve da vida.
Naquele sábado de manhã, nada me pareceu mais verdade.




Sem comentários:
Enviar um comentário