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domingo, 11 de fevereiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #7 - O imperador do Jade

 

Sufoca-se na manhã da estação seca, e estamos decididamente no Sul, porque o Sol brilha finalmente sem filtros e não chove de madrugada sobre os telhados de zinco, não há neblinas matinais que nos protejam da paisagem, as cores do meio do dia são cruas nas calçadas da capital do Sul, onde não existem bairros antigos e as avenidas são desenhadas a régua e esquadro, e atravessar a grande avenida é um grande suor frio porque, na metrópole do Sul, nós não fazemos parte da paisagem, e temos de impor a nossa presença  para avançar, um braço levantado, um passo autoritário e um risco efetivo de ser atropelado.
E a avenida Dien Bien Phu tem uma placa central, que nos permite ganhar fôlego, é significativo que seja aqui que a batalha que humilhou os franceses seja uma artéria central da antiga Saigão. 
No mundo real, a toponímia tem um lugar de destaque na afirmação do poder e na escolha dos que merecem ser heróis.
E, na cidade do cimento e do calor intenso que não é, contudo, suficiente para atrasar o movimento dos seus frenéticos habitantes, o reino do simbólico coabita sempre com a premência do mundo real, nos pequenos jardins incrustados nos prédios que crescem em altura com a mesma urgência com que toda a Ásia se pretende afirmar no mundo. 
No Templo do Imperador de Jade, o rei de todos os céus, os guerreiros de papel de mate mataram o tigre branco e o dragão e encarnam o Bem contra o Mal. 
É um templo Taoista, portanto tão laico quanto Confúcio, mas tão próximo de Buda, desde que a espiritualidade não comprometa o realismo social, apesar das pessoas rezarem aquilo em que acreditam, sem ter necessidade de o revelar, e a liberdade da forma de exercer o culto é maior que a própria liberdade de culto que o socialismo tolera.
Dai o Bem serem os guardas do palácio e o Mal serem animais ferozes. 
De regresso ao mundo do real, os símbolos são substituídos pelas memórias em carne viva de um período da História em que os ruídos de guerra silenciaram a espiritualidade, afinal de contas sabemos todos que a meditação e a cultura do espírito são um privilégio dos tempos de paz.
A punição dos vencidos está estampada nas atrocidades expostas no museu das memórias de guerra e fiquei na dúvida se o museu da guerra era também um requiem e um manifesto pacifista de reconciliação ou apenas uma punição aos vencidos. Demasiado visual para um requiem, presumo.
Como a mudança de nome da antiga capital do Sul.
Como a presença muito mais explícita, nos muros e nas fachadas, do poder dos senhores do Norte, da memória de Ho Chi Min, o ideólogo de um país que não foi uno, durante a maior parte dos seus séculos da sua História.
Apesar da nova alma de Saigão que se mostra na irreverência de uma tradição mercantil, com mundo e com pressa de alcançar uma vida revestida a ouro. E, talvez por isso mesmo!
A grande metrópole do Sul já está desperta, há muitas décadas, para a abertura económica que o regime decidiu implementar. Por decreto, diria, mas a nova elite percebeu, tal como noutros lugares da Ásia do Dragão, que é possível ter sucesso e ser rico e, em simultâneo, não se questionar um regime de partido único, como se a vida deles vivesse bem com estes , e a política e o poder fosse um exercício que deveria ser deixado a outra elite, afinal de contas porquê defender diversidade e democracia, se a nova elite económica pode fazer tudo aquilo que o dinheiro lhe permite?
E, no rooftop do Hotel MGallery, levita a gente bela da metrópole, hoje não há correspondentes de guerra nem conselheiros militares, apenas música, álcool, corpos que dançam e transpiram ambição e atrevimento.
Sem censura, de facto, e com vistas largas sobre o calor da noite e as regras do regime são apenas mais um ritual laico que, talvez nem mesmo Confúcio, se opusesse, em prol da harmonia e do desenvolvimento.
Ao nível da rua, os menos afortunados desta nova época do enriquecimento lícito sobre a proteção de uma oligarquia esclarecida, desbravam todos os dias novos caminhos, subindo as suas motas pelos passeios deixados vagos pelas hordas da cidade, até porque aqui (ao contrário da verdadeira capital do país) a rua é apenas para circular não para viver, para comprar e vender ou para prestar homenagem aos antepassados.
Por isso mesmo se entende que a alma do Vietname não vive em Saigão. 
Vive provavelmente em Hanói, mas Saigão tem a alma da nova Ásia, sôfrega, intensa e provavelmente sem tempo para a espiritualidade das suas origens e da sua religião, piedosa, popular e livre.
E, talvez por isso, a cidade tem uma extensa rua dos livros, cheia de livros e imagens publicadas no Instagram, mas também a única rua da cidade cheia de ninguém. 
Ao longo do roteiro das religiões, os templos que professam fé e não apenas princípios filosóficos de vida, escondem-se nas outras exuberâncias da urbe, uma catedral cristã encerrada para renovação, um templo hindu de uma minoria a quem falta a força de culto e o cheiro dos incensos, porque o regime é laico e aqui, no Sul, encara-se a religião piedosa e solidária como um empecilho ao desenvolvimento e os antepassados não lhes trazem, necessariamente, boas memórias.


Na estação dos correios, construída pelo inefável Eiffel, uma demonstração de modernidade e de dimensão ultramarina do colonialismo europeu em início de decadência, que o novo regime mantém viva e em funcionamento, até por motivos práticos, é importante não perder o controlo da dimensão do país, escreves postais que provavelmente nunca vão chegar ao destino, somente porque já não conseguimos resumir os nossos sentimentos num pedaço de papel ou cartão, e os zelosos funcionários presentem-no.
Sempre debaixo da proteção suprema do grande líder, pintado sobre as nossas cabeças. Sobretudo uma manifestação de pragmatismo de um regime que não destrói as realizações dos antigos senhores, apenas as coloca sob vigilância permanente do grande líder, ou talvez apenas daquilo que ele representa.
Nesta descida vertiginosa às entranhas da cidade, aterramos no espaço apertado entre uma longa fileira de mesas de plástico que invadem as ruas (afinal, se bem que esporadicamente e em lugares controlados, os habitantes de Saigão também ambicionam viver na rua) a partir das cozinhas comunitárias com vista para a cidade e para as pessoas, entre caldos fumegantes uma longa lista de pratos de tradução impossível mas com sabores conhecidos no prato, uma cerveja de lata e gente  que fala uma língua que só eles entendem, porque é local e a certeza de que o vietnamitas da cidade, os que invadem os passeios com as suas frenéticas motas, também têm vida para além do movimento e, como dizia o presidente amigo que comia Bun Cha no restaurante de Hanoi, no fundo todos os povos anseiam o mesmo.
Mais tarde, no Noir, às escuras e em silêncio, servidos por cegos, demasiado novos para serem vitimas da guerra, mas possivelmente vitimas de doenças congénitas provocadas pelas experiências químicas do Tio Sam nesta terra longínqua, ou apenas cegos que trabalham numa nova experiência de gastronomia sensorial, onde vivemos uma experiência de degustação pura, sem distrações visuais, apenas sabores transformados em sucesso empresarial, “ não somos uma instituição de caridade, somos um negócio, todos são pagos e têm proteção social”, um produto da abertura económica com sabores do Vietname.
É uma sublime experiência de degustação e mais uma lembrança dos guerreiros e dos animais ferozes.
Assim se vive na cidade que sonha com a emancipação.
Apesar de supervisionada pelos quadros pintados do grande líder.
Apesar do grande líder se ter apropriado, por precaução, do seu nome próprio.



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