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domingo, 28 de fevereiro de 2016

Mumbai Velvet


Mumbai Velvet é um filme de gangsters, que atravessa os primeiros quarenta anos da independência da república, lei seca, disputas de terrenos, assassinatos e ajustes de contas, corrupção e chantagem e uma noite vibrante e multicultural, um fascínio pelo jazz e por Chicago anos trinta.
Vinte e uma horas na urbe selvagem, não foram suficientes para completar todas as peças do puzzle que a constroem.
Já sobre o Oceano Índico, através do minúsculo ecrã emoldurado no assento da frente do gigantesco Jumbo, construía-se a peça que faltava para entender a metrópole que nunca foi capital, apesar do seu arrojo, da sua arrogância e despudor.
Na penumbra adormecida do grande pássaro do ar, desfilava a cidade que propositadamente nos tinham escondido, o pedaço de história que justificava a ansiedade que pairava entre a poluição asfixiante e o mar libertador que rodeava a ilha, e a intensidade com que se procura plantar arranha-céus nas imensas avenidas marginais, outrora pântanos e teatros de disputa entre aventureiros, descobridores, comerciantes e piratas.
E nunca foi capital porque lhe foi negada a aristocracia da História, que a despiu das fortalezas dos invasores do norte persa, dos palácios de dinastias de origem ariana.
No longo curso de uma Humanidade documentada, Bombaim é uma extravagante, despudorada e descontrolada demonstração de novo-riquismo, com pouco mais de quinhentos anos de vida, um território de pioneiros e piratas, mercadores e colonizadores.
Estes últimos que tentaram reproduzir apressadamente o esplendor Vitoriano à beira do Hemisfério Sul, receando que o tempo e as influências nativas não tolerassem por muito tempo, tão grandes invasões de estilo.
E não é a feira de desigualdades que desfila nas avenidas da mais populosa cidade da India que a distingue de todas as outras.
É o atrevimento com que se esforça em destruir as reminiscências do último império organizado que a transformou naquilo que ela é, numa espécie de infanticídio invertido e construir torres, muitas torres, sabendo que, por mais que construam nunca ocuparão toda a imensidão deste território, porque, no seu contínuo esforço de construir através da destruição, continuam a amontoar destroços que não se conseguem enterrar, milhões de vítimas que ficam presas às portas do El Dorado.


Para que não haja dúvidas sobre a inevitabilidade do fenómeno, cada nova torre construída, emergem dezenas de novos espaços de sobrevivência dos milhares que empurraram as pedras, mas que não cabiam no esplendor do vidro e do betão.
Eram dez da manhã, tínhamos aterrado há três horas e já nos tinham mostrado a história dos lavadores de Mumbai, transformada em atração turística, a demonstração de que muitos sonhos, nesta cidade, morrem à beira do comboio.
E enquanto desfilam os milhares de prédios clássicos devolutos, à espera que a especulação imobiliária os transforme pela destruição, a burocracia da república e os milhões de seres que essa mesma burocracia não expele para locais que não incomodem o betão, adia o momento em que Mumbai se transformará numa chinesa Xangai.
Por aquilo que nos deixaram ver, Mumbai ou Bombaim, conforme a herança cultural, vai permanecer muito própria, tão próxima quanto distante da tradição Hindu, mas longe de uma qualquer lógica cartesiana e centralmente planificada.
Numa cidade construída e de tons do Sul – como Delhi é feita de tons do Norte – prevalecem os símbolos da modernidade sobre a tradição como os automóveis que atropelam os riquexós e as bicicletas mas, ao contrário do Norte, a multidão que aqui vive é visível, incómoda e transpira convulsão, sangue quente e opiniões avassaladoras.


E enquanto dirimia, sentado num estabelecimento tão ocidental quanto asséptico, a vontade desesperada de um café forte, com um chá próprio para estômagos fracos, entravam três miúdas a rondar os vinte, calções curtos olhares curiosos, atrevida ausência de pudor e uma maquilhagem irrepreensível sobre a pela morena.
Na esplanada recolhida, fumavam sem remorso e, no passeio, uma idosa vestida com um sari com as cores da tradição, dividia-se entre a reprovação e a incompreensão do presente que polvilha a cidade em todas as esquinas, num olhar perdido de desorientação perante a mudança de paradigma que envolve esta cidade
Como os bairros coloniais que se dispõem a morrer pela especulação do novo ouro terra – mas não morrem - a frente marítima em todo o seu esplendor colonial, ou as torres do silêncio, aquele terreno santificado, onde apenas os Parsis podem entrar e onde se especula se continuam a depositar os corpos dos seus mortos sobre as torres cilíndricas, para que possam ser devorados pelos abutres, porque acreditam que é a forma mais amiga do ambiente para lidar com a morte.
Enquanto aguardo que o pôr-do-sol varra a multidão que se passeia sem destino nem razão em redor da Porta da India, os bandos de corvos enfrentam-me na defesa do mar e garantem uma vista privilegiada para a imponência de um monumento que foi construído para ser uma grande porta de entrada do Império Britânico mas que foi o arco por onde eles, os últimos colonizadores da India, saíram em quarenta e sete.
E, nesta imponente porta, a única coisa que mudou foi o nome de Bombaim.
E os corvos, garantem-me que, a razão por que há sempre milhares de transeuntes a rondar o arco de Mumbai, é que todos procuram entender se se trata de uma porta de entrada ou de saída.
Eu já não tenho dúvidas, é o último entardecer.

Out of India!



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