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quinta-feira, 27 de novembro de 2025

La Llorona

 

Na calle da República da Guatemala, os dois mendigos estavam deitados na berma do passeio cobertos por uma mesma manta, tapavam-se até ao queixo e conversavam animadamente sorrindo de boca desdentada.
A multidão das nove da manhã, caminha com a pressa de quem vai trabalhar, e também há colarinhos brancos no centro histórico, mas também de quem não quer dar pela presença dos dois homens deitados na berma do passeio, mas também eles não parecem dar pela presença da multidão, uma indiferença recíproca, aliás muito justa. 
Eles também riem para sobreviver na manhã amena, a olhar o céu entre as sombras dos prédios.
Um pouco mais á frente, a freira de azul-bebé e mascara preta vendia bolos secos encostada ao prédio, enquanto o resto da cidade se agita na manhã precoce, entre bancas de rua que vendem fritos que cheiram a pequeno almoço e uma pick up da policia que circula velozmente, com dois policias em pé na caixa aberta traseira.
Ao nosso pequeno-almoço trocamos panquecas e café de olla com a história recente do México, afinal de contas o café Tacuba é um café histórico, uma conversão de um antigo convento em 1912 , certamente expropriado à igreja pela revolução.
Uma imagem feliz do México, um país sempre em revolução, mas que, no seu íntimo, só quer viver feliz, livre e com estilo, como o café histórico de Tacuba.
E, como sempre, também hoje, o Zocalo mantém-se agitado, convertido em marcha de policias ou de manifestantes ou apenas de transeuntes apressados.
Mais quinze minutos de metro, e mudamos novamente a perspetiva enquanto as primeiras carruagens, só para mulheres e crianças até treze anos – para as proteger de uma praga chamada assédio - passam por nós, na plataforma, a caminho de Buenavista e nós a questionar (sempre a questionar, quais mentes inquietas!)  se o assédio começará tão cedo assim, treze anos não é mais do que uma adolescência moderada.
E a nova perspetiva de regime desfila nas salas do museu de antropologia e neste magnifico edifício dos anos sessenta do século passado, a História é mostrada da forma como o México moderno escolheu para afirmar a sua identidade, em que o regime do partido quase único que herdou o centralismo dos séculos anteriores em décadas no poder absoluto se vê (mais do que isso, se projeta) transfigurado no mundo azteca e ao contemplar-se, afirma-se.


Procurando não pensar que parece ter sido uma profunda angústia existencial que levou os poderosos aztecas a entregar-se, de uma forma dócil, ao sacrifício coletivo.
Portanto, regressados outra vez ao contraditório, quer  evoquemos o destino deles quer a sofisticação do património construído.
E, sem dúvida, ao esmagador que nos habituou a cidade.
Mais tarde, em Xochimilco, as últimas superfícies aquáticas que sobreviveram aos séculos de aterro do lago salgado, abandonamo-nos ao lúdico e ao universo do fantástico e das lendas e aprendemos que o axolote, um anfíbio pouco dotado para a beleza e para a utilidade prática, é,  afinal de contas um ser humano que, ao transformar-se, procurava fugir aos sacrifícios humanos maias, apesar de haver quem diga que os humanos se sacrificavam voluntariamente, especialmente se eram derrotados de guerra
Apesar deste caminho para a liberdade, o axolote não tem tido vida fácil, especialmente desde que descobriram que o mesmo possui propriedades curativas contra o cancro e a favor da vida eterna.
Na ilha das bonecas choronas, um velho local terá encontrado uma criança afogada nos canais e, para acalmar os espíritos, juntou uma grande quantidade de bonecas para acalmar os espíritos, que pendurou nas árvores de uma ilha desabitada.
O velho morreu, mais tarde, na ilha das choronas, em circunstâncias misteriosas.
Na voz dos mariachis que nos abordaram, no seu barco a remos, ecoavam os sons aflitos de Chavela Vargas e, sem surpresa, ouvimos La llorona, o último latido da água.
E o miúdo que remou como um herói três horas a fio, recebeu a nossa propina e beijou as notas de pesos enquanto se benzia de gratidão como se o universo tivesse sido criado com um propósito divino, e tudo o que acontece ser bem capaz de fazer parte desse plano. 




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