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domingo, 25 de agosto de 2013

O bando dos quatro - Parte 2

Não fui eu! – Protestou o cientista júnior, apontando para o desenho e para a poça que agora esborratara a folha de papel, perante os múltiplos olhares reprovadores de quem havia decidido que, aos nove anos, não havia lugar para estas ousadias
Mas era impossível não ser obra do E., porque sapos não saltam de desenhos coloridos e a mancha de água não era o charco do sapo mas sim da lágrima exasperada de um pintor fracassado e nem nas histórias de encantar os desenhos ganham vida durante o exame da quarta classe.
Os outros putos da trupe entreolhavam-se, divertidos pelo sapo gramofone que agora trepava paredes, soltava ruídos guerreiros e depois olhava fixamente o horrorizado mestre-escola, de cima da carteira do jovem estudante com vocação geopolítica, mas desconsolados porque parecia comprometido o troféu de guerra do fantástico assalto ao charco de ontem à noite.
Sim, algo devia ter corrido mal, porque o Einstein assegurara que o batráquio não se escapuliria do bolso direito do seu casaco de fazenda – que o assava em pleno Junho, mas a causa o exigia – porque, na mesa de experiências da cabana do quintal tinha-lhe administrado uma dose de clorofórmio que dava para adormecer toda a sapolândia, bom, julgava ele!
E, perante o olhar interrogativo do juiz imperfeito, encolheu os ombros sem resposta científica para este acontecimento procurando, com cada um dos seus olhos saltitantes, controlar os estragos, como iria ele recuperar o sapo, convencer o mestre-escola que era apenas um acidente e que, por isso, não merecia ser condenado com um humilhante chumbo e umas orelhas de burro no canto da sala, a não ser que fosse no mesmo canto onde o grafonola se refugiasse.
Passarola voadora, o quarto membro do gang dos putos assaltantes de charcos, era mais aéreo que todos os pássaros da rua deles mas, num assomo de clarividência, tomou a decisão certa; entre o troféu de guerra e o exame final, optou pelo último, pegou rapidamente no anfíbio grafonola – que, fazendo jus ao seu cognome, não parava de emitir sons roucos e histéricos – e lançou-o janela fora, para o campo de futebol empoeirado que havia de petrificar o dito sapo, e dar-lhes tempo de recuperá-lo.
Tão rápido o fez que acalmou a ira dos mestres, tirou o pio ao sapo, recompôs os amigos e contribuiu decisivamente para salvar a carreira académica do bando dos quatro.
E enquanto recebiam as festas e os diplomas da família, dos (agora) tiranos mestre-escola, a bênção do especial convidado Padre Manuel, de tão pitosga nem se tinha apercebido da epopeia dos sapos, E. recuperava na memória a epopeia da noite anterior (e o passarola o sapo grafonola, discretamente repescado da imobilidade – ele, passarola, sabia – da poeira do recreio e da sombra salvadora da figueira que, por ali, algum dia alguém tinha plantado)
Tinha sido um momento épico, cuidadosamente planeado sobre a supervisão do puto com vocação geopolítica – o seu verdadeiro nome, salvo as conotações (aliás por todos eles desconhecidas), Moshe Dayan, o estratega da guerra dos seis dias – que, nestes momentos de glória, não dispensava a pala no olho, em recorte cuidadosamente elaborado do resto de umas calças de ganga boca-de-sino, esfarrapadas após muitos anos de combates de rua, emboscadas aos putos da rua de cima e expedições na poeirenta estrada real, para os mais ignorantes a pala do pirata da rua de baixo.
Apesar de ser véspera do famigerado exame, e o juiz imperfeito – assim apelidado pelos mais velhos da rua, os experimentados liceais e malfeitores da rua de cima, porque o pai era juiz e o puto tinha uma testa demasiado saliente e pronunciada – insistir que o dia não era o melhor, os pais iriam questionar-se desta saída noturna e era preciso rever as mastigadas matérias que tinham sido treinadas em múltiplos ensaios parciais e gerais,
(toda a gente sabia, afinal de contas viviam numa aldeia, quais eram os problemas, o tema da redação e do desenho sobre os quais iriam prestar provas amanhã, ninguém duvidava que no exame da quarta classe ninguém chumbava porque os burros, os lorpas que não eram capazes de soletrar ou escrever duas palavras seguidas sem erros, esses, não eram convidados a prestar provas) 

Passarola, porque era alto como uma avestruz, cabeça pequenina e passava a vida a sonhar, não se sabia bem com o quê (havia quem jurasse que a alcunha tinha alguma coisa a ver com o professor pardal) tinha sido o principal apoiante do Moshe, “Tem de ser hoje, porque é lua nova” e o Einstein percebia bem as vantagens de atacarmos os manhosos dos sapos numa noite de lua cheia, “É o efeito surpresa, entramos na poça pelos montes Golan, dividimo-nos em dois grupos, o Einstein e o Passarola pela direita com as lanternas prontas e nós pela esquerda com o camaroeiro em riste”, eram as ordens do Moshe.

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