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quarta-feira, 20 de julho de 2016

Bowery 250


A Bowery não é uma grande rua.
Não é alta nem é baixa, apenas corpulenta e descuidada quanto seria afinal de esperar de uma rua que é uma gigantesca linha de fronteiras confusas e identidades sobrepostas.
A sul a frenética e incompreensível terra da China.
A oeste o berço da emigração italiana e irlandesa, agora uma pequena Itália, invadida, quarteirão a quarteirão pela corrente chinesa
A leste vivem os últimos marginais da cidade, que disputam as poucas árvores com uma silenciosa e tímida comunidade japonesa e um jardim onde todas as manhãs anciões chineses (eles outra vez) passeiam pássaros Hua Mei em gaiolas de um orgulho estridente, não fossem estes, pássaros cantadores.
A norte e a leste, a ponte de Williamsburgo, que foi a rota de emigração dos judeus para Brooklyn e ainda a norte a rua de Houston, onde ainda persistem alguns dos bares clandestinos que proliferaram na baixa Manhattan, durante a lei seca.
E há quem garanta que, nos bairros circundantes, viveram os alemães que cruzavam o bairro da carne e serviam os melhores bifes da média maçã. Antes de terem emigrado para Brooklyn à frente dos judeus e saltado para Queens, de braço dado com os irlandeses, outra vez intimidados pela ortodoxia dos judeus da cidade.
De piso esburacado, placas centrais pouco cuidadas e de uma largura desproporcional à altura dos prédios antigos, gastos e atolados de reclamos sem luz e carateres verticais, a Bowery é uma velha feia e com mau feitio.
Não é bela e snob como o Soho, nem suja e vanguardista com a East Village, nem intelectual como a Greenwich Village.
Pronto.
Dá mesmo a impressão que alguém se esqueceu dela.
Mesmo com a chegada do vanguardista New Museum aos 235.
É mesmo preciso ser resistente para suportar a chegada ao 235.
Como alguém marcava na rua, “ainda bem que sou ateu”


Mas o Bowery deve ter algum encanto.
O Instituto de Fotografia Contemporânea instalou-se a vinte e seis de Junho no 250.
Número par, azar dos Távora, é no outro lado da rua, e parecia um canguru a fugir das crateras do meio da rua, infeliz por não haver passadeiras e os semáforos ameaçarem desligar-se a cada passo na direção desta largura oceânica.
Pois, o ICP, é como se chama, despediu-se da mediática e luminosa sexta avenida e desterrou-se junto à muralha da China
E logo com uma exposição que se mantém aberta até a noite cair, chamada de Publico, Privado e Secreto.
Inquietante.
“ A exposição mostra como a contemporânea identidade de cada um é atualmente moldada de forma indelével pela visibilidade pública e pela imagem que nós próprios construímos para disseminação.”
Voyeurismo e vigilância.
Um tipo que se depila em frente a uma webcam, uma blogger que marca encontros fortuitos na Houston Street e os filma com uma micro camara, peepshows virtuais e filmes construídos a partir de camaras de vigilância.
E a cave, ampla e luminosa cave da Bowery 250, a partir das seis da tarde parecia uma antecâmara dos mais secretos e perversos jogos das pessoas comuns.
E entre os corredores sentia-se uma tensão que cheirava a suor.
Assustadora a forma como os (inúmeros) visitantes deste local, oscilavam entre uma profunda intelectualidade de vanguarda e doentia personalidade psicopática.
Bipolaridade ou impressão minha.
Felizmente havia camaras de vigilância em todos os cantos.
Regressados à superfície, a Bowery já parecia mais normal e, porque estávamos exaustos de atravessar tantas fronteiras e descer a tantos buracos, levantámos o braço e estacou, de súbito um táxi amarelo, para variar uma Nissan, desta vez com trejeitos de veículo comercial.
Abrimos a porta e o negro gigante assomou no lugar do condutor, sorriu com uns grandes dentes brancos e gritou com um indisfarçável sotaque francês:
Cab is free.
Mais uma fronteira. Bem-vindo a Port-au-Prince!
Ao nosso lado direito, abriram-se as faixas de aceleração para a ponte de Williamsburg e à nossa frente, enfiado numa cratera gigante jazia um táxi amarelo para gáudio dos transeuntes e ira do nosso haitiano, “como é possível que um taxista caia num buraco, se fossem os outros agora um taxista tem de conhecer os buracos todos”

Ele tinha razão e a marca do táxi afundado era um Ford.


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