Pesquisar neste blogue

sábado, 4 de fevereiro de 2017

198? - 30 anos já é História ? (2/3)



E este era decisivamente um discurso europeu, de quem nascera em França, de quem já acreditava que Maomé morrera na cruz, de tanta escola e cultura em França, terra que o tinha transformado de adolescente em adulto, de quem tinha ultrapassado as fronteiras dos bairros, estudava na Universidade e se preparava para invadir o espaço cultural francês, disso nem Stephanie tinha dúvidas.
Mas Ahmed tinha.
- Nascemos em França, mas não nos sentimos franceses…
- Mas pensas e expressas-te como cidadão europeu – Stephanie esboçava um protesto, porque essa conversa de filho indesejado e relação fortuita não lhe parecia discurso de muçulmano tradicional.
- E não somos tratados como franceses…
- Mas se nem vocês se sentem, como esperam que uma nação conservadora e republicana os vejam? – Pedro não perdia nenhuma oportunidade de provocar o Che, e não era racismo, era embirração com o personagem.
- E a democracia europeia não deve assegurar a todos o que ajudaram a construir o ideal da Europa a igualdade de direitos e, simultaneamente, o direito à diferença? Sobretudo aqueles que se enterraram nas fundações, que se misturaram com o cimento da construção europeia!
   E não nos podem interpretar mal quando, de tempos a tempos, sentimos o apelo do bom selvagem, a vontade de regresso ás origens que não conhecemos, mas que os nossos pais nos contaram, e estas ânsias, para vocês surpreendentes, coincidem com os súbitos desvios da vossa (nossa) democracia à direita profunda, tão bruscos quanto igualmente surpreendentes, multiplicação de bandeiras tricolores em todos os edifícios vagamente públicos, ridícula confusão de identidade com nacionalidade.
Pedro calou-se e reconheceu a derrota. O tipo era consistente.
E Ahmed, embalado pelo encanto dos seus próprios argumentos, e pelo enlevo demonstrado pelos ouvintes, sim, todos o cercavam enquanto desciam a escadaria do jardim, Sacré Coeur atrás e atenta no monte, Pigalle em baixo provocante e certamente indecente, explicava-lhes os sacrifícios dos pais, o racismo no seu mais puro quotidiano, o grito de afirmação das manifestações de 84,a afirmação da cultura do subúrbio, daquela vontade que apenas a juventude conhece, afirmação ou desterro!
- E existem milhares de desintegrados que vagueiam pelas estações de comboios à procura do que nunca encontram, ilegais e que escorraçados se refugiam nos bairros e os destabilizam, com a sua raiva – Joseph, parisiense, frequentador da noite de Monmartre e Pigalle por vocação e conforto, sem quaisquer convicções específicas, apenas pela musicalidade e pela estética dos bares, de Brel, das discussões pela noite fora, ele parisiense também tinha direito a opinião, e exprimia-o.
Enquanto Ahmed anuía, Michélle e Pedro sorriam, embalados um pelo outro, enquanto que, por exclusão, Petra e Giovanni caminhavam silenciosos, olhos na lua ou na calçada, ouvidos em Ahmed ou em ninguém, longe um do outro, vizinhos rodeados de montanhas.
Ninguém percebia como este grupo se havia criado, talvez geração espontânea, mas este italiano, que não cantava nem tocava aparentemente nada, que viajava e por aquela noite havia encalhado, tinha tropeçado numa qualquer saída de emergência e parecia sentir-se satisfeito por apenas não caminhar sozinho, todos acharam que uma ambição tão modesta não poderia ferir ninguém e adoptaram-no!
Petra decidira envolver Giovanni nesta existência de grupo, sorriu-lhe e aceitou a conversa tímida, apenas geografia de lugares e coreografia de seres, era preciso desentorpecer as nuvens de desalento que espreitavam as escadarias de Monmartre.
Pois, a musicalidade nocturna perdia sonoridade na madrugada do impossível.
Diferenças. Impossível!

Mas Petra e o amor dos outros imergiam a Argélia profunda.

Sem comentários:

Enviar um comentário