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sábado, 24 de fevereiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #12 - O Império da Água e do Ar (Gods, Kings and Heaven)

 


Acordámos de noite em Siam Reap, todos os dias acordámos de noite, porque nos asseguram que os momentos mágicos acontecem na selva ao amanhecer.
E a noite em Siam Reap é fria, nos focos de luz branca dos candeeiros de rua, intermitentes, nas correntes de ar que envolvem os tuk-tuk, que nos arrancam ao sono interrompido pelas ruas poeirentas da cidade até nos entregar à mãe natureza, precisamente antes do amanhecer de cores quentes à beira da selva.
E os quatrocentos quilômetros quadrados de selva plantada de templos de pedra são uma promessa cumprida, não há um ah mas, nesta alta densidade de magia pura, um privilégio muitas vezes traído quando as obras primas da humanidade se transformam em atrações turísticas.
 Mas aqui, na selva de Anghor, o silêncio sobrepõe-se às multidões – o silêncio impõe-se, apesar de sermos milhares, mal o lençol de escuridão é perfurado pela neblina do amanhecer - que se recolhem em contemplação das figuras esculpidas na pedra, dos troncos de árvore que absorvem a energia das colunas de pedra para continuarem a crescer, e das sombras que realçam as formas das divindades e nos convertem em crentes. 
E confirmamos que os momentos mágicos acontecem ao amanhecer e nem as correntes de formigas assassinas que ligam todos os locais sagrados do templo das raízes das árvores, o Ta Prohm, nos retiram serenidade e a certeza cósmica de que percorremos um lugar sagrado, mesmo que não tenhamos – enquanto os nossos olhos trepavam pelas raízes das árvores centenárias - uma visão clara do que é que isso significa.
Em Ta Prohm, no reino das árvores, sentimos o sereno amanhecer de um encanto assombrado, numa aureola romântica intocada pelo tempo e pela intervenção humana, que se entrelaça a nós, sempre que lhes viramos as costas.
É a primeira fotografia, a imagem que ficará impressa na pedra das nossas memórias, é muito mais do que um bilhete de ingresso, estamos mesmo a passar a fronteira para o passado, e a nossa foto no papel acartonado é a garantia de que teremos memória quando regressarmos das profundezas do império kmer. 
E, os quatrocentos quilómetros quadrados de passado, com dezenas de templos com nomes como Ta Prohm, Banteay Srey, Prasat Preah Neak Pean, Prasat Peah Khan, Anghor Wat, Prasat Bayon, ajudam-nos a corporizar a ideia de um império, construído e mantido sobre os alicerces do simbólico.
Duzentas e sessenta estátuas de deuses e trinta e nove torres com pináculos depois, voltámos à estrada, o sol aquecia a corrente de vida que envolvia os tuk-tuk, uma espécie de cápsulas que viajam no centro do mundo, entre o passado e o presente, que absorvem os sons das crianças que regressam da escola, dos mercadores que procuram dar um sentido à sua vida, na beira da estrada, e os cheiros da estrada poluída, da selva verdejante, dos fumos que emergem no verde e no castanho, afinal na beira da estrada também se cozinha, para toda a nova vida que povoa as ruínas do passado kmer. 
E, entretanto, o amanhecer transforma-se numa clareira inundada de um Sol inclemente, mais a norte no quadrado místico de Anghor e a selva despe-se para que a cidadela das mulheres se mostre ao mundo em todo o seu esplendor rosa, Banteay Srei é um palácio de fadas com paredes decoradas com figuras desenhadas numa pedra rosa que brilha com as miragens de um calor que não tem sombra, porque aqui, a floresta se encolheu à beleza das mulheres esculpidas no quartzo arenito.
O amanhecer desapareceu e a magia do princípio da tarde é exibicionista, e a luz desvenda as histórias do imaginário hindu, histórias de deuses e demónios, e começamos a acreditar que o lugar é sagrado pela intensidade da fé que emana, como se os seus reis se tivessem submetido à vontade do divino, em todos os atos de construção, conquista e desenvolvimento do império.
E, uma vez mais, regressámos ainda de noite à busca dos quatro elementos do corpo, a água, o fogo, o vento e a terra
E imergimos no nascer do Sol sobre Anghor Wat, sabendo que o corpo perde equilíbrio quando falta um dos elementos.
E o mar cósmico cerca Anghor Wat, o maior templo religioso do mundo. 
Nasceu hindu que era a crença das elites, uma religião que favorecia o papel dos soberanos como intermediários entre os deuses e os homens. 
Tal como as origens do Império Kmer nos remetem para migrações de príncipes da península indiana.
Converteu-se ao budismo, a religião da compaixão e do povo, porque o povo precisa da compaixão do rei, influência da vontade do povo à mãe natureza mas, sobretudo, do poder e da ambição dos Impérios vizinhos.
E hoje, nas galerias dos templos de Anghor desfilam as histórias do imaginário hindu, os dilemas morais entre deuses e demónios, a casa de Vishnu e também Buda nas múltiplas posições: Buda em nirvana, ou ensina os discípulos ou está em meditação e a ser iluminado ou a demonstrar coragem sem medo
No templo de Bayon o grande rei Jayavarman VII fez a síntese das duas religiões nas quatro caras de Buda em cada uma das torres representam a caridade, a empatia, a compaixão e a igualdade 
E no terceiro nível de Anghor Wat,  trinta e sete degraus chegam para alcançarmos a sabedoria de Buda e a camada celestial por isso nenhum edifício construído pode ser mais alto do que os três níveis de anghor
Foram seis seculos gloriosos na história dos kmers, os únicos aliás. 
Impressiona o que construíram, mas também a manifesta falta de conhecimento de como viviam, do que construíram e de como entraram em decadência, e porquê 
Talvez porque o poder do império fosse menos militar do que simbólico e religioso. 
Talvez porque a selva e os pântanos foram mais fortes que a ambição de manter um Império que, no século doze, excedia em muito o que é hoje o Camboja. Catástrofe ambiental segundo a linguagem de hoje que despovoou a capital do mais poderoso império do sudoeste asiático. 
E, apesar da elaborada teoria da conspiração do nosso guia kmer, que atribui todas as desgraças do Camboja aos vietnamitas e seus ascendentes, foi o Reino de Sião que mais fustigou os Kmers com invasões e saques, provavelmente o maior contribuinte para o abandono de Anghor como capital do império e o abandono do império às mãos das potências estrangeiras. 
Até hoje, diria.
Em 1431, mais década menos década. 
The heaven in earth, enquanto durou



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