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sábado, 22 de novembro de 2025

o mural da revolução mexicana

 


E ao segundo dia demos de frente com o Pancho Villa, pendurado na rua do Madero, o que também faz sentido pois Francisco era o seu presidente e foi ele que levou a revolução para o palácio do governo na capital, a partir de Cidade Juárez, e era um diplomata cercado por violentos pistoleiros, por vezes capazes de atos de ternura para com as mulheres e com os companheiros com a mesma naturalidade com que fuzilavam todos os oficiais inimigos, feitos prisioneiros.

E Pancho sempre foi fiel ao diplomata Francisco e terá chorado com o seu assassinato, o primeiro de uma longa lista de revolucionários, mártires e vítimas da própria revolução, que tragou todos os revolucionários até uma espécie de meia vitoria final, dez anos depois, lá para os anos vinte do século passado.
Mas a entrada triunfal dos primeiros revolucionários na cidade do México, nos anos dez, um desfile militar em que milhares de bandoleros, cobertos de pó e de ruralidade, se sentiram finalmente um exército, ao longo do muito francês passeio da reforma, faz parte do imaginário dos indígenas e dos pés descalços do México.
E, por isso, na muito elegante casa dos azulejos, onde os pequenos almoços se celebram com iogurtes de frutas frescas e guardanapos de pano, existe um altar construído para o dia dos mortos, uma oferenda por Pancho.
No Zócalo, prepara-se uma demonstração do México corporativo dos pueblos que acampam nos confortes da catedral para exigir a anulação de uma eleição não identificada, sob o olhar benevolente de centenas de policias que por ali sempre andam, porque no Zócalo, o centro absoluto do México sempre protegido pela bandeira, estão sempre a acontecer coisas, uma sucessão de altares, palanques, palcos ou apenas multidões que gritam, cantam, festejam e protestam amiúde, o pulmão e as entranhas da nação mexica.
No interior da casa dos azulejos, vive-se uma palete de cores quentes, um mural que forra a sala de uma atmosfera nordestina, com catos que anunciam o deserto e os ranchos de gado, uma memória da época em que a casa doa azulejos era o jockey club da cidade, uma visão romântica de um México rural, sem pressas e impregnado de uma música inconfundível.
Aberta a porta do exterior, não há mais lugar para a farda imaculada dos empregados de mesa e impera o mundo dos amarrotados.
E ao segundo dia demos de frente com os muralistas, os revolucionários e por vezes dissidentes (com o partido e, amiúde, também entre eles próprios e com os inseparáveis amigos) Rivera e Siqueiros, e entrámos num universo grandiloquente das histórias contadas em pinturas de parede.
No Palácio das Belas Artes vive o homem controlador do universo ou a dicotomia dos mundos capitalista e comunista em 1934 aos olhos de um revolucionário que não se refugiou nos dogmas da ideologia, mas pintou a utopia com um entusiasmo vitalício e a convicção utópica de que o homem consegue transformar criativamente a sociedade e alcançar assim um futuro melhor e mais justo.
E por isso fascinou-se com a indústria moderna da América do Norte e foi expulso do partido como reacionário por receber encomendas dos ditadores mexicanos e dos capitalistas americanos, mas recusou-se a retirar a figura de Lenine do mural que Rockefeller lhe encomendou para o seu centro e o Mecenas destruiu o seu mural. E Diego reproduziu-o no palácio das artes como o controlador do universo (que ele encarnava em si mesmo) como a maior das utopias de uma mente inquieta que se inspirava no contraditório, mesmo que, na dicotomia que pintou, nunca fosse possível identificar uma cronologia credível.
Sequer.
Na outra parede, no painel de Siqueiros, uma única imagem da conquista espanhola, parece resumir todas as guerras da história mexicana.
Pelo menos na perspectiva do professor que explicava aos alunos que a colonização espanhola e o massacre indígena, explícito no mural de Siqueiros, encarnava (implicitamente) o sofrimento de todas as guerras do povo, contra os invasores espanhóis, os franceses, os americanos, a guerra da reforma e a revolução, essas últimas sem inimigos externos, senhor professor,  e os alunos, muito atentos, pareciam algo confusos com tamanha audácia do professor, certamente entusiasmado pelo génio  dos autores, afinal de contas todos os momentos são bons para realçar as cores da  nossa bandeira, mesmo quando as cores vividas da imaginação explosiva dos muralistas tendem a estimular um excesso de imaginário fantástico.
E, no segundo dia, tivemos a certeza de que no México não há outra realidade senão a alma mestiça. Entende-se, caminhando pelas ruas que o país foi construído por camadas e a raça mestiça transforma-se no sinal congénito deste povo. 
Basta andar pela cidade para perceber que a mistura se fez pela imposição sucessiva dos mais poderosos, desde os aztecas até aos ditadores mexicanos, de sacrifícios não voluntários aos mais desfavorecidos e pelas revoltas sangrentas dos descamisados, sempre uma violência desmedida a partir da qual se apurou o sentido de mestiçagem que povoa o presente da nação.
Mas a generalidade dos transeuntes é doce, amistosa e cortez (não é esse cortez, até porque a generalidade dos mexicanos com voz o trata por “ele”, apesar de saberem que Cortez é o seu pai biológico, eventualmente Moctezuma a mãe deles)
Faz parte do imaginário literário deles a coexistência entre uma violência intestina e uma ternura imensa.




E no museu que foi construído para acolher um mural que tinha sido pintado num hotel destruído pelo terramoto, Rivera conta uma versão da história do México em três níveis na horizontal, uma ironia critica à sociedade mexicana dos finais do século dezanove, outra dos sonhos do povo e a terceira a história sonhada e os desejos de realidade, normalmente preenchidos de paixão, devoção e sangue.
Uma história também contada na vertical em trezentos anos de linhas impercetíveis, desde a conquista ao regime de Porfírio Dias e a soberba afrancesada dos ricos e poderosos, depois a Revolução e muitos metros de tinta até à história moderna. 
As imagens são tão fortes que temos dificuldade em encontrar os personagens certos e distinguir a narrativa do fantástico.
Abandonados os sonhos de arte nova (e de uma ambicionada grandeza) ao pequeno-almoço, almoçamos no pátio interior, depois de atravessar um tronco de pastor à porta e um corredor de fumo que é a versão popular de uma cozinha que nada esconde da sala de comer, sim, um lugar de modéstia mas que não dispensa os mariachis e resume a vida da gente amarrotada mas generosa, dos botecos de rua, das ruas dos ofícios, desde a rua dos eletrodomésticos, ferragens, lojas de música, de fotografia e esporadicamente as ruas pedonais das grandes marcas,  uma versão muito legitima da cidade sentada diante de nós, em mesas de madeira simples e paredes de amarelo intenso.
Todos ao redor de um taco pastor e de um pote de água de sabores, hoje a pepino, laranja e mais sabemos lá o quê. 
Quando regressamos ao crepúsculo do Zócalo, mais uma interpretação sobreposta da História, desde Moctezuma até à independência, estamos prontos para nos submetermos aos rituais aztecas de limpeza, entre os espólios coloniais e indígenas, sem alarde, mas com vigilância ativa sobre as intenções dos transeuntes e sobre os templos recém escavados.
E diz, quem se purificou com os fumos sagrados que, mais do que uma cura é uma viagem mística aos confins das crenças antigas, com surpreendentes resultados terapêuticos, frutos de um conhecimento moderno.
Entre a fachada lateral da grande catedral metropolitana e o coração de Tenochtitlán, dissipam-se os fumos, submerge o alívio das dores nas articulações e sobrevive a herança mexica comum que parece explicar a devoção a Guadalupe, mais Guadalupianos que católicos, a madre de todos os deuses tonatsi, a suspeita de que Guadalupe é a indigenizacao da religião católica.
Já noite dentro, o Júlio Cesar e a Paloma dão os nomes para a viagem na noite mexicana, direção lucha livre, uns acrobatas saltimbancos que simulam lutas familiares, e certamente que o fazem por sobrevivência e reconhecimento, porque a audiência é entusiasta e precisa dos heróis mascarados.
Na taqueria Orinoco, recuperamos as energias gastas na luta, no muito nobre bairro de Roma, um enclave de elites na grande selva urbana, cheia de bichos e de finais dramáticos e descobrimos que afinal sempre vive um México branco na cidade.
Quase imune à história conturbada do povo.
Quase!



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