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sábado, 17 de fevereiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #9 - Silver Pagoda

 

Phnom Penh é uma cidade de muitos momentos e desconstrói-se a partir do buraco negro que foi a passagem de Pol Pot e dos seus camponeses soldados, pela cidade, e que a deixou desabitada.
Por isso, os momentos de Phnom Penh transportam-nos amiúde ao passado, a um passado antigo, faustoso e real, de cumplicidades ambíguas, é verdade, e a um presente apressado que ganha forma na urgência em construir uma urbe moderna e reverenciada na Ásia do futuro.
E depois há os momentos que se deixam captar, enquanto eles tratam de esquecer o buraco negro e enquanto as torres de vidro não cobrem todos os locais com vista para o Mekong, já que o Palácio Real e a marginal da nova nobreza têm, para já, o domínio da margem do rio Tole Sap, ou melhor, da confluência dos rios.
E em Phnom Penh voltou a chover. Chegámos a um Sul que chove, será da confluência de tantas águas, quatro rios que se juntam precisamente no coração da capital kmer, e aqui chove às barcaças, daquelas que esgotam o céu e limpam o ar.
E o primeiro momento foi o ar fresco que nos bafejou a cara, mal saímos do autocarro que nos trazia da fronteira. 
Essa mesma corrente de ar tropical que iremos levar connosco, em todos os tutuque do Camboja, que nos ajudará a absorver os ruídos, os cheiros e os sorrisos de todo um povo. 
Naquela noite levaram-nos para a Preah Monivong Boulevard, pelas artérias lavadas pelos dilúvios de estação seca, um pouco abaixo da esquina com o Boulevard De Gaule e os vestígios de um colonialismo indolente para com a periferia, guardam o silêncio da noite como se Phnom Penh fosse apenas um refúgio de todos os fantasmas das grandes metrópoles do Vietname.
E, no calor refrescante da noite, saboreámos os cheiros da ruralidade nas ruas desertas, na cozinha ao ar livre onde o patriarca amassava a massa fresca, e o resto da família inteira a partilhar o sorriso das crianças nos mesmos pratos onde serviam as refeições, e nós que já tínhamos antecipado que os momentos da capital do Camboja começavam logo na fronteira, nas paredes de um azul intenso da terra de ninguém, enquanto aguardávamos que os passaportes regressassem carimbados e com os vistos, enquanto engolíamos um arroz tão desdenhoso quanto o olhar de quem o servia.  
Foi preciso nascer o Sol do dia seguinte para que a cidade nos revelasse a hierarquia com que se propõe construir o seu futuro, a partir das margens do rio em direção aos subúrbios, sim, a família real e os despojos do império kmer – que nem os kmers vermelhos foram capazes de destruir – dominam a vista do rio, do alto dos seus pagodes da pompa, do luxo dourado e e da residência real,  um símbolo que todos reconhecem ter pouco valor prático mas que ajuda a criar um sentimento de pertença, tão necessário num país que poderia nunca ter sido mais do que um acidente histórico, engolido pelos vizinhos impérios dominantes, encarcerado nos confins periféricos de um império colonial ou quase extinto por umas dezenas de meses de loucura homicida, tudo em sequência, não foi uma opção de escolha múltipla escolha.
Não muito longe dos rios, vivem as grandes avenidas que a miraculosa democracia do Camboja, parece ter reservado para o desenvolvimento económico e para a especulação imobiliária, onde coabitam os vestígios de uma arquitetura colonial francesa ( e, surpreendentemente, depois do dia nascer, mantém vestígios de ruralidade na vivência das pessoas, nas ruas mais estreitas e ainda bordejadas por árvores, que até talvez sejam centenárias) e as novas torres de vidro e betão que concorrem para pilares dos céus, uma imagem de marca e, nesta zona de disputa pelo terreno, é muito provável que a história e a tradição sejam submersas pelos buldózeres do progresso
E, claro, muitos guindastes nos ares, uma garantia de que a cidade do meio (tal como império do meio) estará irreconhecível a um curto prazo.
 Longe dos rios e das grandes avenidas vive a cidade tradicional, pobre e distante dos boulevards, das residências da especulação imobiliária e da ambição kmer de que Phnom Penh esteja no mapa das metrópoles asiáticas e que mais ninguém se atreva, sequer, a pensar em esvaziá-la porque a sua multidão não o consente.
Na cidade onde vive o povo, o alcatrão das ruas é intermitente, domina o primado da auto construção ou da construção remendada e de materiais de uma menor escolha, o traçado não é linear e cada curva ou estreitamento de via – tal como os solavancos dos buracos na rua e as paredes descascadas pela chuva – são resultado da persistência e da vontade de viver de quem – tal como no resto da Indochina de partido único – sabe que não há nenhum Estado Social por perto e que a sobrevivência na avalanche do progresso, exige muito esforço e uma relativização pragmática da perfeição.
Neste pedaço de caos, jantamos longe do glamour da gente bonita da marginal e, bem assim, longe da massa feita à mão, nas traseiras das grandes avenidas, onde resistem os edifícios térreos, mas de traça nobre e colonial.
Nos subúrbios onde vive o povo, o jantar é de caldeirada de sabores da confluência dos rios,  duas panelas de pedaços de peixe imersos em espuma e verdes, que podiam ser couves, mas não são,  e demasiadas meninas para nos sorrir, que nos servem de guias para o mundo de uma culinária esforçada, de um karaoke com sabores orientais e sabe-se lá mais do quê se, alguma vez, os olhares se viessem a cruzar, mas, aleluia, não, voltámos ao pacífico boulevard, dentro de uma van que resistiu com dificuldades à sua idade, aos buracos do alcatrão intermitente, à escuridão e às curvas dos bairros populares de Phnom Penh, uma cidade que só o nome inspira exotismo e mistério.
Pelo menos naquela noite escura, às voltas nas entranhas da cidade.
No fim da noite, o tailandês ganha o combate de Mai Tai, comprometendo a versão de que a verdadeira origem desde boxe sem regras é Cambojana (ou apenas mais uma prova de que os mais fortes tendem a dominar o espaço no sudoeste asiático ).
Não fosse o Sião a besta negra da ambição kmer.
E quando voltamos à estrada à procura dos vestígios dos tempos áureos da civilização Kmer, reconstruímos meticulosamente os últimos momentos na cidade, um trânsito que aquece com o dia, com a intensidade das obras e com os engarrafamentos nas avenidas, quase proporcionais ao tamanho dos arranha-céus que brotam das suas margens, só os edifícios do Estado mantêm a traça colonial e os espaços exteriores generosos, nesta placa tectónica instável que é a urbe do meio e a visita à escola da Martina
A escola de ourivesaria da Martina é uma tentativa de proporcionar a aprendizagem de ofícios especializados a jovens de famílias pobres, mas o resultado parece ser o de uma derrota da boa vontade e do voluntarismo europeu contra os caminhos de vida mais óbvios e imediatos e uma desconfiança natural de tudo o que lhes é dado por europeus distantes.
E, enquanto procurávamos resistir ao sinistro mercado das aranhas, impingidas à beira da estrada como uma indelével nova experiência de vida, concluíamos que provavelmente o assistencialismo dos países doadores não resolve o que a vontade própria dos povos não constrói.
Provavelmente resultado de uma diferença insanável, de perspetivas
E, cansado de tanta reflexão, adormeci na estrada à espera de um café que nunca mais chegava e desisti de aprofundar o real papel do rei Shianouk na história do Camboja.
Ambiguidade, foi a última palavra de que me lembrei, antes de adormecer
E sonhei com crepes de banana, uma verdade palpável do Camboja



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