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domingo, 14 de fevereiro de 2016

Guerreiros


O seu riso era estridente, a sua postura altiva e compassada, a sua voz forte, a sua presença intimidante para quem a ele se dirigia em hindi.
J por simplicidade poderia ter sido um dos grandes Mewar, uma dinastia de Reis que descendem, segundo dizem, do Deus Sol.
Perante a nossa interrogação cartesiana, J reformula.
Existem sempre espaços vazios na história, que necessitam de ser preenchidos
Afinal de contas é uma dinastia que reina há catorze séculos.
J não é Mewar mas é Guerreiro, o segundo nível no sistema de castas, tal como o sempre foram os Mewar, desde Reis com reino, a Reis mitológicos ou a empresários protegidos pela república.
Afinal de contas, na hierarquia das castas, são como os generais do passado
Mas foram sempre os grandes senhores de reinos menores, uma sobrevivência que se construiu de algumas batalhas, de um sangue especial e de uma arte de fazer diplomacia, desde os mongóis aos ingleses.


Em Udaipur cultiva-se o conto de fadas, e os palácios dos reis perpetuam a santidade destas dinastias, perante o povo e acima de um estado independente, uno e republicano.
J, assim como os outros guerreiros reais, convivem bem com esta posição dúbia, entre o céu e a terra.
Como o Hinduísmo, que se constrói de interpretações pessoais sob a sombrinha protetora da Trindade Hindu, dos sinais da positividade e os cinco elementos.
E as quatro classes da sociedade Hindu.
Debaixo deste chapéu, aproximadamente três milhões de Deuses, conforme o contador de histórias.
Em Udaipur, o maior dos (antigos) pequenos reinos do Rajastão, prevalece, sem medo do único dogma hindu vivo, a estratificação das castas sem pudor.
Apesar da tolerância compreensiva às diferenças de credo, do sistema diversificado de pensamento, as inconstitucionais castas que prendem os humanos ao destino, confundem o espírito cartesiano e humanista ocidental.
Não há no nosso glossário de conceitos, a ideia de um pensamento diversificado numa rígida sociedade estratificada.




Mas J não entende a nossa dúvida, como não entende que lhe perguntem se, no limite desta pluralidade de pensamento, não cabem os ateus.
Essa foi uma pergunta definitivamente errada.
E porque os Deuses e os Reis descendentes se representam com uma auréola santificada em todas as pinturas em seda executadas pelos artistas da escola de arte do Rajastão, neste conto de fadas que envolve o destino de um povo, as histórias épicas atravessam gerações.
Como a do cavalo Chetak que, ferido de morte, caminhou sempre para levar o rei para um lugar seguro, derrotado de uma batalha com os Mogois.
Para depois morrer.
Como os artistas da escola de artes o são, há muitas gerações.
Destino, reis mecenas e um culto de santidade que está para além de um mundo de abismais diferenças sociais.
Como ilustrava o (futuro) Nobel em “India – Um milhão de motins, agora” , a revolução só nasce se a crença que alimenta os humanos, for uma crença igualitária.
Mas não é.
Mas neste mundo gigante, todas as deserções à Trindade Hindu, foram punidas pela perda de fiéis e de representatividade.
Um budismo entrincheirado entre os Himalaias, o Jainismo encarcerado nos princípios da não-violência, em templos divinais e numa vivência de contemplação distante da vida e da sobrevivência.
Como diria, J com algum subtil e não ostensivo desprezo, sempre que existem sacerdotes existem deserções e separações, e “ no Hinduísmo não há sacerdotes”.
Confundido, tive de aceitar que não havendo sacerdotes, as pessoas descobrem, através da sua livre e intima interpretação do hinduísmo, que a estratificação é uma forma de garantir o livre pensamento e de atingir, a partir dos cinquenta anos, o estado de pré libertação dos bens materiais e, a partir dos setenta e cinco, a fase de preparação para a melhoria da vida seguinte.
Sim, porque a alma é eterna e utiliza os veículos que são os seres para passar de vida em vida.


Percebo que não é bem assim, mas sem saber bem como.
E para que não restassem dúvidas, os casamentos continuam a ser combinados, e absolutamente interditos entre diferentes castas.
Bom, ele falou em oitenta e cinco por cento.
A única sobranceria que eu quase não perdoei a J, foi a omissão – pior, a negação quando interrogado – das ligações familiares e de liderança espiritual de Ghandi ao Jainismo, uma religião igualitária, aquela “religião de sacerdotes” que se enclausura nos templos da não-violência, e que nasceu, tal como o Budismo há milhares de anos, da vontade de alguns em erradicar a Védica inevitabilidade da eterna e imutável estratificação social hindu.
Até porque, segundo percebemos, até ao século VI, as quatro classes (e mais os intocáveis) eram meros estados transitórios, e simultaneamente ascensionais e descendentes, por onde se catalogavam os humanos em função das suas ambições e capacidades.
E o destino nasceu depois, apesar do Hinduísmo ser uma “religião sem sacerdotes”
E porque Ghandi é a maior das reservas morais da contemporânea, independente e diversa mãe India.
Ao fim do quarto dia, já tinha a certeza que nenhuma moeda tem apenas um lado, especialmente na India.
E J voltava a rir, estridente, com o seu bigode afiado, o seu lenço de seda enrolado ao pescoço, a sua pose real e um jeito meio infantil de bater palmas santificadas e guerreiras, daquelas que por magia, ligavam as fontes dos lagos do jardim das princesas de Udaipur!

Afinal não era magia, era apenas trabalho camuflado de castas inferiores.

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