Em Guanajuato regressamos aos lugares de dimensão humana, uma pequena cidade encravada nas montanhas, na época de colonização espanhola, um dos maiores produtores de prata do mundo.
A entrada no centro histórico faz-se através dos tuneis que ligavam as minas e a cidade por carris que transportavam a prata em vagões.
Em Guanajuato, hoje, não há vestígios de prata, mas sobram as memórias construídas, o faustoso teatro Juárez, a Catedral, e os palácios que povoam a base do planalto, sim a base, porque pelas encostas acima, mantém-se as cores, mas perde-se qualidade nos acabamentos e, quando se sobe muito, os tijolos começam a ficar à vista, parece que o cheiro da prata não sobe tão alto.
Mas sobram histórias de amor impossível, a filha de uma família rica que se apaixonou por um rapaz pobre e eles, tal como Romeo e Julieta, preferiram o amor eterno ao preconceito e o rapaz mudou-se para uma casa contigua à casa da rapariga onde continuou a vê-la, aproveitando os momentos de distração do austero patriarca de família.
Hoje sobra o ritual do beijo de Romeo e Julieta em duas varandas que juntam os prédios dos amantes.
Uma história que só pode ver acabado mal, uma tragédia de Shakespeare, na capital da prata.
Mas em Guanajuato também nasceu Rivera e na sua casa, agora museu, existe um pintor mais contido, porque afinal Rivera aprendeu os clássicos em Itália, os modernistas em França e as suas raízes longínquas em Espanha e o artista deixou um espólio relevante das suas fases menos exuberantes, mais intimistas.
E em Guanajuato, apesar dos sinais exteriores de riqueza serem coloniais, uma herança do sangue e da prata, é na luta da independência do México que a cidade recebe o devido reconhecimento.
Bom, é um reconhecimento dos momentos simbólicos como o grito de Dolores e o 17 de setembro, que são hoje reconhecidos como a primeira manifestação de consciência nacionalista encarnada num padre Hidalgo e os seus vinte e oito mil fiéis que invadiram o deposito de cereais e venceram a primeira batalha contra o exército espanhol.
Sempre na realidade muito mexicana de que a independência foi feita pelos espanhóis nascidos no México (aparentemente os mais abonados e conservadores) e não pelos indígenas, enquanto Cortez foi ajudado pelos indígenas, inimigos de Moctezuma, na conquista do México.
Esta contradição, a conquista fizeram-na os indígenas e a independência os europeus, parece ter determinado o destino dos indígenas na hierarquia do México moderno.
Quanto a Hidalgo, ele foi traído, fuzilado e decapitado em 1811 e a sua cabeça depositada numa jaula e pendurada num dos extremos do forte por tomado por ele, um ano antes.
A independência de facto ocorreu apenas dez anos depois e nada mais aconteceu de relevante nesta parte da futura república.
Mas Guanajuato parece preferir as ondas de presente, um jovem que toca composições clássicas num piano estacionado no meio da rua, centenas de mariachis que cantam e tocam pelas ruas fora, galerias de arte que confrontam as culturas mexicas em cores intensas, artistas da universidade de belas artes local, apresentados numa visita guiada individual por um estudante da escola que teve o cuidado de nos informar que não tinha quadros de Rivera, mas que todos os pintores daquela sala tinham estudado na mesma universidade, ou finalmente o teleférico de uma vista deslumbrante sobre a cidade, um planalto em forma de concha rodeado de um anfiteatro natural cheio de influenciadores no fim da tarde.
Na catedral, prepara-se um casamento e o padre chega cedo, a tempo de ajudar a debutante que tropeça no vestido de balão e, cá fora, ficamos sem saber se o carmen guia é para os noivos, para a debutante ou uma relíquia da nova igreja para atrair fiéis.
Porque é uma cidade do presente de dimensão humana em Guanajuato, o México fala-nos pela primeira vez, e na primeira pessoa, dos milhares de migrantes que atravessam o país todos os dias de sul para norte. É numa galeria escondida na parte de trás da cidade, mas as portas abertas permitem ver imagens fortes que nos obrigam a entrar.
"Sin Itaca que te aguarde" é o fragmento do poema Peregrino de Luis Cernuda e sugere uma procura sem destino nem lugar de descanso, e assim ficamos sós num corredor escuro rodeado de imagens iluminadas de desespero e sofrimento.
Como as pessoas desaparecidas cujos rostos aparecem desfocados nos postes da cidade, milhares de famílias sem respostas, muitas vezes para a vida, uma praga que ninguém conhece ou partilha as suas origens.
Na manhã, quase madrugada, o autocarro que cantava melodias de victor fernandez sempre me respondes qui cas qui cas ...pensando. pensando hasta quando.... desesperando qui cas qui cas.
São sete da manhã em Guanajuato
O autocarro parece desfazer-se em cada curva, em cada nota da música, em cada quadra sofrida do cantor, mas só desta forma fazia sentido despedir-me de Guanajuato


