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terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

WAY TO INDOCHINA #15 - A aldeia do Mr. Hook

 


Na aldeia do Mr. Hook vivem oitocentos e dezassete almas animistas um sistema de crenças pouco organizado, característico das sociedades primitivas que acreditam que as coisas têm espíritos ou alma. 
(e nove católicos, e nem todos se dão bem e respeitam as respetivas crenças, somos muito desconfiados) 
Chegámos sem perceber nada do que nos rodeava naquela aldeia do planalto de bolaven e saímos dezasseis horas depois tão ignorantes " You don't know nothing" respondia Mr Hook perante a nossa indisfarçável ignorância da medicina tradicional enquanto recolhia amostras na farmácia do tio, um terreno que, aos nossos olhos era um baldio, mas as mãos dele descobriam raízes que curavam dores de cabeça ou vómitos, davam alta as grávidas numa semana e matavam todos os piolhos das cabeças das crianças. 
Era noite profunda quando imergimos no mundo rural do Laos, das múltiplas etnias que povoavam as zonas montanhosas e que o partido se tem esforçado por as fazer descer aos vales e as integrar numa das três etnias oficiais e levar as suas crianças à escola. 
A etnia de. Mr. H parece ter vindo da Índia e subido o Mekong até ao Laos, sem tempo conhecido. 
Por ser noite, os rituais de iniciação às heranças (ou aos cacos) do animismo, pareciam saídos de um guião de filmes psicologicamente intensos, Mr. H fumando um longo cachimbo de água, Mr. H incentivando-nos a experimentar os vários estágios de evolução do que chamavam de whisky servido em garrafa de plástico a partir de uma planta que não estava plantada no jardim medicinal, mas apenas na beira do caminho, entre uma cafeteira arábica e um campo de mandioca. 
As sombras de uma luz insuficiente diluem as vozes dos espíritos da casa -? estarão eles zangados ou apenas dormentes? , porque todas as almas aqui, fumam desde os três anos para afugentar os mosquitos - os legumes cozidos na mesa lembram que devemos falar com as frutas antes de as colhermos das árvores -  mas a voz hipnótica do Mr. H aloja-se nas nossas memórias, entre as espécies de café e as fases da torrefação, a mãe dele a preparar o cachimbo de água para a versão infantil do Mr. H e, a meio caminho entre as sombras que pairam no grande palanque que é o restaurante do Mr. Hook e uma das suas esposas e o manto de escuridão que cobria a aldeia onde dormia o Chamam, o feiticeiro e curandeiro, os dois chefes da aldeia, o da aldeia para controlar os aldeões e o do partido para controlar o da aldeia. 
E adormecemos no meio da selva, longe da aldeia para que os nossos gritos de solidão não incomodassem os espíritos bons, porque amanhã a aldeia decidiu que é o fim do ano, agora que as colheitas terminaram, e vão começar a matar sete vacas logo pela manhã, em sacrifício para acalmar os deuses e garantir um auspicioso Ano Novo ao longo das oito estações que o ano tem, que incluem a do arroz e do café.
O céu era estrelado e era tudo o que tínhamos para dormir. A aldeia do Mr. H queria ter a certeza que os brancos que nasceram no mundo das máquinas de fazer dinheiro teria estômago logo de manhã para se cruzar com as cabeças dos animais sacrificados, exibidos sem triunfo excessivo na porta dos proprietários.
E, de manhã, entregaram tudo o que noite prometeu, uma aldeia em estado de pré-coma alcoólico pela noite de fim de ano que se avizinhava, os animais devidamente mortos e uma multidão de seres, espíritos, almas e crianças que nos rodeavam ruidosamente junto a um gigantesco trator carregado de som de um parque de insufláveis e um som de uma nova Playlist local que parecia ter eco em todas as casas de madeira que se atropelavam sem uma muito clara interpretação de propriedade. 
E rodeavam-nos sem pudor, com muita curiosidade e até uma certa gula, diria, e alguém lembrou que, há tempos, estes katu, o povo da montanha e do rio, faziam sacrifícios humanos para agradar aos deuses, especialmente nos dias de festividades. 
Assustadora esta aldeia, a seita Katu, os rituais do Mr. H e as histórias que saiam em torrente da nossa mente enquanto os aldeões se riam e o Mr. H nos recomendava que não fotografássemos os anciãos porque, para eles, ao fotografarmos, estamos a roubar-lhe as vidas. 
Tão assustador que revivemos a sua (deles) receita de sobrevivência, em caso de doença grave, árvores medicinais, se não resultar então a médium, se não resultar então magia negra se não resultar então sacrificas um animal, senão resultar então morres
Temos mais opções do que vocês, quando vão ao hospital
E de manhã, o Mr. H antecipou o nosso sono incompleto e os nossos sonhos conturbados, que nos tornaram mais vulneráveis e crentes das suas lendas (ou apenas algumas meias-verdades oriundas de um mundo que já não respira sem ajuda?) primeiro a estória do negócio dos dotes que envolvia búfalos de água, vacas, terrenos e eventualmente motorizadas chinesas como desconto, casamentos combinados aos 5 anos, vá lá, ?a mulher que amas sabe fazer armadilhas?, a beleza não traz comida para a mesa., e se a mulher for boa caçadora então o dote aumenta mas elas nunca darão à luz dentro de casa porque enfraquece os espíritos, e não 
podem falar do futuro em nome próprio porque dá más energias “bad karma, you know?” Pode pensar, mas não pode dizer 
E, depois de nos termos refugiado na van que nos teletransportava desta experiência alucinogénia chamada de Laos rural e profundo no planalto de Bolaven, ainda juntávamos as peças da genealogia da sua família próxima do Mr. H, a mãe que lhe fazia o cachimbo de água, mais tarde o pai não lhe dava tabaco porque ele era preguiçoso e, por isso, fumava uma erva com um nome indecifrável. Uma ruralidade de excessos, pois!
E quando almoçamos, junto às cascatas, longe das garras do Mr. H, sua seita e respetiva aldeia, e perscrutamos os pensamentos do único elefante contemplativo com o qual nos cruzámos no pais de um milhão de elefantes, quase que tive pena dos pobres funcionários do partido que tentam construir um país à partir disto, também eles divididos entre a diversidade étnica que vendem aos ávidos turistas ocidentais e a impossibilidade de evitar que eles tenham uma vida e vontade próprias.
O que o fundador da revolução laosiana idealizava “como um sistema multiétnico no contexto de uma nação unida e indissolúvel “



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