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domingo, 21 de dezembro de 2025

Dia dos Muertos nas aldeias de Chiapas


 Os maias acreditam que regressam dos mortos depois de uma viagem de meses através do infra mundo 
Não acreditam na reencarnação, mas acreditam que o espirito ou a alma voltam de alguma forma ao nosso convívio, desde que não te esqueças deles. Por isso insistem em lembrá-los!
E é por isso que festejam o dia dos mortos.
Em San Juan Chamulla, festeja-se o dia dos mortos no cemitério da aldeia e a tradição é uma mescla de religiosidade católica  e de  crenças maias e a manhã do primeiro de novembro no cemitério é uma experiência  de todos os sentidos. 
Primeiro visto de cima, parece um formigueiro de gente e sons de bandas mariachis, num terreiro desordenado e sem cercas, onde se destacava uma igreja em ruínas, vitima de um terramoto fulminante que a deixou sem remédio a ela e aos quatro santos que lá viviam,  estes últimos sobreviventes do terramoto mas severamente punidos pelos aldeões, porque foram incapazes de proteger a capela.
(Hoje jazem na nova igreja com os braços amputados e sem direito a veneração dos fieis).
Visto de cima, só se percebe que estamos sobre o cemitério, porque era pressuposto ser esse o nosso destino.
Não existe uma definição precisa de campas. por definição não existem túmulos de pedra, são apenas montes de terra, com a forma de ventre materno, o ventre da mãe terra, e apenas os mais católicos guardam os seus mortos debaixo de estruturas construídas,  uns uma espécie de lápides, outras uma espécie de albergues, ou mesmo casotas, que delimitam a propriedade de cada defunto.
Mas quando descemos ao nível dos mortos, antes das almas regressarem do infra mundo e voltarem a pairar sobre a cabeça dos familiares que os homenageiam e recordam, desfazemos as duvidas que caminhamos sobre os mortos, porque pisar as campas não é desrespeito, mesmo que algumas campas estejam delimitadas por pequenas sebes de flores e outra vegetação que cruzamos com pudor mas sem dificuldade.
Os tsotzils (é este o nome da etnia que habita Chamulla) falam exclusivamente a língua deles e falam alto, reconhecem os familiares e os amigos e, supomos nós porque não deciframos a sua língua, folheiam as memórias dos antepassados enquanto depositam oferendas, comida, flores e coca-cola nos seus túmulos e continuam  uma alegre cavaqueira, não  pestanejando sequer, perante a nossa presença e o nosso excesso se pudor.
O espaço não é limpo, mas mesmo a desordem que reina sobre as campas, sobre as famílias que se empoleiram por cima dos mortos ou em redor das bandas de mariachi que são pagos para atuar em concertos de música popular dedicados aos familiares defuntos, parece ser parte essencial do ritual.
As cruzes são os únicos sinais que identificam os defuntos e as cores têm significados muito próprios, as brancas dizem respeito. a crianças, as negras identificam os mais velhos.
As famílias inteiras ignoram-nos na nossa falta de jeito em nos querermos integrar nas suas celebrações dos mortos deles, mas talvez eles sejam apenas as leoas que, no seu espaço de conforto, brincam com as suas presas, quando pressentem o medo, antes de as comer.
 Com as devidas distâncias, entenda-se, nós somos apenas a contrapartida voyeurista dos seus rituais, que eles acreditam que precisam de ser contados ao mundo, nas não mostrados, para assim inspirar temor e o respeito, o ambiente é de uma festa controlada, mas  descontraída.



Na porta da igreja de Chamulla, rebentam os foguetes sobre as nossas cabeças ,sem aviso prévio, como se eles estivessem a testar a nossa resiliência, antes de permitir a nossa entrada no templo único da realidade de Chamulla , uma absoluta demonstração da fé mestiça.
Ainda antes de transpor a porta, largam as cordas do sino da igreja e, por pouco, não nos atingem, eles riem-se do nosso inesperado, afinal de contas fazer tocar os sinos a rebate a partir do meio da praça, agora que se afastava o meio-dia, não é afinal comum, no nosso imaginário religioso. 
Mas a comunidade de Chamula também não é  comum.
A igreja de Chamulla estava hoje menos cheia que o habitual, mas vivia-se o mesmo ambiente de espécie de transe de fé,  o chão coberto de caruma que facilita a comunicação com os quase duzentos santos, os rituais das velas acesas junto ao altar, cada cor de vela tinha associada uma razão para a homenagem ou pedido de ajuda aos santos, e um fumo espesso pairava sobre os santos múltiplos ou sobre o altar, onde um dos santos tinha a cabeça tapada porque hoje não era o dia indicado para aquele santo ser visto pelos mortais.
É uma igreja sem lugares sentados, como se não fosse compatível a devoção com o conforto, e expõe com o direito de renuncia, os três elementos para eles dissonantes, mas representativos da fé católica, a cruz, que representa o sofrimento. a pintura do dilema entre o céu e o inferno, que os crentes de Chamula não creem e a pia batismal, que representa a repressão decorrente da evangelização forçada. 
Em San Juan de Chamula, as famílias de estatuto e recursos na aldeia tomam conta de cada um dos muitos santos da igreja por um ano, uma despesa que não está ao alcance de qualquer um, mas representa uma honra irrecusável que proporciona estatuto, mas também poder, numa comunidade em que o Estado parece não ser bem vindo, o conselho de anciãos substitui o município e a polícia é substituída por uma milícia local.
Como os curas da igreja a quem todos se dirigem. quando têm uma enfermidade e as mais difíceis são as doenças sobrenaturais (por contraponto as naturais) apenas resolúveis  com o sacrifício de, pelo menos, uma galinha.
Mas hoje, dia de celebração dos mortos, a igreja não estava cheia e nenhuma galinha se apresentou hoje para sacrifício involuntário. 
É uma comunidade desconcertante, que rejeita as formas e os  rituais da igreja católica, porque impostos por um povo invasor, mas adota a Coca Cola como um dos elementos centrais dos rituais religiosos, rejeitam todos os rituais da igreja católica exceto o batismo (apesar de o associarem a este sacrifício imposto pelos espanhóis aos indígenas, portanto um mal necessário, para poderem aceder aos múltiplos santos que veneram especialmente a São João Batista, o santo maior, mais venerado que Jesus Cristo), não se casam e permitem a poligamia por parte dos homens, não aceitam cultos alternativos, como os evangélicos, nem as uniões de facto com parceiros de outras comunidades. 
Como não permitem que os fotografemos, pois eles acreditam em algo parecido com a ideia de que os espelhos das maquinas lhe roubam as almas.
É uma comunidade de múltiplas camadas, em que não existe uma lógica cartesiana que a defina, rejeitam tudo o que lhes pretendem impor de fora por isso rejeitam também os zapatistas. que iniciaram a sua "luta de libertação " em 1994 nestas comunidades, apesar destes terem iniciado esta revolução tentativa, com o objetivo de emancipar os povos indígenas do poder central e invasor 
Conforme opinava Raul, esta comunidade é um mundo à parte, mesmo na muito particular região de Chiapas, cujas comunidades falam quase uma dúzia de dialetos e em que as velhas tecedeiras da aldeia vizinha de Zinacantam diziam ser bom falar com ele em espanhol para poderem aprender, falamos mas não lemos nem escrevemos, exprimia-se ela num espanhol sofrível.
Mas neste sábado de manhã do dia um de novembro, é verdade que entrámos numa realidade paralela, resultado de séculos de choque, mas sobretudo de harmonização de culturas.
Mas neste sábado de manhã percebemos que, independentemente da forma como cada mexicano interpreta os rituais da religião, todos os mexicanos têm uma relação muito distinta com a morte, daquela à qual somos familiares.
Como disse o poeta Pablo Neruda, se nada nos pode salvar da morte ao menos que o amor nos salve da vida.
Naquele sábado de manhã, nada me pareceu mais verdade.




A caminho da selva

 


De Oaxaca a Tuxla Gutierrez são mais de quinhentos quilómetros através das montanhas do maciço central, com paragem em Tehuantepec, a cidade que dá o nome ao istmo e, ai, regressam as planícies, as palmeiras e o gado.
E a noite passou-se na estrada, mais de quinhentos quilómetros numa luta entre um primeiro motorista enfurecido e as curvas abaixo, curvas acima, e de manhã chegámos muito combalidos, dois motoristas depois, a Tuxla, a capital de um novo estado.
Chiapas é um mundo diferente de mais de vinte línguas, povos e culturas pré-hispânicas, um velho mundo de rituais e uma nova realidade de revolução zapatista, entrelaçadas por redes de crime organizado, que parecem querer monopolizar os sentimentos de pertença, de comunidade e até a cultura indígena dos povos remotos das montanhas.
Mas entre a primeira parte da viagem, a descida abrupta e em vómito do primeiro motorista até Tehuantepec e a pausa sonolenta dos outros motoristas ao longo das planícies em Juchitan e Ixtepec, pouco tempo nos sobrou na noite, senão para procurar sobreviver à sensação de fronteira e de vertigem.
Dizem as histórias escondidas pela noite que é no istmo que desaguam os pobres dos pobres, vindos dos países vizinhos, agachados pela lama, curvados nos comboios de mercadorias que atravessam o continente em direção ao el dorado que, para muitos, será só uma ilusão.
Mas por volta do istmo, tínhamos acabado de adormecer das tormentas e certamente que os vultos gastos e curvados que vislumbrámos através da janela do autocarro terão sido apenas sonhos de uma mente sugestionada, fantasmas na terra de ninguém.
De manhã, em Chiapa del Corso, vive uma comunidade indígena pautada pela indolência do vale e o clima mudou, instalou-se o calor e a humidade, e também no clima há uma nova fronteira no interior do México. 
E porque nem todas as historias que se contam de Chiapas são histórias, a presença policial e militar tornou-se mais persistente e, porque a realidade em  Chiapas não permite a construção de modelos de realidade absolutos, CERO corruption  era a frase preferida, escrita nas pontes dos viadutos que cruzavam as vias rápidas, nos muros brancos que se confundem com os placards de publicidade da era antiga (as que protegem os que vivem nas bermas das estradas e as vidas das pessoas que vivem nos bairros) ou nos vidros das pick ups da guarda nacional
E nós decidimos dedicar-nos a tarefas mais mundanas e apanhamos um barco a motor para o Canon del Sumidero onde só havia rio, selva, montanhas, crocodilos e montões de lixo acumulados no leito do rio.
Todas as viagens devem ter um momento ecológico, diria o J, e o vento fresco fez bem à minha noite de insónia e vómito.
Ao fim da tarde, voltámos a subir às terras altas, às noites frias, às comunidades indígenas de montanha, aos rostos remotos do isolamento, dos rituais singulares e, esporadicamente, da revolta zapatista.  



sábado, 13 de dezembro de 2025

Dios nunca muere

 


O mercado 20 de novembro está ligado à data de início da revolução mexicana de 1910, apenas por convicção de um grupo de cidadãos que decidiu eliminar o nome original de mercado industria para castigar o petulante ditador Porfírio Dias e restaurar a modernidade neste espaço de cultura e gastronomia Oaxaquena, construído nos finais do século dezanove para albergar os comerciantes da praça de armas, as tradições de uma região inteira e as histórias das vidas de cada dos seus comerciantes.
Não há mercados iguais, nem diferentes,  mas em Oaxaca os rostos deles são mais sorridentes,  como se os locatários quisessem assumir a sua herança de ponte cultural entre os locais e os visitantes, dando um cunho quase pessoal a cada um dos corredores,  o corredor do fumo onde os transeuntes são engolidos por dezenas de grelhadores de mistas de carne a grelhar a céu fechado ( uma espécie de céu aberto, mas dentro de um recinto fechado) ou o corredor do chocolate onde podes comer ou beber chocolate solo ou acompanhado e nesse corredor não faltam cheiros, mas delicados, profundos e muito seletivos, o corredor do pão, o corredor do queijo e, claro, o corredor do mescal, com sal e limão ou apenas forte, para melhor apreciar o sabor.
Um mercado que transborda os espaços confinados e se estende, quarteirão a quarteirão, cidade acima, primeiro especiarias e ingredientes, depois têxteis e cerâmicas e, quando chegamos às redondezas da calle Macedónio Alcala, o artesanato e arte pura nas galerias da cidade.
Mas no México não há direito ao presente sem uma herança histórica substancial - ou, em ausência absoluta de, pelo menos, uma linha no compêndio de história nacional - pelo menos três milagres devidamente comprovados, três atos heroicos pós-independência ou uma personalidade consensual nascida entre portas.
E em Oaxaca nasceu e lutou Benito Juárez contra os franceses e em Oaxaca situa-se uma das mais antigas cidades do período pré-hispânico, muito antes dos períodos áureos das civilizações maia e azteca, fundada ao que consta em quinhentos anos antes da nova era (uma versão envergonhada do nascimento de cristo) e suficientemente resiliente para durar mil e trezentos anos para depois ser abandonada pelos mesmos não motivos totalmente claros - mas todas as hipóteses conduzem nos à loucura humana - como a generalidade dos centros populacionais mesoamericanas do período pré-clássico e clássico que durou até ao seculo nove: finalmente, conhecemos Monte Alban


Na fila do autocarro ( que não era bem um autocarro, era mais um daqueles decanos coletivos que, pela sua excessiva idade mas falta de rendimentos suficientes foi emprestado a uma transportadora de garagem para uma pré-reforma esforçada antes do merecido descanso final) a velhinha, que era um posto avançado dos transportaciones turísticas Mitla, porque encaminhava os clientes desde a porta da garagem, por mais de três metros, até a uma bilheteira, que era afinal uma mesa de madeira com um bloco de bilhetes em cima, que obrigava os clientes a sentar-se nas poucas cadeiras espalhadas pelo resto da garagem que a organização deixava livre, e afastava os outros do meio do passeio para que não impedissem a passagem e, finalmente, conduziu-nos a todos pelo meio da rua, do tráfego intenso, dos vendedores ambulantes para um lado nenhum geográfico onde o cambaleante com rodas iria chocalhar até  se deter uns minutos depois num lugar que só ela sabia ser o adequado, a velhinha (isso mesmo) abanava as mãos e repetia, sem emoção, "tenham calma porque vão visitar um sítio arqueológico" e havia qualquer coisa de espiritual e místico neste anuncio.
E tinha razão!
Foi um local habitado durante mais de mil e trezentos anos por uma sucessão de povos, e os seus terraços, barragens, canais, pirâmides e montanhas artificiais, foram escavados na montanha e são os símbolos de uma topografia sagrada.
Num dos muros ainda visíveis no complexo, estão esculpidas as estatuas dos dançantes, inicialmente associadas a eventuais rituais e danças mas, após análise mais detalhada, foram identificadas como sendo imagens de governantes e dirigentes de povos  vizinhos, primeiro capturados, depois mutilados e por fim mortos em sacrifício para ofertas de sangue aos deuses, após o regresso de batalhas, eram afinal escravos em posições de sofrimento. 
Nada no mundo antigo pode, afinal, ser explicado à luz dos olhos de hoje
Ao meu lado, no coletivo, uma senhora com dois gémeos, ele Filipe ela talvez Marinela, nasceram com um minuto de diferença, talvez ele mais tarde porque ela tem um ar de desafio de quem não se deixa dominar.
Ele sentou se entre os dois bancos e adormeceu 
E eu também 
Amigos de ombrinho, sem termos trocado mais de que uns olhares.
E sonhamos os dois com as personagens e os desfiles que estavam a chegar para o dia dos mortos!



sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Mujer si puedes tu con Deus hablar

 


A noite de Oaxaca é vibrante, não fosse a capital do turismo mexicano e o ícone para todos os visitantes do dia dos mortos.
E a atmosfera rodeia-se de uma cor e de um tipo de luz que parece não querer condizer com a proximidade da data. 
No El Negro, cozinham os especialistas em Tlayudas da cidade, uma espécie de pizza de tons e sabores mexicanos, a cerveja serve-se com sumo de limão, gelo e sal à volta do copo e o entertainer não se revela um especialista a cantar, por isso se intitula, por precaução, de comediante.
Na manhã seguinte procuramos a biodiversidade no jardim etnobotânico que parece estar em cambio administrativo, segundo o primeiro funcionário ou, de acordo com a segunda funcionaria, com falta de pessoal para fazer visitas guiadas.
Mas os visitantes de tez europeia. embrenham-se nos tons exóticos dos cactos longos e espinhosos, em elaboradas poses de Instagram com tripé e tudo.
O funcionário mexicano que falou dos câmbios administrativos encostou-se à sombra das paredes do convento, a escutar uma novela radiofónica mexicana no seu rádio a pilhas, vestido de preto, com chapéu de palha e trejeitos de vigilante, mete as mãos com pose de megafone e grita adelante por favor todos na direção de saída. Pelo menos, hoje no jardim de gestão federal, o nada é gratuito.
Mas a ideia, aliás não explicada por falta de verbas federais, de procurar recuperar espécies vegetais antigas e autóctones, num espaço aproveitado para o efeito no centro da cidade entre a igreja de São Domingos e o convento, agora museu da história regional, é de mérito indiscutível, pelo que decidimos não relevar a a atitude pouco cooperante da frente unida de trabalhadores.
Magnânimos, ou talvez receosos do poder do protesto que emana dos incluídos da revolução mexicana (uns mais do que outros)
O museu da história regional, fronteiro do jardim, estava em pleno funcionamento, bilheteiras e bengaleiro em funcionamento, vigilantes em todas as salas e uma longa série de espaços cronológicos que enfatizam a continuidade (ou a sobreposição) entre as civilizações pré-hispânicas e as culturas contemporâneas, numa narrativa oficial que procura promover a reconciliação entre todos os povos e culturas e alardear, com orgulho patriótico, a mesticidade da grande nação mexica.
Pelo menos esta é uma muito aceitável narrativa oficial, mas é um exercício sinuoso, especialmente porque a diversidade ainda é, no México, sinonimo de desigualdade (e todos os outros flagelos que decorrem da infiltração do crime organizado nas sociedades mais frágeis e mais isoladas)
É uma narrativa muito visual e não se poupa em detalhes quando se trata de mostrar os tesouros do século catorze encontrados por Codice Alfonso Caso  em 1932, os tesouros do túmulo 7 de Monte Alban ou os feitos do primeiro presidente reformista da nação mexicana, porque Benito Juarez é de Oaxaca e liderou a reforma liberal e uma batalha decisiva contra os invasores franceses.



Longe das retoricas (e, muito frequentemente, da proteção) do regime, estão os muitos milhares de artesãos ou outros pequenos empreendedores que se organizaram em cooperativas e, de facto, mudaram a sua vida - da agricultura para artesanato - e também as suas condições de vida.
"Não há nada mais desafiante no México do que ser mulher e indígena"
Pensava eu, enquanto tentava imaginar o que as artesãs, muitas mulheres, passarão todos os dias para ali chegar, aquela arena de combate pela sobrevivência que representa a rua mexicana.
Afinal de contas nem sempre os mais protegidos pela revolução.
“Estoy chica?” Sim, linda na banca de doces que ilumina o mercado.
Hoje, com a noite a cobrir as festas e os desfiles ininterruptos, que antecipam a festa oficial do dia dos mortos,  provámos três sabores de mescal, no bar terraço com vista para a praça de São Domingos, e para o longo espetáculo sobre os rituais e tradições da morte nas aldeias, e só nos ocorreu o poema de Carlos Oliveira " tepido mezcal / para inventar / a mezcaligrafia / gémea do som / ou da sombria / pauta musical / onde as notas florescem / em breves / compactas carolas / e hastes / que sobem, descem / esguiamente / os degraus /de um jardim" 
Como na exposição fotográfica de Jocelin Ortiz no centro da cidade, também são estes os rituais da vida e da morte.
No fecho do espetáculo da tradição local, a banda começou a tocar o hino de Oaxaca e, na plateia. toda a gente se levantou e cantou em uníssono.
E as mulheres tomaram conta da praça, da pátria e do profundo fervor federalista que parece varrer os estados mais remediados do país.




terça-feira, 9 de dezembro de 2025

La China Poblana

 

Há um potencial milagre ou um fenómeno paranormal em cada esquina de Puebla, para quem vagueia por lá numa manhã de Sol, adelante e bienvenido nas arcadas do Zocalo, espreitando para dentro do café que ocupa hoje o edifício Jenkins, o primeiro armazém ao estilo francês que foi inaugurado na cidade, desgraçadamente para o sr. Jenkins o ano de 1910 não foi muito favorável ao empreendedorismo comercial, e a sua ideia foi triturada pela revolução mexicana, mas o edifício ficou e, durante os últimos cento e vinte anos, nunca deixou de exercer atividades comerciais.
La dentro, do outro lado do vidro, um velhinho sublinha furiosamente o jornal no interior do café jenkins, certamente procurando assegurar-se de que nenhuma data relevante é obliterada pelas ingratidões da história. 
Mas os primeiros milagres moram no templo de São Francisco, uma localização um tanto periférica para um fenómeno tão sublime, mas com uma vista única sobre um dos vulcões ativos que rodeia a cidade.
As instruções, junto ao altar do templo são claras: se pretende pedir um milagre para a saúde de  alguma pessoa por intervenção do beato Sebastião de Aparício, providencia toda a informação médica antes do milagre e reúne também a documentação médica de que o paciente já está curado, que a cura não está explicada e o seu efeito dure para sempre, tem na tua posse os testemunhos do milagre porque desta forma poderemos obter a canonização do beato Sebastião de Aparício.




Lá fora, para lá do horizonte, o vulcão continua a cachimbar.
Do outro lado da rua dois velhinhos beijam-se prolongadamente, talvez porque tenham saído do pincel ou do spray de um artista de rua inspirado pelos milagres do beato.
Na casa de alfanique não ocorreram, segundo consta, milagres, apenas amor e lenda, uma casa que ficou com um aspeto exterior de doce de alfanique - seja lá como ele se parece - porque a noiva exigiu ao proprietário, como prova de amor que ele construísse para ela uma casa doce e ele assim fez.
Uma cidade de histórias que se contam nas ombreiras das portas, nas esquinas das ruas ou nos interiores das casas palácio dos novos donos da nova Espanha, e que a republica decidiu transformar em espaços de memória.
E a história das China Poblana é quase um milagre como algumas mulheres de classe baixa e de origem pouco conhecida tenham criado uma moda de vestir com roupas vistosas, de corte e cores inspiradas no artesanato indígena, que ninguém  tinha visto antes nem mesmo entre os  indígenas, e se tornaram um símbolo de independência das mulheres que as usavam.
Notável, especialmente por ter sido no século dezanove.
E, sem que a nossa retina se consiga concentrar numa só ideia, as imagens começam a sobrepor-se na linha do tempo, à medida que nos puxam para fora da cidade, para a descoberta do velho sul;
Os distribuidores de bilhas de gás que anunciam o seu serviço, rua fora, em carrinhas de caixa aberta com uma música de fundo que, em mesmo tudo, nos recordam os dias de tourada e cruzam-se em contramão com o afiador de facas na sua bicicleta tão ferrugenta quanto a gaita que sopra;
Um outro velhinho, diferente do outro do dia anterior, estava sentado noutra rua, com outro chapéu estendido dando música à rua inteira com outra coluna de som, esta com luzes de néon azul;
E as aparições celestiais na narração de san miguel;
E os altares das oferendas na casa de cultura;
E os blindados do exército mexicano que se passeiam na cidade histórica com soldados armados de pé nas traseiras de uma caixa aberta;
E a fumarola do vulcão que se mostra ao fundo outra vez;
Para nós e para ti, cidade nomeada quatro vezes heroína, segundo rezam as evocações narradas nas esquinas da cidade, porque a história do México é feita de batalhas e invasões algumas vezes derrotas outras conquistas sem ordem precisa porque, no México, mais importante do que as vitórias são os atos heroicos e os heróis improváveis, mesmo que afundados em copiosas humilhações e derrotas
Quiçá, uma prova de confiança no milagre deles!



domingo, 7 de dezembro de 2025

O lugar onde todos somos aztecas

 


Bem-vindos a Puebla, o lugar onde todos somos aztecas 
Acordamos no sopé do vulcão com os ruídos dos motores dos coletivos que se desfazem, a partir das cinco e meia da manhã na rua, do lado da lá (ou seria a partir de dentro?) do nosso quarto.
No México, as cidades escondem-se da noite, enclausuram-se nas portadas metálicas, será medo, precaução ou é mesmo assim? mas acordam muito cedo e, quando acordam, abrem as portadas da vida e despejam toda a cor e o ruído que acumularam durante a noite.
A noite é, pois, a bateria do México. 
 E, do outro lado do passeio do nosso quarto do hotel rincon poblano vivem os heróis da lucha libre poblena, sim, a arena de Puebla é mais modesta que a da capital, mas está forrada de caras mascaradas e recheada de entusiasmo, golpes de magia e caras felizes.
Tudo no mesmo quarteirão, por isso quando Puebla acorda, acordamos todos.
Mas na igreja de São Domingos reina a paz, porque a porta estava apenas entreaberta e a rua não ousou entrar.
E na igreja São Domingos, o silêncio está forrado a ouro, uma capela inteira imersa em barroco, uma extravagância daqueles que construíram uma Puebla de grelha urbana renascentista e a colocaram estrategicamente na rota entre a capital e o porto de Vera Cruz, numa prova dourada de que havia na nova Espanha uma vontade própria, distinta da Coroa.
Conta-se que a mãe de São Domingos, quando estava grávida, sonhou que tinha no seu ventre, um cão que transportava uma tocha na coleira, iluminando o caminho debaixo das suas patas e atribuiu este sonho a uma premonição do futuro do seu filho. O cão simboliza a fidelidade e a tocha, a luz que dará ao mundo, e desta forma decidiu dar-lhe o nome do santo ao homem que fundou a ordem dominicana em Puebla, uma tradução literal de os cães do senhor.
A construção da capela forrada a ouro será certamente uma outra lenda, ao que consta, cheia de símbolos indígenas e referencias aos cultos pré-hispânicos, porque a maioria dos artesãos contratados eram indígenas.
Os vulcões de Puebla deitam fumo e as igrejas disputam a riqueza e o ouro
Cá fora, agora que a rua nos invadiu de novo, um velhinho de fato sem mácula e cruz ao peito cantava, apoiado na sua modesta coluna, músicas de amor e sofrimento, procurando manter a compostura em cada nota, mesmo quando se apercebe que nem os seus graves fazem tilintar moedas no seu chapéu coçado se tanto chão.
A rua do México pode ser dura, porque é grande a competição por agradar!
Mas, na face da maioria dos intérpretes (tal como na maioria dos vendedores de sonhos ou de produtos banais) há uma expressão de otimismo caloroso de quem acredita que todos, a seu tempo, irão conhecer a boa ventura.
Como o homem da casa que matou o animal, que enfrentou e matou uma gigantesca serpente que tinha invadido a cidade e comido o filho de um habitante rico e influente da cidade. 
O pai do infeliz ofereceu-lhe metade da sua fortuna o que lhe permitiu construir uma mansão de três pisos, símbolo máximo de mudança de sorte e a cidade deu-lhe o reconhecimento dando-lhe o nome oficial de a casa que matou o animal.
É só uma lenda, mas pode ser verdade no imaginário de quem precisa de acreditar.
Ou simplesmente a velha lojista do mercado de artesanato que beijou as notas de pesos e benzeu-se logo de seguida, com os olhos pregados no céu, agradecendo quem sabe se a primeira venda do dia, se não termos pedido desconto na compra do vestido com bordados de flores ou se apenas por estar viva e de boa saúde.
Mas Puebla vive na rua e almoçar cemitas no mercado central é uma sandwich de pão fresco saloio, cheia de tudo o que possa pedir mais uma dúzia de molhos e ingredientes, é cheirar oa cheiros intensos das especiarias, das ervas, dos fritos e dos fumos, é escutar os pratos sobre as mesas e os pregões dos vendedores de carne e frutas e encandear-nos com as gigantes figuras dos super-heróis repletos de doces no seu interior para desventrar nas festas de aniversário das crianças.
Sempre o mesmo quarteto da realidade deles: os cheiros, as cores, os sabores e o ruido.


Em Puebla, o centro do estado, mas também na capital do planalto que se rodeia de aldeias históricas, onde impera o triunfo do barroco espanhol sobre a tradição e a cultura mesoamericana, como a catedral de barroco intenso construída em cima da mais volumosa pirâmide pré-hispânica do mundo na aldeia de San Andres Cholula ou a igreja de San Francisco, a única perola arquitetónica da aldeia indígena de Chaletec.
E, no resto da tarde, deambulámos pelas aldeias e pelas preciosidades arquitetónicas do planalto, encostados no conforto dos Uber de Puebla, uma experiência diferente da capital porque, a sul da grande metrópole, os condutores preferem o som dos clássicos românticos anglo-saxónicos dos anos oitenta, Billy Joel ou Whitney Houston com o mesmo nível de som com que trauteámos, a norte, as relíquias musicais de Victor Fernandez e José Luís, como se, à medida que nos embrenhamos nas profundezas da história do méxico, fosse inevitável o triunfo de uma certa modernidade sobre a inevitabilidade da tradição e das raízes.
Sempre o México e as suas construções em múltiplas camadas e interpretações alternativas. 
Acabamos a noite no bar El idolo do México, um espaço acanhado com prateleiras de álcool engarrafado ate tocar o teto, por detrás do longo balcão de onde saem tequilas e margaritas entre outras preciosidades e a toda a hora, orgulho mexicano da banda de musica ao vivo e nós outra a vez a brindar com estranhos e a cantar e a dançar "Antes muerta que sencilla "
O México não acaba !





quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

O desfile das Katrina

 

O avô mexicano que falava sem parar na fila dos cacifos da estação rodoviária do Norte, da herança europeia do povo mexicano, vinha à cidade com os netos ver a final de basquetebol, e ele agitava-se e apontava, como se ele estivesse longe, este é o meu neto, com camiseta de basquetebol sim, ele vinha com a sua malinha e ia para a bola 
Sejam bem-vindos ao México, já depois de ter abordado a política mexicana e mais alguns assuntos da atualidade que eu não decifrei, entre a sua pronúncia cerrada e o seu sorriso reconfortante.
E a Cláudia, a presidente. entre o trânsito intenso e a faixa do metro bus, escapuliu-se num dos três carros de uma qualquer marca americana bruta, sem matricula que a identifique, exceto para o condutor do Uber que apontou com os olhos e desferiu o golpe: é a Cláudia 
E nós, neste domingo, viemos para o desfile da Katrina no Paseo de Reforma
A multidão engoliu-nos numa palete de cores e de movimento e nós dissemos que sim.



segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

As lendas de Guanajuato

 

Em Guanajuato regressamos aos lugares de dimensão humana, uma pequena cidade encravada nas montanhas, na época de colonização espanhola, um dos maiores produtores de prata do mundo.
A entrada no centro histórico faz-se através dos tuneis que ligavam as minas e a cidade por carris que transportavam a prata em vagões.
Em Guanajuato, hoje, não há vestígios de prata, mas sobram as memórias construídas, o faustoso teatro Juárez, a Catedral, e os palácios que povoam a base do planalto, sim a base, porque pelas encostas acima, mantém-se as cores, mas perde-se qualidade nos acabamentos e, quando se sobe muito, os tijolos começam a ficar à vista, parece que o cheiro da prata não sobe tão alto.
Mas sobram histórias de amor impossível, a filha de uma família rica que se apaixonou por um rapaz pobre e eles, tal como Romeo e Julieta, preferiram o amor eterno ao preconceito e o rapaz mudou-se para uma casa contigua à casa da rapariga onde continuou a vê-la, aproveitando os momentos de distração do austero patriarca de família.
Hoje sobra o ritual do beijo de Romeo e Julieta em duas varandas que juntam os prédios dos amantes.
Uma história que só pode ver acabado mal, uma tragédia de Shakespeare, na capital da prata.
Mas em Guanajuato também nasceu Rivera e na sua casa, agora museu, existe um pintor mais contido, porque afinal Rivera aprendeu os clássicos em Itália, os modernistas em França e as suas raízes longínquas em Espanha e o artista deixou um espólio relevante das suas fases menos exuberantes, mais intimistas.
E em Guanajuato, apesar dos sinais exteriores de riqueza serem coloniais, uma herança do sangue e da prata, é na luta da independência do México que a cidade recebe o devido reconhecimento.
Bom, é um reconhecimento dos momentos simbólicos como o grito de Dolores e o 17 de setembro, que são hoje reconhecidos como a primeira manifestação de consciência nacionalista encarnada num padre Hidalgo e os seus vinte e oito mil fiéis que invadiram o deposito de cereais e venceram a primeira batalha contra o exército espanhol.
Sempre na realidade muito mexicana de que a independência foi feita pelos espanhóis nascidos no México (aparentemente os mais abonados e conservadores) e não pelos indígenas, enquanto Cortez foi ajudado pelos indígenas, inimigos de Moctezuma, na conquista do México.
Esta contradição, a conquista fizeram-na os indígenas e a independência os europeus, parece ter determinado o destino dos indígenas na hierarquia do México moderno.
Quanto a Hidalgo, ele foi traído, fuzilado e decapitado em 1811 e a sua cabeça depositada numa jaula e pendurada num dos extremos do forte por tomado por ele, um ano antes.
A independência de facto ocorreu apenas dez anos depois e nada mais aconteceu de relevante nesta parte da futura república.


Mas Guanajuato parece preferir as ondas de presente, um jovem que toca composições clássicas num piano estacionado no meio da rua, centenas de mariachis que cantam e tocam pelas ruas fora, galerias de arte que confrontam as culturas mexicas em cores intensas, artistas da universidade de belas artes local, apresentados numa visita guiada individual por um estudante da escola que teve o cuidado de nos informar que não tinha quadros de Rivera, mas que todos os pintores daquela sala tinham estudado na mesma universidade, ou finalmente o teleférico de uma vista deslumbrante sobre a cidade, um planalto em forma de concha rodeado de um anfiteatro natural cheio de influenciadores no fim da tarde.
Na catedral, prepara-se um casamento e o padre chega cedo, a tempo de ajudar a debutante que tropeça no vestido de balão e, cá fora, ficamos sem saber se o carmen guia é para os noivos, para a debutante ou uma relíquia da nova igreja para atrair fiéis. 
Porque é uma cidade do presente de dimensão humana em Guanajuato, o México fala-nos pela primeira vez, e na primeira pessoa, dos milhares de migrantes que atravessam o país todos os dias de sul para norte. É numa galeria escondida na parte de trás da cidade, mas as portas abertas permitem ver imagens fortes que nos obrigam a entrar.
"Sin Itaca que te aguarde" é o fragmento do poema Peregrino de Luis Cernuda e sugere uma procura sem destino nem lugar de descanso, e assim ficamos sós num corredor escuro rodeado de imagens iluminadas de desespero e sofrimento.
Como as pessoas desaparecidas cujos rostos aparecem desfocados nos postes da cidade, milhares de famílias sem respostas, muitas vezes para a vida, uma praga que ninguém conhece ou partilha as suas origens.
Na manhã, quase madrugada, o autocarro que cantava melodias de victor fernandez sempre me respondes qui cas qui cas ...pensando. pensando hasta quando.... desesperando qui cas qui cas.
São sete da manhã em Guanajuato 
O autocarro parece desfazer-se em cada curva, em cada nota da música, em cada quadra sofrida do cantor, mas só desta forma fazia sentido despedir-me de Guanajuato