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domingo, 30 de julho de 2017

Medina


- Ei, tu aí, não queres cortar o teu cabelo?
Eu apontei para o meu cabelo e para o do último freguês que acabava de sair da cadeira para a rua e lancei-lhe um olhar interrogativo, afinal de contas todos vestiam um penteado do género crista, que não fazia o meu estilo, e ele assentiu com perspicácia, mas insistiu:
- Ei tu, eu posso fazer-te a barba – e com uma barba de seis dias transformava-me num cliente pleno de potencial.
Mas eu abanei a cabeça, sorri e afastei-me dali cheio de voluntarismo, não me estava a imaginar ter de negociar arduamente o preço de uma barba persistente, em troca de uma navalha apontada ao pescoço, bem no interior do souk, um beco com o máximo de dois metros de largura, coberto de uma poeira que nem a noite dissipava, rodeado de dezenas de jovens de tez escura, olhar desafiante e cabelos rapados dos lados e anormalmente crescidos no centro.
Eram quase onze da noite e o cabeleireiro de homens era o único espaço comercial aberto na derb Zaouia Lahdar, um gigantesco corredor de terra batida que começava agora a abrandar a sua respiração, depois da intensidade e da agitação do final de tarde, quando as sombras se tornavam mais espessas, as mulheres saiam à rua para fazer compras e os veículos de duas rodas furavam a multidão com persistência
Desde que abriram uma fábrica de motoretas chinesas nos arredores da cidade…
A loja de reparação de bicicletas, que dividia o espaço e a rua com uma padaria sempre com pão quente e exposto numa banca de madeira no centímetro trinta de largura da derb, a loja de lãs e sedas, a tinturaria, lavandaria e passagem a ferro que ocupava o pátio de um enorme Riad, e as velhas encolhidas e completamente cobertas e agachadas junto às ombreiras das portas de comércio e à mercê das moedas que, esporadicamente, caiam das mãos dos religiosos cobertos de vestes brancas, homens de barba afiada e de cabeça coberta, todos eles já se tinham recolhido porque, a partir das dez, a Medina volta-se para si própria, uns minutos antes do ultimo chamamento do dia para a oração.
Só o cabeleireiro de homens permanecia no auge, com um som estridente e metálico de música moderna escorrendo do seu interior, e dezenas de olhos sentados nas cadeiras de espera que entupiam a caverna de uma única porta, uma única cadeira de barbeiro que partilhava a ombreira com o excesso de lotação, que não deixava de incentivar a veia artística do barbeiro, o mesmo que, não contente com esta inesgotável fonte de freguesia, continuava a chamar-me, aprontava-me eu para dobrar a esquina mais próxima, aí a uns cinquenta metros do local desta sangria capilar.
Já passava das dez e meia e já se ouviam os chamamentos oriundos dos minaretes de todas as mesquitas da cidade antiga, e os homens de branco e de cabeça coberta já se tinham retirado para as preces a Alá.
O som inimitável das vozes que, ao desafio, chamavam os fiéis e (como que) avisavam os outros, da voz grossa e de acento forte do barbeiro, das motoretas que aceleravam na noite, cujas sombras precediam o ruido cavernoso, e das luzes que emanavam som dos telemóveis dos putos e dos motociclistas, perseguiam o nosso caminho entre sombras furtivas e uma cidade que dormita apenas, aguardando a primeira oração das cinco e meia e o nascer do sol.
Sem dúvidas de que o ultimo túnel da derb Assuel era a passagem certa do mundo dos homens para a paz celestial, avançámos decididamente para campainha de sonoridades envolventes, para o cheiro a incenso e para os sons metálicos das mil e uma noites, onde àquela hora, só o gato nos esperava.
Somali, tem quinze anos e é o rei do Riad. Um bom rei, afinal de contas, só quer companhia e muitas festas no focinho, não pede comida nem procura vender tapetes.
Um verdadeiro Rei, nesta visão romântica de um oriente que já não existe.
















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