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terça-feira, 19 de julho de 2016

Taxi Driver I


“ Apenas um por cento das pessoas pensa no significado da vida!”
Onze da noite em Meatpacking District.
Muitos anos depois de um tempo em que o bairro “actually packed meat”.
Era Sábado à noite na cidade trendy, nas ruas escuras, propriedade dos antigos matadouros que alimentavam a cidade voraz, de uma linha de comboio que desventrava quase duas milhas de cidade, entre armazéns com odores fortes e velhos prédios cobertos de fuligem.
O mesmo espaço que se transforma em todos os amanheceres, nas margens do rio Hudson, em espelhos de vidro que se anunciam, neste novo oeste de territórios abandonados.
Mas as luzes ainda rareiam neste estaleiro que se procura reinventar, entre a alta e a baixa, entre a oitava e a décima primeira, onde outrora habitavam as entranhas gordurosas da metrópole.
Como que renegando a genética luminosa da cidade, na nova centralidade a multidão move-se nas sombras, hoje à noite de reflexos multiplicados pela chuva que voltou, alimenta-se de espaços fechados de tijolo vermelho, transformados em cavernas de Ali Baba, mal se transpõem os portões metálicos tão rudes como a irregular calçada que serpenteia o burgo.
Enquanto os últimos artistas de rua ainda resistem nos derradeiros muros em processo de reconversão, antes de se mudarem para East Village, depois Brooklyn e Queens e, quem sabe, mais tarde para o Bronx.
Ou se mudam para dentro das renascentes galerias envidraçadas de arte de vanguarda.
71º F era a incompreensível temperatura húmida e abafada que se anunciava na nona avenida.
Entre o formigueiro de vultos e automóveis que desciam a nona, acendeu-se uma pequena luz branca que serpenteava a rua em obras.
Free.
Free is the cab.
Mão ao alto antes que chova, e não há maior prazer que chamar um táxi com uma mão ao alto.
Primeiro, porque também nós podemos ser estrelas de cinema.
Vimos isto tantas vezes nos filmes.
Depois, porque em NY, isto funciona mesmo, basta olhar para eles, simular que levantamos um dedo e temos um amarelo só para nós.
Já não é um amarelo como o dos filmes, hoje o império dos sentidos orientais invadiu as ruas da maçã, e um ford já não é tão fácil de agarrar com uma só mão.
Um vulto de barba branca (e no início jurei que tinha turbante) chamou-nos para dentro do Nissan e, naquele momento acreditámos que iriamos escapar à chuva e à mole humana que nos empurrava para a noite.
“Apenas um por cento das pessoas pensa no significado da vida” – foi esta a primeira frase que saiu pela porta aberta entre nós e o homem de barba branca, que não tinha turbante mas que vestia uma pele escura, encardida da vida e dos fumos da cidade.
Sim, ele sabia muito bem onde era a quarenta e anuía sem desviar a cabeça da calçada, nem o ouvido do som que ecoava no táxi.
Uma voz límpida e com um sotaque indesmentível saía dos altifalantes do carro amarelo, e falava aos fiéis, como se fosse uma audiência em direto.
Entre a rua 14 e a rua 26, cheguei a jurar que era um som de mesquita e, dentro do carro, não sobrevivia um som que retirasse a limpidez àquela voz que falava uma linguagem simples, quase pueril, para uma plateia de silêncio, dentro do carro e para lá do fio (seria rádio, alguém jurava que era um ipod)
E o homem de barba branca e pele escura não alterava aquela expressão de meditação interior e absoluta concentração exterior no trânsito caótico que se intrometia entre nós e a décima avenida.
Nem mesmo quando se atravessavam nos para-choques dianteiros as adolescentes de saias muito curtas e de decotes profundos, saltando como gazelas entre o trânsito e os portões metálicos dos grandes tesouros de Ali Baba.
A partir da rua vinte e seis, a voz falava de Mumbai e explicava que a aparência era o que menos caraterizava o espirito dos homens e a minha crença mudou.
Provavelmente era um Homem Santo Hindu, um sacerdote Jainista ou um monge Budista.
Porque no fundo o que a voz nos explicava é que a essência do ser, e do nosso papel no mundo está para além da ostentação de símbolos de poder e riqueza.
Entre o sotaque difícil e as palavras simples, entendi as siglas BMW.
Conhecendo nós Mumbai, então percebíamos
De palavras simples, voz solene e mensagem única, só concluímos que era o momento espiritual do submarino amarelo na noite chuvosa da grande cidade.
Um silêncio que durou vinte e seis quarteirões, em que fomos transportados para uma outra dimensão.
À saída, e num inglês absolutamente perfeito, o homem de barba branca e pele escura, anunciou a conta, desejou-nos uma noite feliz e agradeceu com uma simpatia desprendida, a gorjeta de três dólares.
Bem vistas as contas, bastante mais que os vinte por cento regulamentares.

Bem pouco para tamanho banho de universalidade



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