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domingo, 14 de fevereiro de 2016

O guardião do templo



Sereno, quase furtivo, de elegância imperial, o guardião do templo falava-nos com os olhos e com a flauta.
Guardava o memorial de mármore construído para o após vida de toda a dinastia dos reis de Jodhpur.
Em silêncio, de flauta na mão.
Um memorial que é um santuário, porque aqui se acredita que os maharajas preservam o poder curativo que se sobrepõe aos mortais.
E esta fluidez entre os reinos da terra e do céu, já não nos causa qualquer estranheza.
Decidimos aceitar as coisas como elas são.
As mulheres de vestes coloridas varrem os pátios e os homens discretos, vestidos com a sua própria tonalidade de pele, tratam dos jardins sem mácula.
Como se fosse um intervalo na vida que corre, frenética, lá em baixo no bazar e na cidade velha.
Enquanto a manhã empurra o Sol para o céu e a temperatura do deserto invade os pátios, contorna os varandins de pedra e escorre pelas escadas que nos conduzem aos mausoléus dos reis defuntos.
Dentro do memorial, o sol perfura o mármore, que se acende em diferentes tonalidades de branco e ninguém parecer pisar este chão com os pés descalços, porque é um memorial que é santuário.
E o guardião do templo, esperou o momento e começou a encantar as serpentes que não existiam, mas podiam existir.
E os sons da flauta parecem perfurar o mármore, deixando o Sol entrar.
Cá fora, no morro frontal ao grande forte dos Mehrangarh, a paisagem árida relembra-nos a proximidade do deserto,
Lá em baixo, vive a cidade azul, a porta de entrada da rota da seda.



As particularidades geográficas deste reinado, desta província, explicam porque é que o ar é diferente, porque é que o ouro e a prata ainda forram o forte, e porque é que o mármore é mais fino.
Apesar de não falar, o guardião do templo explica-nos a razão por que Jodhpur, a cidade que abraça o deserto e as rotas comerciais de longa distância, é um local de comércio florescente.
E despediu-se em silêncio, apontando para os engenhosos sistemas de irrigação que alimentavam o lago que envolvia o memorial.
E aqueles que oferecem flores e preces no santuário de Jaswant Singh II, acreditavam também que era a água que os fazia viver.
No morro em frente, o forte realça o esplendor feudal do Rajastão.
No salão real sentimos que o comércio aproxima os povos, porque a descrição das reuniões políticas do rei com os seus assessores e súbditos, emissários e diplomatas, comerciantes e guerreiros, ele no seu trono, os outros em seu redor no chão forrado de tapetes, nos lembram que no Ocidente, Jodhpur ligava a Constantinopla.
Por acaso o nosso Oriente.
As mulheres, sempre escondidas por detrás de frisos de mármore, eram personagens atentas ao mundo e, no reino de Marwar, elas tinham direito a opinião, desde que devidamente comunicada por emissários, de trás das janelas de pedra para o trono real.
Falamos, evidentemente das principais mulheres do harém do rei.  
Aqui a fé hindu ajusta-se às práticas dos invasores persas e dos comerciantes que pululavam pelos territórios inóspitos do ocidente longínquo.
E enquanto o guardião do templo nos acenava ao longe, nós descíamos à terra e embrenhávamo-nos no mercado dos ruídos e dos cheiros, das crianças que choram, dos jovens que nos olham com uma curiosidade tão ostensiva, que nos inibe, e dos adultos que transportam vida de um lado para outro, em volumosas cargas amontoadas em veículos de duas ou três rodas, e as mulheres que, para além de tudo o resto, dão a cor aos cheiros intensos que emanam dos fumos, dos fritos, das especiarias e, esporadicamente, dos incensos soprados pelo vento, pelos templos encrostados no bazar.


Sim, às portas do deserto o mercado chama-se bazar e, agora que o guardião do templo já não nos vê nem nos ouve, um bigode lustroso (eu diria mesmo seboso) garante-nos, com um sorriso velhaco que, se tu estás feliz, eu estou feliz, e os tecidos e as sedas, as especiarias e as peles despertam no nosso novo amigo, o verdadeiro espírito de sobrevivência material que move esta horda de gente inquieta e frenética.
Por cima das nossas cabeças começam agora, depois da oração muçulmana da uma da tarde, a roncar os aviões de combate que descolam ininterruptamente em exercícios que têm um inimigo único em mente, apenas a cento e cinquenta quilómetros da fronteira ocidental.
Tão infernal e tão rasante que suspende a azáfama do mercado, o ritual dos casamentos hindus e o fascínio pela rota da seda.
Depois da oração da uma, a chama triangular que se desenha nas traseiras dos Migs russos, e que voa em direção ao vizinho ocidental, deixa-nos a pensar de como são efémeras as alianças estratégicas entre povos, quando as civilizações são milenares e as pessoas anseiam a diversidade.
- Tu feliz, eu feliz!

Assim seja, caro guardião do templo!

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